Sozinho comigo mesmo, por muito tempo (muito mesmo)

Reportagem e fotos por Thayer Walker

Eu os chamava de empadinhas de gosma, mas devia ser mais agradecido, já que foram uma das poucas coisas que me mantiveram vivo. Descobri os moluscos no meu segundo dia abandonado numa ilha deserta chamada Pargo, no golfo de Chiriquí, no Panamá. Eu só tinha uma faca, uma máscara de mergulho e a roupa do corpo, e nunca havia caçado na vida. Então, aceitei a variedade que os moluscos trouxeram à minha dieta de cocos com cupins.

Mais conhecidas como lapas, as empadinhas de gosma vivem na zona entremarés. Seriam mais gostosos assados ou fritos, mas não consegui fazer fogo e foi sorte encontrar algo que dava para comer cru. Tinham gosto de borracha macia coberta por gelatina – levava no mínimo 60 segundos para mastigar cada pedaço do tamanho de uma moeda até ele ficar engolível – mas pelo menos esse tempo me permitia saborear o fato de que não iria morrer de fome. Minha mente conseguiu convencer meu corpo a engolir aquela coisa nojenta até meu quinto dia em Pargo, quando ele finalmente se revoltou.

Começou com a fina membrana que segura as vísceras (as tripas e a merda, em outras palavras) do molusco. Antes de comer uma empadinha de gosma, eu tinha que arrancá-la da concha e cortar fora a membrana. Já tinha me acostumado com a ânsia que isso causava, mas depois de três dias empurrando aqueles moluscos garganta abaixo descobri, como já era de se esperar, que estava comendo outra coisa também. Com um punhado de moluscos na boca e mais um punhado esperando para serem limpos, notei um monte de vermezinhos chatos e marrons como tênias emergir de uma das membranas. Eles reagiam como uma hidra (uma espécie de invertebrado aquático) ao serem cortados ao meio: duas cabeças são melhores que uma. Vomitei na hora. Todas as calorias que me sustentariam naquele dia foram jogadas semidigeridas aos meus pés, e eu só tinha um jeito de repor tudo. Joguei fora o molusco infestado, me sentei, derrotado, e comecei a limpar mais uma porção.

Antes de chegar a Pargo, eu brinquei que, mesmo sendo um novato em sobrevivência, ia me ilhar de propósito para transformar a frase “trabalho por comida” em “tenho fome de trabalho”. Quando a gosma se misturou com os restinhos ácidos do vômito, eu me lembrei da piada. “Quem está rindo agora?”, pensei.

Mas ainda assim eu estava confiante. Um amigo me disse que eu duraria quatro dias numa ilha, mas eu tinha calculado algo entre 12 e um mês. Quarenta dias, então, seria um milagre. Eu viraria o Tarzan rapidinho. Não pode ser tão difícil assim.

PARECEU UMA BOA IDÉIA quando eu ainda estava de barriga cheia: um teste de sobrevivência para valer, um conceito que atrai nossa imaginação coletiva desde a passagem dos israelitas pelo deserto até a mais recente edição de Survivor. Quase todo mundo já se perguntou como se sairia numa situação como essa. Eu pretendia descobrir indo para uma ilha deserta.

O mais importante era achar o lugar certo. A ilha precisava ser desabitada, mas perto de algum lugar onde pudesse conseguir ajuda. Precisava ter água doce, uma fonte de comida e um clima tropical, já que eu não queria imitar a expedição de Shackleton no Ártico. Depois de duas semanas de buscas, me concentrei nas ilhas Secas, um arquipélago de 16 ilhas a 20 quilômetros da costa do Panamá, no oceano Pacífico.

O resort Islas Secas fica na única parte habitada da cadeia de ilhas e Michael Klein, o dono do hotel, me contou sobre a vizinha deserta, Pargo, a 3,5 quilômetros: uma ilha de 194 hectares com água doce, cocos e abundante vida marinha. Não há mamíferos, mas há muitos pássaros e iguanas – se, acrescentou Michael, eu conseguisse pegar alguma coisa. O socorro ficava a dez minutos de lancha e tinha até uma pista de pouso perto do hotel, caso houvesse alguma emergência.

Como a idéia era sobreviver, não morrer, algumas regras foram estabelecidas. Primeiro, eu queria levar comigo o mínimo possível. Por sugestão dos especialistas em sobrevivência que ouvi, levei uma faca Ka-Bar Heavy Bowie de 30 centímetros. Para a diversão, levei uma máscara de mergulho, com a vantagem dela me ajudar a caçar algo pra comer. Um kit de primeiros-socorros básico também era necessário para limpar feridas. Era preciso também equipamento de mídia – cadernos, canetas, câmeras – para documentar a história. No caso de uma emergência, minha escapatória era um telefone via satélite. A cada três dias deveria ligar para minha editora, que eu sabia que não estaria do escritório, e deixar uma mensagem mostrando que ainda estava vivo. Se ela não recebesse o recado, ligaria para o resort para alguém buscar meu corpo. Como plano B eu tinha um beacon de localização para informar onde eu estava. Mas o que eu precisava mesmo era de capacidade para sobreviver.

Não sou especialista em sobrevivência. A última vez que matei alguma coisa foi com minha caminhonete. Quando pedi para avaliar minhas habilidades, Bob Berman, o namorado da minha mãe, sugeriu que eu me sairia melhor nos bares locais do que numa ilha. Cresci no bairro de Haight-Ashbury, em São Francisco, ou seja, um moleque da cidade grande até a alma. Como um jovem aventureiro e saudável de 28 anos, eu passava um tempo outdoor, a maior parte dele na água – surfando, andando de caiaque e dropando com um kite – e sou treinado em mergulho. Mas essas são atividades restritas, que vêm depois de um café da manhã e antes de um drinque à noite.

“É duro”, alertou Les Stroud, criador e astro do programa Survivorman do canal Science, quando pedi conselho. Stroud praticava suas habilidades de sobrevivência há vinte anos e mesmo assim diz que uma semana numa região erma é tempo. “É muito fácil dizer ‘vou conseguir pescar alguma coisa, caçar umas iguanas’”, disse. “E aí você vai colocar isso em prática e a coisa é completamente diferente”.

Felizmente, eu tinha me inscrito num curso-relâmpago de sobrevivência com o antigo professor de Stroud, John “Lobo das Pradarias” McPherson. Lobo e sua esposa, Geri, autores da série de livros Naked in the Wilderness (“Pelado no mato”), ensinam habilidades de sobrevivência aos Boinas Verdes, a força especial do exército norte-americano, entre outros grupos. O casal vive fora do sistema, num chalé de três andares que eles mesmos construíram a leste do estado norte-americano do Kansas. Lobo das Pradarias, que tem 62 anos, ganhou uma medalha Coração Púrpura no Vietnã e faz Rambo parecer molenga. Geri, uma bisavó de 64 anos, especializou-se em curtir couro de animais no próprio caldo dos cérebros dos bichinhos.

Os Boinas Verdes costumam ficar duas semanas afiando suas habilidades com Lobo e Geri, mas eu precisei espremer tudo em cinco dias. Eles me mostraram como fazer mapas, fogueira, abrigos e corda, mas antes precisaram me ensinar a talhar com uma faca. Lobo me explicou que nenhum dos materiais usados no treino estaria disponível no Panamá. Mas nos trópicos, com toda a sua biodiversidade, deveria ter muita madeira boa.

Na primeira tarde, enquanto meu mestre resolvia uns serviços para a casa e Geri despelava um cervo, eu fiz uma fogueira usando duas varetas, uma delas amarrada na outra, na forma de um arco. Usei madeira mole (ideal para fazer fogo) e material inflamável que Lobo me ajudou a coletar, mas tudo isso pouco importava. Quando ele voltou e me encontrou na frente do fogaréu que fiz, com cara de vitorioso, eu falei para me chamar de Tocha Humana. “Bom trabalho”, disse. “Mas não fique se achando. Fazer fogo é sempre mais difícil quando é importante”.

Levei mais dois dias até conseguir acender outra fogueira. Geri falou para eu não perder ânimo e explicou que ela levou meses até fazer fogo sem dificuldades. Mas eu não tinha esse luxo. Acendi mais algumas, mas senti que passar cinco dias no Kansas, um mês antes da partida, não era a mesma coisa que passar a noite estudando antes de uma prova. Na hora de ir embora, Lobo das Pradarias me desejou sorte. Dava para ver que ele estava falando sério.

CAPITÃO MANUEL GARCIA acelerou a lancha ao redor do ponto, soltou a âncora na baía em forma de w e desligou o motor. Diante de nós havia duas praias, separadas por uma rocha. Batizei a do leste, que seria a minha casa, de praia dos Dois Litros, por causa das garrafas de plástico que a maré e as correntezas traziam para a areia. Ambas eram praias abrasivas, cobertas de pedrinhas e pedaços de coral, não aquela coisa macia e relaxante que as pessoas acham bonitas.

O interior da ilha não era mais hospitaleiro. As árvores, algumas com centenas de anos e mais de 30 metros, cobriam a paisagem, e debaixo delas havia trepadeiras, cipós e galhos. Folhas e ramos secos cobriam o chão e uma linha estreita de palmeiras cobria a costa. “O grande problema em Pargo são as chitras”, contou Garcia, referindo-se às moscas da areia. Ele e outros nativos me avisaram para levar repelente, mas eu não dei atenção ao conselho. “O tempo todo são essas chitras”, continuou Garcia. Enquanto ele falava, eu me dei conta que aquela seria a última conversa que eu teria por um bom tempo. Pulei do barco e fui até a praia. Garcia ligou o motor e sumiu.

Então eu derrubei uma árvore. Isso não serviu a nenhum propósito imediato. Só foi legal e eu queria começar com algo triunfante, mesmo que não servisse para nada. Eram nove e meia da manhã e pela primeira vez na vida eu tive que pensar onde arranjaria o meu próximo gole de água.

No dia anterior, quando eu e Garcia examinávamos Pargo, descobri que não havia água corrente – uma surpresa, uma vez que ele tinha visto água corrente duas semanas antes. O verão panamenho secava com rapidez a ilha, deixando apenas um grande pântano ao lado norte e dois laguinhos estagnados ao sul. A água tinha que vir de algum lugar, então eu cavei um poço de 60 centímetros de profundidade, que se encheu de água marrom. Não parecia com algo que eu beberia, mas vinha direto do solo, por isso achei que devia ser pura. Tapei o buraco quando fui embora e recavei-o com um pedaço de pau nas minhas primeiras horas sozinho na ilha.

Passei o resto do dia tentando fazer fogo. Além de algo para queimar, são necessários cinco elementos para fazer uma fogueira de varetas em forma de arco: um arco, uma cordinha, uma vareta, uma tábua e um rolamento. Achei meu arco na hora e ele era perfeito: um galho morto, mas não quebradiço, os mais belos 80 centímetros de curvatura deste lado dos aquedutos romanos. O cadarço do meu tênis serviu de corda. Dois galhos serviram de vareta e tábua. Para o rolamento, que segura a vareta no lugar, usei um pedaço de coco. O cadarço dá uma volta na vareta e a vareta fica com a ponta mais áspera encostada na tábua. Conforme a vareta gira, impulsionada pelo arco, a fricção cria fumaça e, teoricamente, uma fagulha. Depois de seis horas de esforço inútil, tudo o que eu consegui foram seis bolhas.

Logo seria noite e por isso recolhi um monte de bambu que estava flutuando ou encalhado para fazer um estrado de cama e depois o cobri com folhas de palmeira. Trabalhei duro o dia todo e me sentia bem. Uma pontada de solidão e pensei no meu último contato humano. Garcia. Cacete, as chitras.

Ao fazer a mosca da areia, Deus queria criar algo que não dormisse nunca. De dia não dava para fica sentado 30 segundos sem ser coberto por um enxame delas. Isso deixava as refeições complicadas. Numa irritante simetria elas mordiam meu rosto enquanto eu mastigava. Mas era à noite que elas realmente ficavam insuportáveis. Elas voavam pelo meu nariz adentro, entravam na minha boca e enviavam repetidas expedições pelo meu ouvido. No terceiro dia, depois que deixei a mensagem para Mary, apesar da vergonha, pedi para ela ligar para a equipe de apoio no resort para eles deixarem repelente do outro lado da ilha, para eu ir buscar. Depois, minha irmã grávida me chamou de marica. Mas cara, ela não estava lá para ver. Ela não estava lá.

Não era a primeira vez que a ilha me atormentava. Apesar de o Panamá estar no quarto mês de sua estação de seca, na noite anterior tinha sido acordado pelo som de gotas d’água na testa. Eu me enfiei floresta adentro para procurar abrigo e logo não conseguia mais ver a minha cama. Estava perdido a menos de 100 metros do meu ninho molhado. Correndo pela praia para esquentar, a única coisa que pude fazer foi rir e esperar amanhecer.

Prometi a mim mesmo construir um abrigo no dia seguinte, derrubando árvores pequenas para fazer a armação e cobrindo o telhado com folhas de coqueiro. Batizei-o de Monticello. Com água, comida e abrigo, só faltava uma coisa: fogo.

GERALMENTE OS DIAS começavam com algum exercício, mas não do tipo convencional. Levantava dos bambus lá pelas sete da manhã e, igual ao que faço em casa, começava o dia comendo uma fruta – neste caso, coco. Abrir a casca fibrosa do coco dá trabalho, mas eu já esperava por isso. A polpa é que foi uma surpresa. Eu não sabia que aquilo era tão resistente. Só uma vez comi um coco inteiro de uma vez e levou 40 minutos de mastigação.

Os cocos eram seguidos de uma pratada de cupins, ou, se a maré estivesse baixa, umas vinte empadinhas de gosma. Às vezes, ambos. A cada punhado de dias enchia algumas garrafas de plástico com água do poço e bebia com vontade, tanto para me manter hidratado como para enganar o estômago. O resto do dia me dedicava aos projetos. Vagava por aí, filmando e tirando fotos. Por volta das três e meia da tarde, vinha minha parte favorita, a hora do mergulho livre com belos e apetitosos peixes de recife. Então escrevia no meu caderno e, antes da noite cair, tomava um banho com um balde que achei na praia, numa poça com a profundidade da minha canela, perto do poço. Às sete da noite escurecia e assim ficava por 11 horas e meia, até tudo se repetir ao nascer do sol. Se eu conseguia dormir seis horas, era sorte.

No sexto dia, em algum momento entre os cupins e o mergulho, alguns pescadores locais baixaram âncora na baía. As ilhas Secas é um arquipélago isolado, mas não esquecido. Às vezes pescadores dão uma parada lá para arranjar comida e água. Fiquei escondido atrás de uma árvore, invisível, até um deles seguir direto para meu acampamento.

Fiz uma força para sair do mato e dizer oi. Fazia quase uma semana que eu não via ninguém e meu desapontamento inicial logo virou alegria. O pescador era marcado pelo sal do mar, esfarrapado, e tinha a cara mais amigável e bonita que eu já tinha visto. Ele explicou que estavam procurando por caranguejos. São deliciosos cozidos, não tanto crus. Eu sei, porque experimentei. Com meu péssimo espanhol, expliquei o que estava fazendo ali.

“Ôa” exclamou o capitão. Há quanto tempo você está aqui?”

“Seis dias”, contei. Os outros quatro pescadores se aproximaram. Eles estavam no décimo dia de uma viagem de duas semanas.

“E quanto tempo vai ficar?”, outro perguntou.

“Não sei”, respondi. “Algumas semanas. Um mês.”

Eles olharam um para o outro. “Você é louco”, disse o capitão.

“Mas vocês estão passando duas semanas no barco, longe de casa”, lembrei.

“É”, concordou o capitão, “mas nós temos um ao outro. E peixe!” Eu gargalhei, com inveja. E então eles foram embora, mas não antes do mais jovem com cara de adolescente me trazer dois cocos. Eu podia ter pegado eu mesmo, mas foi um gesto legal, um ato aleatório de bondade. Eu tinha quase esquecido dessas coisas.

Dois dias depois, de manhã, uma ave de rapina pousou num galho de uma grande árvore morta, perto da tora do café da manhã, onde eu mascava minha dose diária de coco. Ela parecia não se incomodar quando eu me aproximei até menos de três metros. Ela ficou lá, por uns trinta minutos, olhando para o mar, pensando em algo para fazer naquele dia. Algo que tínhamos em comum.

Não sabia que tipo de rapina era aquela, mas era linda, bem arrumada e um tanto desligada, então a batizei com o nome de um cara que era o astro de um seriado dos anos 80 chamado Falcon Crest: Pierce Brosnan. Depois descobri que o nome certo do ator era Lorenzo Lamas e a ave era um gavião.

Pierce saiu para pescar logo depois de ser batizado e eu segui sua deixa. Perto dali tinha uma poça formada pela maré alta que parecia um sushi-bar. Eram oito e meia da manhã e eu estava com fome, por isso fiz uma armadilha para peixes. Não comia há vinte horas. Cortei o topo de uma garrafa de dois litros e armei tudo com uns gravetos. Com um pouco de sorte, os peixes entrariam para pegar as tripas de nuggets de gosma que pus na garrafa como isca e não conseguiriam sair, como numa armadilha para lagostas.

Depois de preparar a armadilha, devorei 18 moluscos. Estava fraco, cansado e solitário. Não tive progresso nenhum com o fogo em oito dias. Parte do problema (além da falta de um isqueiro) é que eu estava sentado no meio de uma floresta de madeira dura e precisava de madeira mole para acender o fogo. Passava as noites no escuro e comia tudo cru. Mas esse não foi meu único fracasso. Passei três dias fazendo uma rede de pesca que não servia para pegar uma bola de basquete. Levei um dia e meio fazendo pontas de lanças com ossos que acabaram curtas demais. Dei início a uma sofisticada operação chamada Isca e Pedra, enchendo uma poça com moluscos para atrair peixes que, em teoria, eu esmagaria com uma pedra. Mas não acertei nenhum. Eu estava fracassando em pontos críticos o tempo todo e não tinha ninguém para pedir ajuda.

Exausto, abri um coco e me deitei debaixo de uma árvore que pingava uma seiva cáustica. “Eu sou o ser humano mais patético do mundo”, murmurei. “Não consigo acender uma fogueira e não consigo pegar nenhum peixe. Deveria ter entrado no ramo imobiliário”. E a coisa foi ficando mais feia. “Amanhã vai ser mais difícil do que hoje e hoje já foi o dia mais duro de todos”. Eram só 11 e meia da manhã.

Stroud tinha me avisado que se manter ocupado era a melhor maneira de driblar a depressão. Só tinha um problema: manter-se ocupado era doloroso. Encher garrafas com água era cansativo. Abrir cocos me esgotava.

Então, tão rápido como veio, o desespero foi embora, expulso por um pragmatismo teimoso. Chequei minha armadilha para peixes. Nada de sushi hoje. Desemaranhei um bolo de linhas de pesca que apareceu na praia e comecei a fazer uma rede. Dei um longo mergulho, vi uma moréia de um metro e naveguei por uma caverna subaquática. De volta à praia, comi mais 15 empadinhas de gosma, me limpei, e comecei a abrir uma trilha até o Monticello. Quando o sol se pôs, pensei, “amanhã pode ser mais difícil que hoje, mas hoje não foi nada mal”.

EM ROBINSON CRUSOÉ, o protagonista criado pelo autor Daniel Defoe descreve a si mesmo como “um prisioneiro numa terra selvagem inabitada”. Mas com o tempo a visão de Crusoé muda e ele passa a pensar em si mesmo não como um presidiário numa ilha deserta, mas como um rei. “Não tenho competidores, ninguém para disputar a soberania ou o comando comigo”. Eu também seria um rei, e o 12º dia seria a coroação. Por isso, às nove da manhã, com a maré ao meu favor, parti para inspecionar meu reino e reivindicá-lo como minha propriedade.

Embora Pargo tivesse menos de 2,5 metros quadrados, era difícil explorá-la. Uma densa floresta cobria o interior e andar pela costa, com suas escarpadas rochas vulcânicas, demandava encarar subidas íngremes e desafiadoras. Depois de mais ou menos uma hora, cheguei numa grande baía. No outro lado havia dois espigões de rocha, cada um com uns trinta metros de altura, com uma depressão em forma de sela entre os dois. A escalada até a sela era bem difícil, uns vinte metros de pedras e terra soltas, em cima de uma plataforma de rocha que logo seria coberta pela maré. Plantas com longas folhas saindo do chão eram o único ponto de apoio que eu tinha. Pus meu pé numa, que cedeu, lançando-me para a costa rochosa lá embaixo. Para deter minha queda agarrei-me a outra planta, que se revelou o equivalente vegetal do ouriço.

Pela primeira vez em quase duas semanas eu disse para mim mesmo “sabe, Thayer, talvez você não devesse estar fazendo isso”. A descida pelo outro lado foi igualmente difícil e perigosa. Mas, trinta minutos depois, encontrei a minha recompensa. Era uma bela praia vazia. Rolei pela areia branquinha e fofa e, apesar de estar exausto por causa da caminhada, andei pela beira d’água. Com que freqüência uma pessoa tem uma praia só para si?

No caminho de volta para o acampamento, cheguei numa pequena clareira com dez pés de cana-de-açúcar. Peguei minha faca e cortei umas, que descasquei para enfiar os dentes num doce, suculento e 100% natural açúcar. Minhas papilas gustativas, adormecidas há duas semanas, explodiram de felicidade. Eu me sentei na clareira – a Fábrica de Açúcar – por uma hora. Era um macaco rosado mascando cana, viajando na sacarose, na maior alegria que já tinha sentido.

Depois de chupar um belo pedaço de cana, voltei para o acampamento. Num mirante sobre as águas turquesa, ergui a cana de um metro de comprimento como se fosse um cetro e proclamei “meu nome é THAYER e me reconhecerás como vosso REI!”

“CHEGA DE SOBREVIVER”, escrevi no meu diário. “Hoje eu começo a viver”. Depois de 15 dias à procura de comida e bebendo água turva, cheguei a um ponto de equilíbrio. Não estava morrendo ou ficando maluco, mas também não estava prosperando.

Estava convencido de que havia uma coisa que eu precisava fazer para subir na escala evolucionária do sobreviver para o viver: cestas. Passei mais de um dia trançando galhos moles e trepadeiras em uma cesta com tampa, ambas em forma de cone. Funcionava perfeitamente. Eu a usava para juntar empadinhas de gosma. Nela cabia o dobro do que na casca de coco. Não era muito feia também. Fazer minha primeira cesta foi meu momento de maior orgulho na ilha.

Há muitos usos para uma cesta. Vire-a de ponta-cabeça, coloque-a no fundo do mar e você tem uma armadilha para peixes: eles conseguem entrar, mas talvez não consigam sair. Eu enchia a cesta de pedras e empadinhas de gosma e a enfiava numa fenda onde os peixes se juntavam. Amarrava a cesta numa ponta de uma linha de pesca e, na outra ponta, uma garrafa de plástico de alvejante vazia servia de bóia. Dava para deixá-la assim a noite toda, na certeza de que estaria segura e que na manhã seguinte teria alguma coisa dentro dela. Um pequeno sucesso mudaria tudo. Na tarde do 17º dia, armei minha primeira armadilha e fui comemorar na Fábrica de Açúcar.

Arrastando-me pelo leito de um riacho, com folhas caídas até a coxa, vi, a 40 centímetros de mim, um iguana. Eu já tinha visto milhões de iguanas na ilha, mas não tinha conseguido chegar perto. E lá estava um, a menos de meio metro de mim. Nem importava o fato de eu não ter fogo. Cacete, se eu pegasse um iguana eu mijaria fogo. Ou faria carne-seca de iguana, deixando-a no sol. Eu teria que passar a noite espantando moscas, mas quem conseguiria dormir, de qualquer jeito?

Peguei um galho grande jogado no chão, reuni toda minha selvageria e dei uma porrada no pescoço do lagarto, um golpe certeiro. O galho partiu na minha mão e o iguana não se mexeu. Assim que eu pensei “talvez ele esteja morto”, o danado saiu correndo e se enfiou no mato. Ele praticamente pulou no meu prato e ainda assim eu pisei na bola.

Depois de uma parada rápida na Fábrica de Açúcar, voltei ao acampamento. A armadilha de cesta tinha sumido, levada pela maré. Passei os últimos minutos do dia me empanturrando de açúcar e depois passei metade da noite pensando que gosto teria carne de iguana.

No 19º dia cheguei a algumas conclusões: se minha sobrevivência dependia de fazer fogo e pegar peixes, eu estava com problemas. Se minha sobrevivência dependia de empadas de gosma e beber água dum buraco barrento, dava para continuar com isso para sempre. Foi loucura imaginar que eu dominaria a arte primitiva da sobrevivência em algumas semanas, depois que os seres humanos passaram milhões de anos desenvolvendo-a e milhares de anos esquecendo-a. Embora eu tenha perdido sete quilos, ganhei uma tonelada de humildade. Pierce Brosnan passou voando e eu gritei, “quero um sanduíche de peru!”. Sem dar a menor atenção, ele voou de volta para seu ninho. Na manhã seguinte, eu também voltei para o meu.

CHEGUEI À CIVILIZAÇÃO como uma nuvem de gafanhotos. Na lancha de resgate, devorei a melhor refeição da minha vida: um sanduíche de ovo e salsicha, dois deliciosos bolos de banana e nozes, várias frutas e uma Coca-Cola. No resort, engoli um macarrão com galinha, virei uma cerveja e esperei meu estômago encolhido protestar.

Quando vi Deborah Bunting, uma ex-professora de escola com cara de mãezona que eu mal conhecia, que administrava o hotel com seu marido Guy, me joguei nos braços dela como se fosse mesmo a minha mãe. Ela deu uns tapinhas nas minhas costas e depois tentou se afastar. “Espera, espera” disse, e a abracei com mais força.

Mais tarde, naquele dia, fui até a cidade montanhosa de Boquete, o mais longe possível do mar no Panamá, para ficar com meus amigos Dee e Rich Lipner. No segundo dia me empanturrei com seis refeições e três sobremesas, sem me preocupar com as conseqüências da minha gula. Passei a noite me contorcendo de dor e descobri o porquê quando me pesei na manhã seguinte: tinha engordado três quilos em três dias.

Algumas coisas voltaram ao normal bem rápido: o trânsito voltou a ser um incômodo em vez de novidade e eu não sentia vontade de olhar nos olhos de todos os estranhos que passavam. Outras coisas nunca mais serão as mesmas. Passar três semanas apanhando da natureza é uma estranha lição de humildade. Que diferença fazia saber escrever uma frase se nem podia acender uma fogueira? Nunca mais vou pedir um isqueiro emprestado como quem não quer nada.

Liguei para Les Stroud e contei sobre minha experiência. Ele não pareceu surpreso. “Há um grande abismo entre a realidade de fazer uma ferramenta ou algum equipamento de caça ou pesca e depois fazer isso com eficiência”, disse. “Eles quase nunca funcionam”.

“Eu não consegui nem acender uma fagulha”, lamentei.

“Isso é mais difícil”, explicou ele. “Tenho certeza de que algum de nós se saiu melhor do que você, por causa da experiência, mas não muito melhor. Sobreviver é difícil e feio. Vinte dias é um bom tempo. Eu não ia querer fazer uma coisa dessas”.

Alguns dias depois de deixar Pargo fui para um restaurante com os Lipners e contei sobre os sucessos e fracassos. Pedi uma pina colada por sugestão da garçonete. Sorri e disse “é bom poder ter uma escolha como essa”. Quando chegaram as bebidas, dei um golinho e senti gosto de coco pela primeira vez desde Pargo. Nem pude sentir o álcool. Só a ilha. Passei o drinque para Dee.

“Pode ficar”, falei para ela.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de outubro de 2007)







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