Fora da trilha


SAI DA FRENTE: Em primeiro plano, o brasileiro Guilherme Pahl, campeão entre os homens

Por Fernanda Maciel

PRONTOS PARA CRUZAR A ILHA DE SANTA CATARINA de sul a norte, 105 atletas apreciavam o nascer do sol do dia 2 de março, em Florianópolis, enquanto se preparavam para encarar a segunda edição da Multisport Brasil, uma espécie de Ironman das montanhas. Fui conferir de perto – em carne, osso e músculos – os 90 quilômetros de percurso da competição, que engloba corrida, bike (mountain bike ou speed) e canoagem, e pode ser completada na categoria solo ou revezamento.

A diferença da Multisport para um triathlon cross-country como o XTerra, por exemplo, é que no cross-country as modalidades são fixas (natação, bike e corrida), como num triathlon tradicional. Já nas provas multiesportes as modalidades podem variar. Mas em ambas é imprescindível que o percurso seja demarcado e que os atletas não precisem navegar como nas corridas de aventuras – e foi exatamente neste ponto que a Multisport Brasil falhou.

A linda bola amarela-laranja nascia, devagar, clareando o Caldeirão, no canto esquerdo da praia da Armação, local da largada. Com a areia entrando no tênis, caramanhola cheia d’água, gel energético, cabelo em tranças, boné e adrenalina no topo, eu pedia a proteção divina enquanto me aquecia para a primeira modalidade, uma corrida entre praias e montanhas. Aliás, dura corrida em areia fofa e percurso com travessias de rios, costeira de pedras escorregadias, trilhas estreitas, erodidas e de difícil ultrapassagem, além de raízes, bromélias, galhos soltos e buracos escondidos pela vegetação. Foram quase 2 horas administrando a força das pernas e a respiração ofegante. Enquanto o pelotão da frente se formava, eu gritava “bora, bora” para os atletas do meu lado e ia dropando as pedras e encostas que separam o canto do Matadeiro da Lagoinha do Leste. O fantástico visual do mirante, a 240 metros de altitude, me fez respirar fundo e checar se o dia estava bom para o surf. Estava. Terminei a etapa de corrida encantada com o nível técnico da prova.

As multiesportes exigem do atleta muita técnica, logística e estratégia. Também exigem bons equipamentos e cuidados com o corpo (pés, principalmente) e alimentação – elementos tão importantes quanto estar com o físico e o emocional em dia. Um atleta de multiesportes deve estar capacitado para encarar qualquer tipo de modalidade junto à natureza.

Acredita-se que há 200 anos os nativos maoris da polinésia já escalavam, corriam e remavam na Nova Zelândia. Por isso, este país é o que possui as provas multiesportivas mais cruéis, disputadas e importantes do planeta. Oficialmente, a primeira competição multiesportiva aconteceu por lá em 1980 – foi a Coast to Coast, criado para ser um desafio selvagem que desafiasse os limites do ser humano junto à natureza. Depois da Coast to Coast, os neozelandeses vieram com a Alpine Ironman, a Peak to Peak, a Southern Traverse Multisport-Woman e muitas outras. Hoje, alguns governos estão investindo nas provas multiesportes como uma forma de promover o turismo, a cultura e o meio ambiente de seus países. Os atletas visitantes, como eu, podem experimentar o que há de mais belo e interessante em cada um dos países do mundo por meio das modalidades praticadas.

Minha primeira experiência nessas provas foi na Southern Traverse Multisport-Womans, na Nova Zelândia. Apenas com participantes do sexo feminino, fizemos canoagem, natação, corrida de montanha, ciclismo de estrada e mountain bike. Nesta mesma configuração de modalidades, competi em muitas outras provas do verão neozelandês. Já no inverno, fiz a Multisport Peak to Peak, que tinha esqui ou snowboard, bike downhill, canoagem, corrida de montanha e ciclismo de estrada, tudo sobre a neve. Nos mares do Caribe, fiz a Igwa Aventure, em Guadalupe, que tinha surf, golf, windsurf, corrida de montanha, paddleboard, snorkelling, natação, técnicas verticais, orientação noturna e canoagem.


LÁ VEM O SOL: A largada na praia da Armação, no nascer do dia

PRÓXIMA MODALIDADE: BIKE. Tínhamos a opção de pedalar de mountain bike ou speed. Mas, caso escolhêssemos a bike de estrada, era obrigatório depois remar no barco fornecido pela organização, um sit-on-top (aberto, de plástico), não muito veloz. Se eu quisesse usar o meu barco (um oceânico da Opium modelo Alasca), deveria ir de mountain bike. Como a maior parte da prova era na água, preferi ter um bom barco. Mesmo assim, a organização ainda permitia colocar um pneu liso na bike. Usei um de 1,5 polegada, mas podia ser até 1,4.

Foi um pedal tranqüilo, sem muita técnica, por ruas e rodovias, porém perigoso. Meu foco não era não se perder, mas se desviar do trânsito caótico da cidade. Pedalei sozinha, sem avistar um atleta sequer até o topo da sinistra ladeira da praia Mole. De lá, já com meus quadríceps queimando, revezei a roda com um atleta masculino, pois nas provas multiesportes é permitido pegar vácuo na roda de outro atleta. Minuto a minuto, eu colocava a minha cara ao vento, sempre em direção ao posto da polícia ambiental do rio Vermelho, onde encontraria o meu caiaque, já deixado lá pelo meu apoio.

Saí remando rumo sul, indo do Vermelho à costa da lagoa da Conceição, com as dunas da Joaquina e a avenida das Rendeiras como cenário. Com maré a favor, aumentei a cadência e foquei no leme no intuito de pegar umas ondinhas e terminar logo a primeira parte de canoagem. Da Conceição, corri até o centrinho, e de lá segui pelas lamacentas trilhas do Canto do Araçá até o rio Ratones, sempre montanha acima, entre praias, bosques e cachoeiras. Os 300 metros de desnível compensaram o sol quente na cabeça. Corri num ritmo mais tranqüilo para que a minha cabeça não latejasse e eu não fervesse antes do fim. Até ali eu já tinha feito uns 60 quilômetros de prova e era a segunda colocada, atrás da atleta Cristina de Carvalho.

De volta ao barco, remei pelo canal até a baía da Daniela e vi, à nossa frente, alguns atletas saindo da rota, à procura do ponto de apoio onde as bikes estariam. Como eles, eu também havia me perdido em algumas trilhas anteriores. Sorte ou azar, as adversárias Camila Nicolau e Manuela Vilaseca remavam do meu lado no fim da canoagem. Uma delas tinha corrido a prova em 2007 e, portanto, sabia o caminho certeiro. Por isso, a segui para não me perder de novo e poder brigar pela primeira colocação.

Na transição para a bike rolou uma superdisputa. Eu pedalava em terceiro lugar em direção à praia do Jurerê Internacional quando me perdi mais uma vez. Tentei lembrar do briefing para recordar dos nomes das ruas que iriam sentido praia. Após algumas tentativas, sem ver as garotas, achei a rodovia que levava para a chegada. Consegui me aproximar da Camila e da Manu, mas não a tempo de ultrapassá-las. Cheguei ao gigante pórtico com a marca de 7h32min, feliz por ter completado em terceiro lugar minha primeira multiesporte brasileira.


MATO SEM CACHORRO: Alexandre Carrijo, terceiro colocadom com o tempo total de 6h56min

Na minha frente chegaram, com segundos de diferença, a paulista Camila (7h32min) e a carioca Manuela (7h32min). Cris chegou em quarto (7h36min), depois de também ter se perdido na baía da Daniela. Entre os homens, o brasiliense Guilherme Pahl (6h30min) foi o primeiro, seguido do paulista Márcio Franco (6h30min) e do brasiliense Alexandre Carrijo (6h56min). O atleta de ponta Fábio Ferreira, que liderou parte da prova, também teve problemas com a falta de balizamento.

O organizador Anderson Ross defende o evento. " Os atletas não leram regulamento e instruções, nem entenderam que esta prova é um misto de aventura e triathon, ou seja, exige atenção e existe um racebook. A Coast to Coast não é balizada e cada atleta tem que conhecer o caminho, mas mesmo assim eu resolvi balizar. Se eu colocar que é obrigatório conhecer o percurso antes, vou perder os atletas que não podem vir conhecer antes", diz ele.

Eu acho que esse foi o problema: o regulamento dizia que não haveria baliza, mas o Anderson a prometeu no briefing e nós contamos com isso.

Para o ano que vem, Roos promete um evento perfeito: percurso maravilhoso, facilidade de logística para os apoios, segurança para os atletas, farta premiação e, acima de tudo, bastante sinalização de percurso. E se preparem: além da Multisport Brasil, acontecerá uma multiesporte em Brasília, dia 5 de julho (brasiliamultisport.com.br) e a Gaia Multisport, em São Paulo, até o fim desse ano (gaia.com.br).

Fernanda Maciel, atleta da equipe Atenah, é mineira de Belo Horizonte, formada em direito e corredora de esportes outdoor desde 2003. Morou na Nova Zelândia em 2005 e 2006 especialmente para treinar e competir em provas multiesportes.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2008)







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