Reinado ameaçado


SAIA DA FRENTE:Atleta da equipe Master da Bocaina na terceira etapa do Trip Trail

Por Debora Rocha

JÁ ERA DE SE ESPERAR QUE A NATA do mountain bike brasileiro participasse da terceira edição do Peugeot MTB Trip Trail no final de semana dos dias 1 e 2 de setembro, em Rezende (RJ). Afinal, o Trip Trail conseguiu, em pouco tempo, se tornar uma das principais competições de maratona de bike do país. O surpreendente – e muito legal – é que a competição reuniu, além de atletas de peso como o tricampeão Amarildo Ferreira e as meninas da equipe Atenah de corrida de aventura, a safra nova do esporte, como Luiz Henrique Cocuzzi, de 14 anos. Filho de um ex-ciclista profissional, o moleque não foi ao pódio, mas passou bem perto. Ele e sua dupla, Claiton Santos, 21 anos, ficaram em sétimo lugar na classificação geral e em décimo lugar na categoria masculino. Ou seja: cuidem-se, reis da bike, porque o trono está em perigo.

Sempre em duplas, os mais de 300 atletas inscritos escolheram entre as duas opções de percurso (70 ou 80 quilômetros), ambas com trechos nas serras da Bocaina e Itatiaia. A prova rolou em duas etapas, com uma boa noite de sono entre elas, no acampamento montado pela organização. A equipe Amazonas ganhou de virada: Amarildo e seu parceiro, Cláudio Roberto Souza, chegaram em segundo lugar no sábado (1), depois da equipe Scott de Odair Pereira e Ricardo Pscheidt, mas recuperaram a liderança no domingo e ficaram com o menor tempo total. Já a Scott completou em terceiro os 52 quilômetros do domingo. Mesmo assim, Amarildo conta que por pouco o caneco não escapou de suas mãos. “Erramos em seis quilômetros o último trecho do domingo e só passamos os líderes nos dois quilômetros finais”, conta Amarildo.

Já as deusas da Atenah Sílvia Guimarães e Camila Nicolau subiram com tranqüilidade ao topo do Olimpo, o lugar mais alto do pódio na categoria feminina. “A prova foi ótima. Conseguimos também nos divertir e não apenas sobreviver àquelas subidas todas”, conta Camila. Na dupla mista, a SOS Mata Atlântica de Mateus Ferraz e da experiente Adriana Nascimento – nove vezes campeã brasileira de mountain bike e integrante da seleção brasileira nos Jogos Pan-Americanos de 1999, que voltou este ano às competições depois de um período afastada das trilhas – levou a melhor tanto no sábado quanto no domingo, numa promissora estréia da dupla. “Foi nossa primeira corrida juntos. Espero que possamos disputar outras. O entrosamento foi perfeito”, elogia Adriana.


FÁBRICA DE BIKERS: Rico (deitado) treina os futuros campeões do mountain bike brasileiro

MESMO COM TANTAS FERAS À SOLTA, o destaque da competição foi Luiz Henrique Cocuzzi, um garoto de apenas 14 anos de idade e de talento e pernas fortíssimos para figurar entre os primeiros nos próximos anos. “A prova foi bastante dura, cheia de pirambas, exatamente como eu gosto”, contou o menino. Ele é filho de Luiz Ricardo Cocuzzi, ex-atleta profissional, tricampeão brasileiro em 1977, 78 e 79 e ex-integrante da equipe Caloi, a melhor na época. Aos 50 anos de idade, ele é chamado de pai Rico pelos seus 25 filhos. Isso mesmo. Vinte e cinco filhos, sendo que dois deles (Luiz Henrique e Luiza, de três anos) são filhos de sangue e os outros 23 são filhos de coração, como ele gosta de explicar. Rico é responsável, ao lado da esposa Selma Cocuzzi, pelo Lar Nossa Senhora, um espaço instalado no bairro de Parelheiros, em São Paulo. O local abriga 25 crianças e adolescentes vindos de todos os cantos do país. “Não é um orfanato, mas sim um abrigo para crianças que vivem na rua ou que não têm uma boa relação familiar”, explica Rico. “As crianças são encaminhadas pra gente por meio do Conselho Tutelar e a maioria acaba gostando daqui por causa da vivência esportiva que oferecemos”, explica.

E que vivência. O sítio de Rico foi totalmente adaptado para a prática do mountain bike e transformou-se numa espécie de fábrica de ciclistas mirins. Junto à casa onde todos moram há uma oficina de bikes que gera a principal renda da família. “Nos mantemos consertando e vendendo bikes. Também consertamos máquinas de lavar e contamos com alguns apoios”, explica. Nos fundos do terreno, ele construiu um circuito de trilhas para a criançada treinar. “Considero a oficina a parte principal da casa, mas é na pista que a gente se diverte. Coloco todo mundo pra pedalar”, se orgulha Rico.

A idéia de abrir um abrigo para menores carentes surgiu por acaso na vida de Rico. Paralelo às competições da qual participava, ele tocava uma oficina de bikes no bairro de Parelheiros e morava em um sítio mais afastado da cidade. Um dia, saindo da oficina, Rico topou com um menino desacordado na calçada e parou para ajudá-lo. Deu comida pro garoto e perguntou, de supetão, se ele queria ir morar no sítio do casal. O menino, claro, aceitou o convite e depois de pouco tempo e muito carinho já estava recuperado da desnutrição. “Nunca planejei cuidar de crianças, mas depois que a gente pegou o primeiro menino, outros que moravam com ele na rua bateram na nossa porta e colocamos todos pra dentro. O primeiro acabou ficando pouco, já estava envolvido com bebida e não conseguimos recuperá-lo. Mas da turma que chegou com ele ainda mora com a gente o Claiton, que correu o Trip Trail com o Luiz”, diz Rico.

Com a chegada da criançada na casa e o envolvimento de Rico e Selma – sim, a mulher também anda de bike – uma luzinha se acendeu na cabeça do casal, que resolveu formar uma equipe esportiva com a galerinha da casa. “É muito difícil recuperar uma criança que já morou na rua e teve contato com todo o tipo de drogas e experiências ruins. A gente percebeu que ou as envolvíamos no esporte ou nunca a teríamos realmente perto. Não existe criança que não se sinta estimulada pelo esporte, é uma forma de trabalhar a auto-estima”, afirma Rico.

Foi assim que a rotina de treinamentos e as primeiras competições entravam na vida dessa grande família. Dez anos depois de formarem a equipe, uma sala especial precisou ser reservada na casa para a exposição de troféus e medalhas. “Participamos de competições quase todo final de semana. O Rico coloca a molecada toda dentro do nosso micro-ônibus e caímos na estrada pra competir. Minha vontade agora é montar uma equipe de corrida de aventura, ainda vou convencer o Rico de que somos bons nisso”, se diverte Claiton, o mais velho do grupo.

No dia-a-dia da família, a rotina e as regras de boa convivência são seguidas à risca. Pela manhã todas as crianças vão à escola e é a hora de Rico, Claiton e os jovens adultos que também vivem no abrigo treinarem. Durante a tarde é a criançada que sua a camisa. Munidos de uniforme e equipamentos de segurança – capacete, joelheira e cotoveleira –, os pequenos correm para o circuito ao ouvir o chamado de Rico, dizendo que está na hora de treinar. E só param quando o pai manda. “O Luiz Henrique treina cerca de três horas e 60 quilômetros por dia. Pra mim, ele já tem nível profissional e precisa ter um treinamento condizente. Já os pequenos treinam mais leve, cerca de uma hora por dia”, explica o treinador.

Além do treino na pista, as crianças recebem alimentação balanceada, à base de proteína de soja e cereais, e comem o pão feito na padaria semi-industrial que existe no sítio. Claiton – o único que consegue acompanhar o ritmo de Luis Henrique nas competições – é o padeiro da casa. “Os outros ajudam em tudo o que for preciso, como uma grande família mesmo”, afirma Rico.

Mesmo puxando o ritmo dos treinos, o paizão não é nenhum carrasco e mantém com seus filhos uma relação de amor e respeito. “Muita gente vê a nossa equipe competindo e pensa que eu sou o general, que obrigo as crianças a treinarem o dia inteiro”, conta. “Na verdade, é o oposto disso. Elas treinam por vontade própria, porque querem seguir o meu exemplo. E esse exemplo é o que eu tenho de mais precioso pra deixar pra eles”, diz. Rico conta que quando Luiz ainda era um menino de colo, ele já pedalava levando o menino nos ombros. Assim que o filho cresceu o suficiente para subir sozinho numa bike, Luiz começou a treiná-lo. “Comecei a andar de bicicleta com cinco anos e tenho a certeza de que quero ser ciclista profissional”, afirma categoricamente o garoto, que já coleciona títulos na sua categoria, como campeão paulista de MTB, campeão paulista de resistência em speed, campeão do IronBiker, bicampeão de montanha speed e campeão do Power Biker. Alguém dúvida do seu potencial?


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de outubro de 2007)







Acompanhe o Rocky Mountain Games Pedra Grande 2024 ao vivo