Pequenos milagres


BONECAS: As meninas haitianas e seus vestidos impecáveis, fitas e enfeites supercoloridos e cabelos sempre bem arrumados

Por Mariana Reade*

O QUE VI NO CAMINHO DO AEROPORTO da cidade de Porto Príncipe até a sede da ONU não parou de me saltar aos olhos do primeiro ao último dia das quatro intensas semanas em que estive no Haiti, no começo deste ano: a elegância dos uniformes das crianças. Minha chegada à capital do país – que fica na ilha Hispaniola, no mar do Caribe, fazendo divisa com a República Dominicana – coincidiu com o horário de saída das escolas. Depois vi que todo o dia, nesta mesma hora, era assim: as ruas superlotadas por meninas de vestidos ultra-coloridos, combinados a fitas amarradas aos cabelos, estes penteados com grande capricho. Já os meninos vestiam camisas xadrez impecavelmente limpas e passadas – a ferro de carvão, descobri depois –, já que a energia elétrica é coisa rara no Haiti.

Essa visão inicial não correspondia à idéia comum que temos da nação mais pobre das Américas, que está nos noticiários assiduamente desde 2004, quando o então presidente Jean-Bertrand Aristide foi varrido do poder, numa prática política comum e devastadora no país, desde os tempos de colonização: para se ter uma idéia, durante o século XX, 29 governantes foram depostos ou assassinados por facções rebeldes rivais. Após a queda de Aristide, mais uma vez o vazio na liderança deu força a grupos milicianos, que instauraram um deplorável campo de batalhas, especialmente nas ruas da capital, o que só fez crescer a miséria geral.

E como o Haiti não tem petróleo e não desperta interesses geopolíticos que possam motivar ações internacionais de grande escala, coube ao Brasil chefiar uma missão de paz, a Minustah, ou a Missão de Estabilização para o Haiti. Fui ao país como voluntária de uma agência da ONU, compondo uma ínfima parte de um esforço que nem de longe se compara às mobilizações que acontecem no Iraque ou no Afeganistão, por exemplo. O exército brasileiro tem hoje 1.200 militares no Haiti e outros 20 países integram a missão, totalizando 7.500 militares.

Além da beleza das crianças, também era impressionante a confusão geral ao redor delas: trânsito maluco, vendedores ambulantes gritando, barraquinhas nas calçadas, mercados de rua onde se vende tudo exposto no chão e uma sinfonia disforme de buzinas (acho que haitianos usam buzinas como cumprimento). Um cenário que até lembra uma grande cidade brasileira qualquer, mas muito mais caótico. Daí a fascinação que me causou o contraste de encontrar, no meio da bagunça, a harmonia expressa em delicados uniformes.

Não foi preciso muita estrada para eu perceber que o estilo impecável dos estudantes era um oásis no deserto, uma miragem que logo se perdeu na face miserável da realidade haitiana Gente vivendo em péssimas condições sociais, em casas absurdamente minúsculas, favelas que dobram a linha do horizonte, esgotos a céu aberto e sujeira, muita sujeira, espalhada pelas ruas. Quando cheguei, não havia coleta de lixo organizada no Haiti, um problema que começou a melhorar, poucos meses depois da minha visita.

Comparada ao turbulento ano de 2004, a situação hoje já está anos-luz mais calma. Mesmo assim, ainda há o cuidado – tantos de estrangeiros quanto dos haitianos ricos – de não andarem a pé e nem circularem de carro sozinhos pelas ruas de Porto Príncipe. Não que, morando no Rio de Janeiro, eu não esteja acostumada à violência, mas não andar a pé faz uma diferença que eu nunca poderia antes ter imaginado. Algumas pessoas contratam uma espécie de segurança sem arma, só para não ser notado sozinho dentro do carro. À noite, as ruas ficam desertas e escuras, pois não há eletricidade na maior parte da cidade, assim como em quase todo o país. Na parte rica de Porto (Petion Ville), as casas têm geradores de luz próprios.

Nós, os voluntários, tentamos nos encaixar nas tarefas de acordo as aptidões. Como sou documentarista e roteirista de televisão, minha missão foi circular pelo país, com apoio e proteção da ONU, realizando pesquisas para dois roteiros de documentários: o primeiro sobre a visão das crianças no desenvolvimento do país e o segundo sobre o trabalho comunitário dos militares e a possibilidade de integrar ações sociais dentre as tarefas dos exércitos. Levando-se em conta que o Haiti tem apenas 27.750 quilômetros quadrados, a tarefa não foi um desafio territorial, mas um privilégio, se analisarmos as dificuldades de se circular pelo país.

Em minha pesquisa, tanto descobri uma força sobrecomum dos haitianos, uma vontade enorme de mudar para melhor, que se expressa de forma evidente nas crianças (e que bom que assim o é!), como também vi atrás das boinas azuis e da rigidez dos militares, uma sensibilidade e capacidade extraordinárias de criar soluções em meio à ausência de recursos e à precariedade geral, como nos exemplos a seguir.


LÁ ESTAVA EU, NAS RUAS DE WAFF JEREMY, A REGIÃO MAIS POBRE DE PORTO PRÍNCIPE. Nunca vi tanta pobreza, nem no Brasil, nem na África, nem em lugar algum. Uma das piores coisas para mim foi usar colete e capacete. Sentia certo constrangimento da população que nos observava. enquanto os militares apontavam as metralhadoras para as casas de zinco e para as ruazinhas de chão de barro, onde o esgoto corria a céu aberto e as mulheres lavavam roupa nas esquinas. Eu cumprimentava as pessoas, acenando, mas me sentia desconfortável com tudo aquilo e, ainda, sendo o centro das atenções. Para o meu alívio, em todas as outras visitas eu pude circular à paisana.

Era só o jipe do major Lídio, o comandante daquela companhia, se aproximar que as crianças corriam atrás do carro, acompanhando-o. Era genial vê-lo marchando seguido pelas crianças. Ele era um entusiasta dos projetos comunitários, que o major acredita refletirem intensamente na relação positiva com a população. “Estou aqui pra fazer segurança. Mas olhamos a dificuldade das pessoas e não agüentamos não ajudar”, contou-me.

Quebrando o gelo, vinha junto o Panta, um jacaré de pelúcia gigante, batizado pelos militares brasileiros. Era uma forma de aproximação amistosa, que deixava claro que eles estavam ali para ajudar e não para ocupar o país. Era surreal ver o Panta dentro do jipe militar, acenando para as crianças. Os haitianos riam e cumprimentavam o bichão, que vestia um uniforme igual aos dos soldados da ONU. Era como se as crianças não enxergassem as armas quando andavam de mãos dadas com os soldados, aparentemente felizes da vida.

Mas, mesmo com o major Lídio fazendo o que podia, tudo parecia uma gota no oceano. Na noite anterior a este evento comunitário, os comandados jantaram cachorro-quente para que sobrasse comida para as crianças na visita à escola de Waff Jeremy. O médico-capitão João ensinava aos pequenos noções básicas de higiene. Segurando cada mãozinha de uma forma muito doce, ele fazia questão que cada um aprendesse, de verdade, a lavar as mãos. No centro comunitário, João dava aula para agentes de saúde. Cerca de dez pessoas sonhavam com a possibilidade de aprender algo e conseguir um trabalho. Só um deles trabalhava. O sonho coletivo era ter emprego.

Na escola de Waff Jeremy, cerca de 300 crianças estudam numa área mínima. Foi sobre aquele chão de barro, com cadeiras caindo aos pedaços e salas cujo espaço é compartilhado com a igreja e a associação comunitária, que vi de perto, pela primeira vez, os tais uniformes coloridos. Sem nenhum exagero, foi algo que me fez compreender a dimensão da dignidade humana. As roupas exibiam o melhor daquelas crianças e suas famílias, muito além de qualquer condição material de pobreza e escassez. Com pouquíssimas exceções, não existe educação pública no Haiti. O ensino é privado e a população pobre faz um esforço inimaginável para manter seus filhos na escola. Muitas dessas famílias moram em lugares sem água encanada e energia elétrica. Por isso, parte do orgulho em estudar está expresso na elegância das crianças.

Comecei a minha pesquisa ali na escola e descobri que todos os estudantes têm o mesmo sonho: escola gratuita. Escola para aprender, transformar e ajudar. Uma alentadora ingenuidade que os fazem acreditar que podem mudar o país. Para eles, no futuro está a mudança e a melhoria do bairro e da cidade onde moram.

Pedi que desenhassem, contando-me como queriam que fosse o lugar onde moravam. Eles sabiam que muita coisa precisava melhorar, mas as prioridades foram: escola de dança, professor de inglês, centro de esportes e liceu. A educação vinha antes mesmo de água e eletricidade! Um desejo que me espantou, mas que talvez para eles, que estavam acostumados a viver sem água encanada e energia elétrica, representasse a chave de todos os problemas.


ALEGRIA, ALEGRIA: O sorriso sempre no rosto dos haitianos, principalmente no das crianças

Outro local que me marcou foi uma casa-orfanato chamada Timkatek, que quer dizer “quem procura a sorte”, um nome que nasceu quando meninos de rua disputavam jogos de sorte. Eles encontrarem a casa não deixava também de ser um ato de sorte. “Deus está nas pequenas coisas”, foi o que pensei quando padre Simon José, responsável pelo local, me narrou um diálogo que se sucedeu na ocasião do início do funcionamento de Timkatek, entre ele e um adolescente:

– É verdade que só os ricos podem ter flores em casa?

– Não, todos podem ter flores, mas é preciso aprender a cuidar delas para que nossa casa fique cada vez mais bonita.

Dito e feito. Durante os três meses que antecederam a inauguração da casa, padre Simon reunia os meninos aos sábados à tarde, para que todos preparassem juntos a futura-nova vida. Eles plantavam flores, que embelezavam a casa. Padre Simon José era um forte. Como aquele homem conseguia coordenar as duas casas, com um total de 180 crianças, é algo que ainda não pude entender.

Mas infelizmente não havia espaço para todos. Os meninos vinham de todo o país. A principal razão de eles estarem na rua era a fuga da situação do restez avec (“fique com”), uma política usual no Haiti: os pais entregavam a criança para uma família mais rica, com a esperança de que ela recebesse educação e, teoricamente, casa, comida, saúde e lazer, em troca da prestação de serviços domésticos. A prática é legalizada. Mas, mesmo dentro da lei, é algo terrível. E é ainda pior na prática, pois muitas crianças nem recebem o tratamento prometido. Daí muitos desses meninos e meninas fogem aterrorizados, fugindo da sina. Por isso, Timkatek era um milagre: uma casa maravilhosa, que acolhia meninos para que estes aprendessem a plantar suas próprias flores.

A idéia de lutar por uma casa melhor, dentro do trabalho coletivo, rendia frutos. Aqueles meninos sem família acreditavam de verdade que teriam profissões e sorriam ao contar que queriam ser marceneiros, mecânicos, agrônomos, costureiros e (incrível!) fazedores de telhados.

Num outro dia, uma companhia liderada pelo capitão Braz foi fazer um mutirão de lixo no bairro de Citte Militaire para ajudar a população, já que esta não contava com coleta, e eu consegui autorização para ir junto. Várias reuniões com líderes locais foram necessárias até que se conseguisse agendar o mutirão uma vez por semana. Líderes organizaram e escolheram os nove haitianos que iriam trabalhar com os três brasileiros. Escolheram também o local que mais necessitava da ação.

Além de promover a limpeza das ruas, o mutirão também gerava trabalho para população, revelava líderes e estabelecia vínculo entre a população e o exército. Essa aproximação fez com que o capitão Braz passasse a receber ligações de moradores, avisando-o sobre a presença de bandidos na área. Como eles falavam línguas diferentes, convencionou-se da população dizer “bandit + o nome do local”. Com o intuito de ressaltar a confiança, o projeto era executado por nove haitianos e três militares brasileiros e estes não usavam armas durante o mutirão, apenas camiseta e boné. O trabalho em conjunto dava ótimos resultados e o capitão Braz e a sua equipe eram adorados por todos.


JACARÉ CAMARADA: Panta diverte haitianos em ações promovidas pelos militares brasileiros

Embora haja êxitos como esses, a Minustah está longe de ser um consenso. O país se divide entre os que são a favor e os que são contra a missão. Até mesmo militares da Minustah tem opiniões divergentes, especialmente entre aqueles de países cuja ida ao Haiti não foi voluntária. Uma das fortes críticas é em relação aos altos custos de manutenção da missão, uma questão controversa, como tudo no Haiti. Muitos dizem que este dinheiro deveria ser usado em investimentos de infra-estrutura e desenvolvimento. De fato os custos são altos. Mas, a presença da missão é requisitada pelo próprio presidente atual do país Renê Preval, que não acredita que a polícia nacional haitiana (PNH), esteja preparada para controlar a segurança. Os militares da ONU, além de manterem a segurança do país, ensinam e treinam a PNH.

Um major do exército do Sri Lanka me confessou, em segredo, que ele era absolutamente cético à Minustah. “Seria muito mais eficaz empregar o dinheiro gasto com contingentes militares para construir usinas de cana-de-açúcar, ou algo do tipo, e entregá-las aos líderes das gangues. Assim, chegaríamos a um acordo, pois aumentaríamos a oferta de trabalho, pacificando o país por meio do desenvolvimento e não da força”, disse-me o major. O Sri Lanka desenvolveu projetos de rápido impacto e estratégias de distribuição de alimentos e senti que eles tinham excelente relação com a população.

De qualquer jeito havia muita coisa positiva acontecendo, às vezes simples, mas que faziam enorme diferença. De Log Base, aeroporto militar que pertencia à ONU, embarquei num helicóptero com argentinos rumo a Gonaives, cidade destruída em 2004 pelo furacão Jeane. Os argentinos eram extremamente criativos. Criaram um café – que eles chamavam de pub – dentro de uma velha van (as tap-taps para eles), o local de confraternização dos militares. O comandante do batalhão argentino defendia a união da missão operacional com a humanitária. Eles haviam chegado há dez dias e estavam cheio de energia. De todos os projetos comunitários que os argentinos tocavam bravamente, o que mais me surpreendeu foi o da iluminação da praça. Gonaives era uma cidade bastante escura. Só havia gerador no quartel e em dois hotéis e todo o resto vivia na escuridão. E eles tiveram uma idéia muito simples, que fez toda a diferença: levar um dos geradores do quartel para a praça principal entre 18 e 21h. Desde então, as crianças e adolescentes iam à praça fazer a lição de casa, estudar e ler. Mais uma vez, era como se as armas não existissem.


REFÚGIO: Praia de Cormier Plage, em Cap Haitien, potencial turístico se o país tivesse condições de desenvolver o mercado

Mesmo com o esforço e a boa vontade dos militares – por mais que a violência diminuísse – a ausência do Estado e a falta de serviço público era latente. Uma noite, a caminho para a bela Jacmel, senti na pele essa ausência. Jacmel era uma espécie de refúgio, onde se podia andar a pé pelas ruas sem problemas e nada era mais libertador do que isso. Ali tinha eletricidade pública e os problemas de segurança quase não existiam. Jacmel havia sido uma linda cidade no século dezenove. O potencial turístico seria enorme, caso houvesse turismo no Haiti. A cidade unia a atmosfera do período colonial às praias caribenhas. Mas o caminho até lá foi sofrido.

Parecia não haver leis de trânsito. E de repente, vimos um tap-tap capotado. Sabendo da carência dos serviços públicos, era certo que ali não chegaria polícia ou ambulância. Vendo aquelas pessoas atônitas em volta do acidente, no meio da noite, me fez sentir a ausência dos serviços públicos numa outra dimensão. Yves, o amigo haitiano que me conduzia, ofereceu ajuda. Como não havia mortos, não precisamos parar. Continuei a viagem em silêncio.

Às vezes, a sensação é de que, visto o tamanho monumental dos problemas haitianos e os parcos recursos disponíveis para resolvê-los, o Haiti é uma espécie de fim de linha, sem possibilidade de saída. Mas, apesar dessa suposta verdade que se impõe, isso não foi o que mais me marcou do país, de forma alguma. Saí de lá encantada e até um pouco esperançosa, pois há uma força avassaladora que brota não sei de onde, talvez de num limite extremo do ser humano, que opera verdadeiros milagres. Talvez o instinto de sobrevivência da espécie? Pode ser. Mas pequenas iniciativas dentro daquele contexto caótico me pareceram enormes – como as crianças indo à escola em meio ao caos e outras coisas singelas – e soaram como poesia. Há sim uma luz no fim do túnel e isso eu levo para a minha vida.


Mariana Reade é roteirista do programa Central da Periferia, da Rede Globo, e escreveu este texto com a colaboração do jornalista Marcelo Delduque


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de outubro de 2007)







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