Nadar é o de menos


PASTA E VINHO: Esse é o cardápio para manter o corpo e mente sãos para o próxomo dia da jornada

Por Fernanda Franco

Ele diz que é em nome da preservação da Amazônia, do desenvolvimento da medicina via satélite e da cura do mal de Alzheimer. Mas às causas nobres somam-se ainda a coragem e resistência desse esloveno que saiu do outro lado do mundo e se enfiou no calor e na umidade da selva Amazônica para percorrer por 70 dias seguidos os 5.430 quilômetros do rio Amazonas, a nado.

Acostumado a percorrer grandes distâncias, Martin Streel, 52 anos, já carimbou o livro dos recordes mais de uma vez, tendo vencido os rios Danúbio (3.004 km, na Europa), Mississipi (3.797 km, nos Estados Unidos) e o Yang Tsé (4.003 km, na China). Sem dúvida, os feitos anteriores deram ao nadador bagagem para este novo desafio, mas a floresta Amazônica esconde mistérios que só foram sendo revelados e desvendados ao longo da jornada. Mesmo com um planejamento de três anos, desde que Martin começou sua travessia não houve um só dia em que ele e sua equipe não tenham tido alguma surpresa, quer seja ela da natureza de Deus ou da natureza humana.

Martin saiu de Atalaya (Peru) no dia 1 de fevereiro. Acompanhado bem de perto por uma pequena voadeira com um guia local, esse touro – ou seria melhor dizer um Jaú, peixe amazonense considerado o mais forte daquelas águas? – nada desde então 10 a 12 horas todos os dias, faça chuva ou faça sol. O barco de apoio, que serve de casa, refeitório e transporta toda equipe e estrutura médica e de transmissão via satélite da aventura, segue um pouco mais atrás. Assim eles devem continuar até o dia 11 de abril, quando, segundo o planejamento, a expedição chega a seu destino final, Belém.

Foram 10 dias em águas peruanas até entrar na fronteira com o Brasil. Desde o começo, os maiores problemas de Martin foram causados pelo sol. Pouco acostumado ao calor dos trópicos, já nos primeiros 20 dias Martin ganhou queimaduras de segundo grau no rosto e lábios. Como os protetores solares não estavam adiantando, a solução foi nadar com uma espécie de máscara feita de fronha de travesseiro até que sua pele se recuperasse. Sua aparência era a do “fantasma do rio”, assustando inclusive algumas crianças locais.

Martin não entrou em nenhum conflito com os predadores do rio, como piranhas ou candirus (minúsculo peixe local que entra nos orifícios do corpo). Só encontrou um jacaré no caminho – morto – e viu uma onça de longe, na margem. Nem precisou usar a faca que carrega amarrada à perna. Já enfrentou, e superou, tempestades, redemoinhos e chegou a passar uma noite perdido na margem, aguardando o barco que havia ficado para trás para fazer alguns reparos e então foi atrasado pela fiscalização. Em compensação, nadou com botos cor de rosa.


NON STOP: Martin segue firme na sua rotina diária de nadar 12 horas por 70 dias seguidos

O barco de apoio sofreu maiores “agressões”: foi visitado por uma surucucu e passou por uma infestação de formigas. O cabo da âncora foi cortado não se sabe por quem e o barco ficou à deriva. Houve também o perigo de ataque de piratas, que haviam assaltado um barco próximo e rondavam sua embarcação. Sem falar nas baixas da equipe por doenças como gripe, ameba estomacal e até um choque anafilático por alergia, que deram mais trabalho para os médicos do que Martin.

No dia 14 de março, o esloveno chegou a Manaus, para mais uma das calorosas recepções promovida pelo povo local e conversou com exclusividade com a Go Outside. Confira um pouco do estilo desse figura na entrevista a seguir e continue acompanhando sua saga pelo www.amazonswim.com.

Go Outside: Quando você começou a planejar essa jornada?

Martin: Há três anos. Estive aqui para analisar as condições que enfrentaria. Estávamos preocupados com correntezas perigosas, tempestades pesadas, o isolamento da selva e animais predadores.

Depois que a travessia começou, o que passou a ser sua maior preocupação?

O sol é disparado a maior preocupação. Os piratas ao longo do rio também foram um fator que não estávamos esperando. Eles andam armados, têm barcos potentes e saqueiam os barcos que encontram no caminho. E, quando chegarmos mais perto de Belém, a preocupação será o vento e a força da pororoca, em que o oceano vem contra o rio.

E o treinamento, quando foi iniciado?

Nado todo dia, faço trabalho com pesos e treino também outras modalidades como esqui cross country. A cabeça também tem que ser treinada – é preciso se manter focado para nadar bem tanto fisicamente quanto mentalmente.


Você nada de 10 a 12 horas por dia. Quantos quilômetros isso representa?

Entre 85 e 90 quilômetros. Logo que saí de Atalaya, consegui nadar mais de 100 km por causa das fortes correntezas a favor.


Em que você pensa enquanto nada horas a fio?

Eu conto histórias para mim mesmo. Em pensamento, visito minha família. Cumprimento minha esposa, minha mãe e minha filha. Penso na Eslovênia, minha terra, e na casa que nasci. Não penso sobre o ato de nadar, deixo a mente viajar.


"FANTASMA DO RIO": Martin se protege do sol com uma máscara feita de fronha de travesseiro

Quantas vezes por dia você pára para descansar?

Não saio da água nem para ir ao banheiro. Faço na roupa de borracha mesmo. Para me alimentar, minha equipe joga bebidas e frutas na água. Consigo nadar e fazer essas coisas ao mesmo tempo. Só paro no meio do dia, por meia hora, para almoçar. Se eu ficar mais tempo parado, meus músculos travam e fica mais difícil percorrer mais quilômetros cada dia.

Quantos quilos você já perdeu?

15 quilos.

Quem decide quando é horar de parar de nadar a cada dia?

Eu. Meu filho, Borut, que chefia a equipe de apoio, recomenda algumas atitudes, mas eu tomo a decisão.

Quantas horas você dorme? O que você come?

Eu durmo de três a quatro horas por dia, numa cama. Sinto muita dor no corpo e tenho dificuldade para dormir. Os músculos do meu ombro e minhas pernas estão quase mortos no final do dia. Todo dia comemos peixe ou frango com arroz e também sopa. Também tomo vinho tinto e cerveja – é o segredo dos atletas europeus. Tem que estar um pouco bêbado para nadar o rio Amazonas!

Qual seu maior temor?

Estou sempre pensando nos animais que vivem sob a água e que eu não posso enxergar. Não dá para ver nem minhas mãos na água turva do rio. Penso nas piranhas, canidru, cobras e jacarés. Mas não me permito ficar com medo. Se eu quiser completar a travessia do rio Amazonas, não posso deixar o medo dominar minha mente.


Qual foi o momento mais difícil até agora?

Houve um momento em que o barco que leva a equipe de apoio atolou na lama. Estávamos perto de Pucallpa, no Peru. Tive que continuar sozinho, somente com o barco de escolta e o guia peruano. Já estava ficando escuro. Encontramos um barco de traficantes e passamos por ele em silêncio. Quando chegamos à Pucallpa, a única coisa que eu tinha era minha roupa de borracha. Eu não tinha dinheiro e não conseguia contato com o barco de apoio. Precisava deles para me alimentar e dormir.

Você já se arrependeu de ter começado esse desafio? Já pensou em parar?

Não. Nunca. Venho planejando e treinando para isso há três anos. E a cada dia que passa estou mais perto do meu objetivo.


Qual sua impressão sobre o povo ribeirinho?

São pessoas legais. Alguns têm medo de mim.

E o próximo rio, qual será?

Ainda não sei. Um de cada vez.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2007)







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