Procuram-se heróis

Por Daniel Nunes Gonçalves

ERAM 14H30 DE UM SÁBADO, 23 DE JULHO, quando a professora de educação física Catarina Araújo, de 25 anos, começou a soltar a corda para descer, praticando rapel, os 95 metros da caverna Água Suja, uma das mais fascinantes do Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira, o Petar, na cidade paulista de Iporanga.

O mosquetão estava bem preso. Quem fazia segurança era o próprio dono da agência de ecoturismo que promovia o passeio. Tudo parecia estar sob controle. Quando faltavam cerca de 10 metros para Catarina pisar no chão, ouviu-se um grito. Na tentativa de desembaraçar a corda de segurança, o instrutor soltou a mão por um segundo e a menina despencou. Pânico. Com o impacto, Catarina sofreu fraturas múltiplas nas pernas e na bacia, além de ter um pulmão perfurado. Ainda assim, estava consciente quando as pessoas presentes começaram, desesperadas, a improvisar o socorro.

Por celular, chamaram o resgate de Apiaí, pois Iporanga não tem Corpo de Bombeiros. A equipe da cidade vizinha saiu disparando a sirene pelos 40 km de estrada de terra que separam as duas cidades. Chegaram ao fundo da caverna 2h30 depois. Catarina, o corpo molhado pelo ambiente da Água Suja, já apresentava indícios de hipotermia. O procedimento para retirada do corpo imobilizado da moça, no entanto, durou uma eternidade, em meio a uma multidão de 27 condutores que tentavam, de alguma forma, ajudar os bombeiros. Catarina só deixou a caverna por volta das 22h, quase oito horas depois da queda. Chegou ao hospital de Pariquera-Açu, cidade a 105 km dali, com vida. Foi transferida de helicóptero para São Paulo, onde entrou em coma induzido. Uma hemorragia interna, entre outras complicações, fez com que fosse dada como morta 45 dias depois.

Em julho passado a tragédia de Catarina completou dois anos. Volta e meia, infelizmente, episódios assim surgem como pequenas notas nos jornais e mancham a imagem do turismo de aventura e da prática de esportes outdoor, afugentando os freqüentadores dos nossos parques e enfraquecendo as atividades das empresas envolvidas. Segundo levantamento da ONG Férias Vivas, única que compila os números de incidentes do turismo no Brasil e que milita para minimizá-los, nada menos que 113 ocorrências foram registradas nos últimos oito anos só no chamado turismo de aventura (de um total de 450 no turismo de uma forma geral). Desses, 41 – cerca de um terço – tiveram vítimas fatais. “As mortes acontecem por falha humana, de equipamentos ou de procedimentos”, diz Silvia Basile, arquiteta que dirige a Férias Vivas motivada também por uma triste experiência pessoal. Em 2002, sua filha de 9 anos morreu durante uma simples cavalgada num resort de Alagoas. O monitor a colocou num cavalo com sela para adultos, a criança não alcançou o estribo, a barrigueira estava solta e a menina escorregou. Foi arrastada longamente, com o pé preso ao cavalo, porque, para piorar, o guia não cavalgava perto das crianças. “Uma seqüência de erros tirou a vida de uma menina”, diz Silvia.


FICÇÃO: O treinamento inclui transporte de vítiima em maca

ACIDENTES ACONTECEM. Mas o aumento nas estatísticas reflete o fato de que há cada vez mais gente descobrindo os prazeres de sair subindo montanhas, pedalando em trilhas, remando em rios, muitas vezes sem o preparo e a orientação corretos. O que agrava as circunstâncias, no universo outdoor, é que os imprevistos acontecem em lugares remotos, próximos de vilarejos que não crescem em estrutura e segurança na mesma proporção da demanda dos turistas de natureza. E só nos grandes núcleos urbanos existem quartéis-generais da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, que são os responsáveis legais por qualquer situação de socorro e resgate.

Para tentar minimizar o tempo de resposta, responsável por tantas mortes, um primeiro – e pequeno – passo foi dado pelo Ministério do Turismo. Por meio do programa Aventura Segura, um grupo de especialistas viajou para tradicionais destinos de ecoturismo mundiais, como Nova Zelândia, Costa Rica e África do Sul, para pesquisar soluções. E voltou com idéias para estimular a prevenção e o socorro em 40 redutos de aventureiros pelo Brasil (metade dos destinos turísticos a serem oficialmente estimulados pelo governo federal, entre pólos culturais e religiosos, por exemplo). Além da criação, ao longo dos últimos três anos, de normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) para certificar, nos moldes dos ISOS 9000 e 14000, a qualidade das empresas que trabalham no universo outdoor, nasceu um projeto de criação de Grupos Voluntários de Busca e Salvamento, os GVBS.

Uma iniciativa como essa, partindo da instância federal, é algo inédito. Hoje, os primeiros socorros prestados em situações de emergência são freqüentemente improvisados, como no caso do acidente de Catarina no Petar, ou realizados por um ou outro guia com conhecimento técnico apurado e que porventura esteja próximo ao local do acidente. No ano passado, quando 15 jovens acampavam às margens do rio Faxinal, na cidade de mesmo nome no Paraná, Jaqueline Matielo, de 23 anos, escorregou nas pedras da beirada e caiu na correnteza que deságua em uma queda de 60 metros. Os amigos acionaram alguns moradores para localizar Jaqueline, enquanto outros colegas tentaram buscar ajuda, de carro, em um hospital a três quilômetros. Mas não havia médicos de plantão e o celular do motorista da ambulância estava fora de área. Só então tiveram a idéia de ligar para os bombeiros da vizinha Apucarana, que levaram uma hora para chegar e se depararam com o corpo, já desfalecido, que tinha sido localizado por 10 voluntários.

Se já tivessem a capacitação técnica proposta pelo governo aos novos GVBS, quem sabe os voluntários paranaenses teriam evitado o pior. Talvez. Para organizar esse atendimento emergencial, vários cursos têm sido lecionados pelo país, desde o início do ano, sob o comando do Ministério do Turismo e com a parceria do Sebrae, do Instituto de Hospitalidade (IH) e da Associação Brasileira das Empresas de Turismo de Aventura (ABETA), que congrega 80 associados. Num primeiro momento, 10 destinos foram priorizados, sob critérios como distribuição geográfica e alta demanda: Rio de Janeiro, Teresópolis (RJ), Chapada Diamantina (BA), Bonito (MS), Lençóis Maranhenses (MA), Petar (SP), Florianópolis (SC), Quixadá (CE), Serra do Cipó (MG) e Chapada dos Veadeiros (GO). Os coordenadores dos GVBS dessas localidades estiveram, por seis dias do mês de maio, no Parque Nacional da Serra dos Órgãos (RJ), aprendendo desde burocracias para formalizar seus próprios grupos de resgate até simulações de busca e salvamento – e ainda tendo que driblar uma greve do Ibama que ameaçava fechar as portas do parque.

O secretário de Meio Ambiente de Bonito, Edmundo Costa Júnior, o Ed, foi uma das 20 pessoas que passou parte da noite, lanterna na mão e equipamentos de navegação na mochila, buscando um suposto pesquisador perdido no parque fluminense. “Curioso é que nós, alunos, não sabíamos que aquilo era um simulado”, conta Ed, que vai coordenar treinamentos específicos de resgate aquático e técnicas verticais para os 30 atrativos de Bonito, como o Abismo Anhumas, com 72 metros de rapel – a modalidade que mais mata, com oito fatalidades registradas nos últimos oito anos.

Ed se surpreendeu com o nível dos instrutores do curso na Serra dos Órgãos. A empresa que ganhou a concorrência para fazer o curso foi a Grade 6, do montanhista Rodrigo Ranieri. E entre os profissionais convidados pela Grade 6 estava Ronaldo Franzen, o Nativo, integrante do Corpo de Socorro em Montanha (COSMO), do Paraná, maior referência nacional quando o assunto é resgate.

Criado em 1995, praticamente junto com a implementação do Parque Estadual do Marumbi – palco da primeira escalada esportiva do Brasil, em 1879 –, o Cosmo virou especialista em resgate de montanha a partir, inicialmente, da boa organização dos apaixonados por aquela região, os “marumbinistas” (trocadilho inspirado nos alpinistas, dos Alpes, e nos andinistas, dos Andes). Integrantes do Clube Paranaense de Montanhismo, eles conquistaram um espaço físico no parque, além do respeito e da parceria de instituições como Polícia Militar, Polícia Ambiental, Instituto Ambiental, Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Defesa Civil.

Assim organizados, unidos e apoiados, os integrantes do Cosmo especializaram-se em cursos como suporte básico de vida, rádio amadorismo e sistemas de resgate, além de treinamento de socorro com o Corpo Nazionale de Soccorso Alpino e Espeleológico Italiano (CNSAS). “Adaptamos a apostila deles e percebemos a importância de padronizar procedimentos”, conta Nativo. “Como os Alpes dividem cinco países, os italianos tinham a experiência de lidar com dificuldades como as diferenças de língua, de técnicas, de nós”, continua. Hoje o Cosmo virou uma ONG independente do clube, auto-suficiente (como é comum no exterior) e com 30 integrantes fixos que se alternam nos plantões de resgate no parque. Mais de 200 montanhistas já fizeram seus cursos anuais nos últimos 10 anos, sejam eles voluntários do Marumbi que estudam gratuitamente ao longo de seis meses, ou escaladores de outros pontos do Brasil e da América Latina que pagam R$ 2.000 por treinamentos intensivos de 176 horas para resgate de vítimas em montanhas, em atividades verticais e em terrenos inclinados. Fora do Cosmo, o próprio Nativo é um dos poucos profissionais do país que dá cursos de resgate e auto-resgate.


SALA DE AULA: Os novos GVBS querem ser como os grupos voluntários de resgate de outros países, que serve de apoio aos bombeiros

NAS REGIÕES COM TURISMO DE AVENTURA DESENVOLVIDO, os grupos voluntários de resgate que se tornam forças de apoio aos bombeiros e oficiais da defesa civil – como os GVBS pretendem ser – são comuns. No Himalaia, são os voluntários sherpas que dão suporte ao Exército em emergências. Na Argentina, a ajuda é dada pelas Comissões de Auxílio. Nos Estados Unidos, onde o voluntariado é muito mais desenvolvido que no Brasil, os interessados têm à disposição cursos de primeira linha nos moldes da CNSAS italiana. Um dos ex-alunos do Cosmo, o montanhista paulista Marcello Vazzoler, aprofundou seus conhecimentos de resgate em altura e em espaço confinado em duas escolas norte-americanas, a Roco Rescue, em Louisiana, e a Universidade do Texas. Já seu companheiro de viagem, o montanhista carioca Paulo Ferreira, o Paulo Bruxo, optou por estudar, além do Texas, na CMC Rescue, da Califórnia. Na volta, Vazzoler e Bruxo passaram a ministrar, como Nativo, cursos de resgate em altura para trabalhadores urbanos. O apelido de Bruxo, aliás, tem origem curiosa: em 1975, ele sobreviveu a uma queda de 75 metros enquanto escalava um paredão no Rio. “Fui resgatado, mal e porcamente, no banco traseiro de um Fusca”, lembra.

“Os americanos seguem normas de maneira bem mais rígida que os europeus, em função das altíssimas indenizações que um resgatista tem que pagar caso sofra um processo”, explica Vazzoler. “Os equipamentos são mais robustos que os usados na Europa, o que faz com que a segurança seja maior”, continua. Uma corda de resgate, que na escola italiana seguida pelo Cosmo tem 10,5 polegadas, nos EUA mede 12,5 polegadas. O mosquetão europeu é de alumínio, o americano é de aço. “Você sente a diferença pelo peso que tem que carregar na mochila”, conta Vazzoler, que tentou criar, com o know-how adquirido, um grupo voluntário de resgate na região de Atibaia, o Resmont, motivado especialmente por um acidente fatal que ele havia presenciado na Pedra do Baú. Não durou dois anos. Frustração semelhante foi vivida por um grupo voluntário de Goiás, o GBS Veadeiros. “O brasileiro é imediatista, não sabe ser voluntário. Por falta de ação, o grupo se desmantelou”, conta Vazzoler.

Em junho passado, Vazzoler deu curso de resgate em ambiente natural para um grupo de bombeiros paulistas. Por amor à causa, a comunidade esportiva freqüentemente estabelece parcerias voluntárias como essa. “Boa parte da experiência de resgate em ambientes naturais dos bombeiros de São Paulo se deve ao conhecimento compartilhado por esses montanhistas experientes”, diz o capitão da Polícia Militar Renato Natale, que por 14 anos trabalhou com busca e salvamento no Corpo de Bombeiros. De fato, escaladores do quilate de Luiz Makoto Ishibe e Nelson Baretta – além dos já citados Nativo e Vazzoler, entre outros como Armando Galassini e Paulo Gil – costumam dar instruções voluntárias sempre que solicitados. “Só é preciso fazer algumas adaptações nas técnicas e nos equipamentos para que a experiência esportiva seja aproveitada nos resgates”, complementa Natale. O caminho inverso também existe: os bombeiros treinados em salvamentos em altura, aquático ou em mergulho fazem, esporadicamente, workshops em comunidades distantes que estejam montando grupos voluntários de apoio.

O RESGATE EM ATIVIDADES OUTDOOR SALVA VIDAS quando realizado com eficiência. No final de 2006, dois rapazes que fariam um vôo duplo em asa-delta caíram logo que deixaram a pista de decolagem da Pedra Bonita, no Rio de Janeiro. Felizmente, bombeiros da Gávea foram rápidos e os encontraram com vida, evitando manchar ainda mais as estatísticas que apontam o vôo livre como a segunda modalidade com mais acidentes (quatro mortos em nove episódios nos últimos dez anos). Em 2004, foi a vez de Marcos Lima se safar de uma fatalidade em um hotel de Atibaia (SP), enquanto praticava arvorismo (atividade com duas mortes nos últimos dois anos). Ele escorregou do cabo de aço, ficou dependurado de ponta-cabeça pela fita de segurança e foi rapidamente socorrido por dois instrutores. Seus heróis estavam de plantão e o trouxeram, em velocidade controlada, ao chão.

Por estarem tão sujeitas a riscos como os montanhistas, as associações regionais de outras modalidades oferecem seus próprios treinamentos – sejam eles em mergulho, vôo livre, moutain bike –, com procedimentos específicos que vão bem além das técnicas básicas de primeiros socorros. Por isso, o processo de organização dos GVBS inclui cursos diferentes de acordo com os destinos. Nas cavernas do Petar, onde aconteceram o acidente citado no início desta reportagem e outras cinco mortes nos últimos anos, o conhecimento deve ir além das noções de espeleologia que os 80 monitores ambientais da cidade já possuem. “Ainda neste ano nossos voluntários terão aulas de técnicas verticais, além de mobilização e transporte de vítimas”, conta o coordenador do GVBS do Petar, Vamir dos Santos. Por conta própria, Vamir investiu em seu treinamento com cursos de resgate do Corpo de Bombeiros e de profissionais da Itália e da Espanha. “Já me acostumei a usar meus equipamentos pessoais nos 15 resgates de que participei no parque”, diz.

Parte da verba que o Governo Federal tem investido no programa Aventura Segura – 2,5 milhões, incluindo a normatização ABNT – será destinada, depois da capacitação, à compra de equipamentos. Cada localidade receberá R$ 20 mil para gastar com a estrutura inicial de resgate, e a partir daí terá de conseguir recursos para sustentar-se. “Todo o dinheiro que nos cabe será investido na estrutura básica de socorro e de prevenção: rádios, macas, coletes salva-vidas para os passeios de barco”, conta Kimiko Matsumoto, coordenadora dos 55 voluntários – entre guias, pescadores, artesãos – que já se filiaram ao GVBS dos Lençóis Maranhenses. Ali, a imensidão desnorteadora de dunas e lagoas exige formação em outras disciplinas, como orientação geográfica. Recentemente, um turista perdido passou a noite toda caminhando, tendo como única referência a luz do Farol de Mandacaru. Sem tantas atividades de risco, a cidade de Barreirinhas, base do GVBS local, tem como emergências mais freqüentes os afogamentos – grande parte deles em função do desnível de quatro metros que o Rio Preguiças atinge quando oscila da maré cheia para a vazante.

A iniciativa do governo, no entanto, não é uma unanimidade. “Acho uma pena as associações esportivas não estarem participando desse projeto e acho difícil que o programa GVBS consiga resultados de médio e longo prazos”, lamenta Silvério Nery, presidente da Confederação Brasileira de Montanhismo e Escalada (CBME). Silvério lembra que grupos amadores como o Clube Alpino Paulista e o Cosmo oferecem cursos de resgate que podem ser muito mais eficientes por serem voltados para montanhistas experientes, e não para leigos. Outros críticos do projeto reclamam de que falta profissionalizar as pessoas que têm como ganha-pão as atividades de guias e de socorristas. “Infelizmente, se um turista morre num acidente próximo a um monitor, a responsabilidade legal é da pessoa física que o acompanhava, e não da agência, o que é injusto”, complementa outra fonte, que não quis se identificar. Há quem tema que as novas normas proíbam os turistas de circularem, sem guias, pelas reservas naturais, como já acontece em Bonito. “Isso não vai acontecer”, garante o montanhista Nativo, diretor sócio-ambiental da Abeta.

A verdade é que a profissionalização do resgate no Brasil está apenas engatinhando. “Por experiência, sabemos que essa verba é muito limitada e 10 destinos privilegiados é um número muito baixo para a quantidade de lugares onde acontece o turismo de aventura. Alguns grupos podem ser criados, mas o futuro deles é uma incógnite”, continua Nery, da CBME. De fato, destinos tradicionais de aventureiros, como Itatiaia e a Chapada dos Guimarães, ficaram de fora da lista inicial dos GVBS. O coordenador de assistência técnica da Abeta pondera: “Incluiremos mais cinco destinos, entre eles Brotas (SP) e Serras Gaúchas, e acreditamos que o GVBS de um parque pode disseminar seu aprendizado para áreas de ecoturismo que sejam próximas”, diz Álvaro Barros.

Mais importante do que resgatar vítimas acidentadas, no entanto, é evitar que as falhas de segurança aconteçam. E orientar os praticantes de atividades outdoor sobre os riscos de cada atividade é parte da missão dos GVBS. Como brinca o montanhista Nativo, do Cosmo do Marumbi, “o melhor grupo de resgate é aquele que não trabalha”. Que assim seja com os novos voluntários.


TREINAMENTO: Faz parte do preparo dos voluntários encarar situações ficcionais de risco

ESCOLINHA HARDCORE

Nos Estados Unidos, só super-humanos encaram, até o fim, o curso de guia de alta montanha da Exum

O Brasil não possui as montanhas dos Andes ou do Himalaia, e por isso pode se dar ao luxo de ter, como treinamento mais extenso de aventura, cursos de somente seis meses como o de resgate do Cosmo, no Parque Estadual do Marumbi (PR).

No exterior, no entanto, as escolas mais casca-grossa não são aquelas que formam resgatistas, mas sim as de guia de alta montanha. Nos Alpes, o curso-modelo, com duração de seis anos, é dado pela Escola Nacional de Esqui e Montanhismo de Chamonix. É o curso que o brasileiro Didier Habib vem encarando há dois anos para se tornar guia de alta montanha no berço do alpinismo. Para se qualificar, Didier teve que fazer curso de resgate de um mês, preencher uma lista de pré-requisitos cabeludos e ainda passar por uma seleção rigorosíssima. “O ‘vestibular’ é feito com provas escritas, orais e práticas. É um exame dificílimo e exaustivo – mais de 80% dos candidatos ficam de fora nessa seleção”, conta.

Nos Estados Unidos, quem atingiu esse nível de excelência é a Exum, que desde 1929 dá aulas num campo de provas estonteante: a montanha Grand Teton, de 4198 metros, no parque nacional de mesmo nome, no estado de Wyoming. Os alunos convidados – sim, não basta fazer um vestibular ou desembolsar alguns milhares de dólares – levam entre oito e dez anos para se tornarem guias de montanha pelos critérios da escola. Detalhe: apenas cinco, de cada 40 indicados, são aceitos como alunos. Só pode estudar em busca do reconhecimento da Associação Americana de Guias de Montanha (AMGA) a pessoa que, primeiramente, preenche uma lista de 13 pré-requisitos. Eles incluem a comprovação de que guiou pelo menos 40 escaladas em duas áreas distintas do planeta, além da evidência de habilidade para realizar, por exemplo, uma série de nós técnicos. Como se não bastasse, o certificado AMGA só é entregue se o montanhista for aprovado em quatro etapas: 1) formação como guia de escalada em rocha (10 dias de curso); 2) formação como guia de alpinismo básico (10 dias); 3) guia de alpinismo avançado com aprovação no exame de aspirantes (12 dias); 4) prova final, que dura 10 dias e dá certificação como guia de alta montanha. No total, só essas quatro fases custam US$ 8.200.

Os alunos são avaliados ao longo do curso. Basta o montanhista não rechecar se um nó foi bem dado para correr o risco de ser cortado. Ganha pontos negativos também se demonstrar insegurança para administrar o ritmo do grupo guiado ou se deixar de censurar o montanhista que simplesmente chutou uma pedrinha perigosa nas alturas – quando pode haver risco para outros escaladores que vêm logo abaixo.

O cenário desse verdadeiro campo de provas também não é nada fácil. Só para se ter idéia, em 2004, 13 escaladores estavam a meio caminho do pico de Grand Teton quando um relâmpago atingiu a norte-americana Erica Summers, matando-a na hora. Outras cinco pessoas do grupo ficaram seriamente feridas num paredão 300 metros acima do glaciar Middle Teton. Foi preciso que um time de 50 resgatistas e guarda-parques fosse mobilizado para, com a ajuda de dois helicópteros, tirar os sobreviventes dali num processo que levou três horas. O episódio demonstrou o grau de risco a que esse guias estão expostos. Não por acaso, nenhum desses montanhistas tinha feito o curso da Exum.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2007)







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