Presentão


VOANDO BAIXO: Piloto francês em uma etapa de 499 km do Dakar 2005, prova que teve parte do percurso na África

Por Fernanda Franco

“CAIU NO NOSSO COLO”. Foram essas as palavras do piloto brasileiro André Azevedo, da equipe Petrobras Lubrax, sobre a vinda para a América do Sul do maior rali cross-country do mundo. A partir de 2009, o que antes era o local de chegada – Dakar, capital do Senegal – será apenas o nome da prova, que se consagrou como a Fórmula 1 do mundo off-road. De malas prontas, o evento deixa o místico Saara para ser disputado nas dunas do deserto mais árido do mundo, o Atacama, percorrendo outras paisagens entre o Chile e a Argentina.

Foi uma troca árdua. Depois de anos convivendo com ameaças terroristas, conflitos civis e até ataques fatais, o Dakar 2008 foi cancelado 18 horas antes da largada. Mesmo assim, Itienne Lavigne, da Amaury Sport Organisation (ASO), organizadora do evento, promete manter os valores que colocaram a competição no topo das provas de rali: percursos inéditos e desafiadores, trechos velozes nas etapas de cronometragem e uma boa dose de dificuldade nas areias do deserto. O percurso exato será divulgado apenas em setembro, mas é certo que a largada e a chegada acontecerão em Buenos Aires, na Argentina. Sabe-se também que o roteiro terá 9 mil quilômetros (6 mil cronometrados) e a etapa de descanso será em Valparaíso, no Chile.

Para o Brasil, a troca foi mais do que bem-vinda. Além de deixar para trás os conflitos e o isolamento do deserto africano, em solo sul-americano os pilotos brasileiros terão mais conforto e tranqüilidade e, possivelmente, melhores resultados. “Eu não vou ter a pressão psicológica de estar a 2 mil quilômetros de qualquer coisa, como acontece no Saara. É um problema a menos, principalmente para os novatos”, explica André. Como a região do Atacama é menos inóspita que o continente africano, os pilotos terão melhores de chances de dormir confortavelmente, de estarem perto de aeroportos e até mesmo se alimentarem melhor. “Na África, não consigo saber o que estou comendo”, explica André. Isso sem falar na língua e na cultura, muito mais distantes de nossa realidade.

Mas percursos menos isolados significam mais desafios e riscos para pilotos e organizadores. “O Dakar não está acostumado a fechar estradas, já que na África não passa quase ninguém. Mas aqui isto será muito importante para a nossa segurança”, analisa o piloto Klever Kolberg, também da Petrobras Lubrax, que tem 20 Dakares no currículo nas categorias carro, moto e caminhão.

Klever acredita que a navegação será mais fácil aqui no sul e que a região conseguirá simular perfeitamente as condições variadas do Marrocos, por exemplo. “Será possível encontrar pedra, precipício, estrada estreita e grandes planícies que garantem a adrenalina em trechos a 200 km/h”, diz. Klever relembra que quando o GPS foi inserido no Dakar, todos acharam que a prova ficaria mais fácil, mas o que aconteceu foi que a organização passou a dar menos referências. “Houve uma evolução tecnológica de competidores e organizadores, mas quem sempre mandou e continuará mandando são as condições meteorológicas. Uma tempestade de areia muda tudo”, afirma.

Como a estrutura da equipe Petrobas Lubrax (assim como a da maioria das equipes) fica na Europa, os carros, equipamentos e suprimentos seguirão de navio até Buenos Aires, num esquema montado pela própria organização do evento – mais um motivo para que André e outros pilotos brasileiros aproveitem a proximidade do local para começarem a prova mais descansados.

Além da proximidade do Dakar facilitar a participação dos nossos pilotos, a prova pode, numa edição futura, passar pelo Brasil, nos colocando na mídia mundial. A cada edição, as paisagens são transmitidas para todo mundo, aguçando a curiosidade dos amantes do esporte que procuram os trajetos do Dakar para percorrer sem competir. “Nós já temos o principal, que é a natureza. Se oferecermos segurança e infra-estrutura, podemos trazer divisas para o Brasil com esse tipo de turismo”, avalia Klever. O piloto já conseguiu o engajamento de empresários, pilotos e organizadores para que isto aconteça e espera também que os órgãos públicos se envolvam, não deixando que fiquemos apenas olhando enquanto esse bonde passa tão perto.

ALÉM DE ANDRÉ, outros nove pilotos brasileiros foram pegos de surpresa com o cancelamento do Dakar 2008, voltando para casa sentindo diferentes graus de decepção e alívio. “Claro que me senti frustrado, mas como não sou profissional, a importância da prova para mim é menor do que para outros pilotos. Seria muito perigoso continuarmos”, pondera Sylvio de Barros, da categoria motos. Foi a segunda vez que o piloto amador não realizou o sonho de pisar em Dakar – no ano passado, ele caiu numa das etapas e fraturou a mão.

Já o estreante na categoria motos Rodolpho Matheis correria pela Petrobras e conta que foi difícil voltar pra casa depois de treinar um ano inteiro para o evento: “Eu estava muito contente. Quebrei a coluna no ano passado e minha recuperação quase ameaçou a minha participação. O cancelamento foi um balde de água fria, pois não sei se terei outra oportunidade de correr numa equipe”, confessa o piloto, que apesar de tudo concorda com a decisão da organização. Esta, aliás, garantiu a devolução da inscrição a todos os pilotos, mas este é um valor que representa apenas 20% do gasto total para eles. No caso de Sylvio, os custos pagos à equipe francesa que o levaria não eram passíveis de reembolso, mas ele está em negociação para não arcar com os prejuízos sozinhos.

Com largada programada para o dia 5 de janeiro deste ano em Lisboa, a 30a edição do prova se consagraria como a maior já realizada até então: estavam inscritas 570 equipes divididas em 205 carros, 245 motos, 20 quadriciclos e 100 caminhões. Ao todo, 1.000 veículos e 3.500 pessoas percorreriam 9.273 quilômetros em quatro países: Portugal, Marrocos, Mauritânia e Senegal.

O problema foi que dez dias antes do início do Dakar quatro turistas franceses foram assassinado na Mauritânia, num ataque

atribuído ao grupo Al Qaeda. Em alerta, o governo francês emitiu um comunicado aos pilotos franceses, recomendando que eles não passassem pelo país. Como a etapa na Mauritânia era longa (oito dias) e o rali também recebeu ameaças de outras facções terroristas, a organização optou pelo cancelamento. “Fiquei sabendo poderia haver mísseis, granadas e morteiros. Ficaríamos todos muito vulneráveis”, conta André Azevedo, que faria sua vigésima participação no evento.

Essa foi a primeira vez que Dakar deixou de ser realizado, mas ele já tinha sofrido cortes, alterações de percurso e casos de assassinatos em edições anteriores. Em 1991, um caminhão da prova foi metralhado em Mali, com a morte de todos os tripulantes. Naquele mesmo ano, a guerra do Golfo acabara de explodir e a Mauritânia, que estava no percurso, apoiava Saddam Hussein. O acampamento da prova ficava numa área controlada pelas forças militares e a possibilidade de seqüestro era real.

André Azevedo recorda outro episódio em 1999, quando mais de 50 veículos foram parados no deserto na Mauritânia. Acredita-se que foi apenas uma tentativa de roubo e não terrorismo. Já na edição de 2000, enquanto a caravana da prova seguia do Níger para Líbia, chegou a informação de que um grupo guerrilheiro interceptaria as equipes. A organização precisou então providenciar às pressas aviões para transportar carros, caminhões, motos e pessoas para longe da área de risco. Em 2007, a organização também cancelou o trecho de dois dias em Mali, sob ameaças de seqüestros. O mesmo país já havia trazido os mesmos problemas à organização em 2004.

Para Klever Kolberg, quem mais perde com a mudança do Dakar é a África. “Em muitos vilarejos o rali é a única movimentação diferente no ano todo. No rastro do rali, muitos turistas europeus conhecem os locais revelados pela prova, mesmo sendo complicado e perigoso”. Kolberg acredita que os perigos inerentes a um rali já bastam para os pilotos. “A prova envolve riscos suficientes, como velocidade, a probabilidade de se perder ou de se machucar ou mesmo quebrar o carro no meio do deserto. Se houver mais outros problemas envolvendo o rali, eu estou fora”, enfatiza. Na América do Sul, porém, ele se anima em correr – uma reação que deve se repetir em muitos outros pilotos, fortalecendo o novo Dakar que vem por aí.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2008)







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