Veja o lado mau

POR STEPHANIE PEARSON
ILUSTRAÇÃO RENATO LOOSE

NORMALMENTE EU NÃO COMPRARIA briga com o único Nobel da Paz que se encontra preso, mas acho que a líder ativista Aung San Suu Kyi, de Mianmar, deveria parar de instigar turistas a evitar seu país – uma atitude que ela toma na tentativa de impedir que o fluxo de dinheiro vá para os déspotas que governam o local.

Não se pode negar que Mianmar (antiga Birmânia) está em péssimas mãos: Suu Kyi está sob prisão domiciliar em Rangum e fora de circulação desde 1989. Em 1990, sua vitória nas eleições nacionais foi ignorada pelo Conselho de Estado de Paz e Desenvolvimento (CEPD), apoiado pelos militares. Enquanto isso, a brutal junta do general Than Shwe destruiu 3 mil vilas, desalojou 1,5 milhão de refugiados e recrutou 70 mil soldados crianças. Mesmo assim, o pedido dela de um boicote ao turismo parece mal orientado. Esse boicote não está privando o CEPD do vital capital estrangeiro, como diz Suu Kyi. Está privando o país de um movimento democrático de potenciais simpatizantes por todo o mundo.

Boicotes turísticos são, há muito, usados para diminuir a entrada de fundos e a legitimidade de regimes opressivos, desde a era do apartheid, na África do Sul, até a Cuba de Fidel. No papel, boicote econômico faz sentido, mas seu benefício tem menos valor do que a ida de turistas para que vejam com seus próprios olhos. Seja em Mianmar ou no Tibete, a melhor maneira de se combater a opressão é se tornar testemunha ocular. Uma vez tendo presenciado, impossível não divulgar o que você viu.

Descobri isso em 1984, quando meu pai, um pastor Luterano, voltou da Nicarágua, onde estava monitorando a situação entre os contras – apoiados pelos Estados Unidos – e o governo socialista sandinista. Meu cérebro adolescente não conseguia discernir a complicada dinâmica de uma guerra civil. Mas consegui entender o terror quando ele apoiou o rosto nas mãos e soluçou enquanto me contava que tinha visto famílias inteiras de camponeses espremidas em cubículos de dois por um metro e meio, que eram suas casas enquanto trabalhavam em plantações de banana multinacionais. A política daquela situação é diferente da que está acontecendo em Mianmar, mas o sofrimento não. Um ano após sua viagem, meu pai visitou igrejas em Minnesota (EUA) e reuniu uma dúzia de pessoas para voltar com ele à América Latina.

Esta lição sobre o poder de transformação das viagens esteve comigo quando passei pela Colômbia, Cuba, Guatemala, Venezuela, Butão e outros lugares problemáticos. No meu caminho, fiz contribuições onde achei que fariam diferença. Quando eu for a Mianmar, vou prestar muita atenção aonde vai meu dinheiro.

Suu Kyi argumenta que minhas taxas de visto fornecem moeda forte para o governo, e que os hotéis onde me hospedarei pertencem a oficiais corruptos. Ela está certa quanto a quem receberá a maior parte do dinheiro, mas está deixando de lado o volume relativo envolvido. No ano passado, 248 mil turistas gastaram praticamente US$ 150 milhões em Mianmar. Isto equivale a quase metade do comércio de pedras preciosas do país, que foi estimado em US$ 297 milhões no ano passado, de acordo com um relatório da organização de defesa dos direitos humanos, a Human Rights Watch (HRW). E isso não é nada se comparado aos US$ 2,2 bilhões que o regime ganhou em 2006 com negociações de gás natural com a vizinha Tailândia, transações que vão contra as políticas de isolamento americanas e européias.

Com o foco do governo de Mianmar nas negociações lucrativas de seus recursos naturais, arrancar dos cidadãos o dinheiro proveniente do turismo passa a ocupar um segundo plano. John Sugnet, vice-presidente de vendas e marketing da empresa Geographic Expeditions, de São Francisco (EUA), declara que, de acordo com suas fontes, 80% do dinheiro que seus clientes gastam em Mianmar atualmente permanecem com a população local. Ao mesmo tempo, o câmbio está ficando mais fácil, o que significa que os turistas não precisam, necessariamente, usar os inflacionados e regulados certificados de moeda.

Mas visitar as ditaduras mundiais não tem só a ver com dinheiro. Tem a ver com enxergar algo que os boicotadores dizem que não acontecerá, mesmo que você vá. “O problema é que as pessoas que visitam apenas o triângulo dourado de Rangum, Mandalay e Inle Lake voltam dizendo, ‘Não é tão mau assim’”, diz Jeremy Woodrum, diretor da Campanha pela Birmânia – organização norte-americana sem fins lucrativos. “O regime impede as pessoas de verem a realidade”.

Há dois problemas com esse argumento. Primeiro, se os americanos tivessem visitado Rangum setembro passado, a realidade estaria muito clara. Soldados do governo mataram 31 manifestantes – a maioria pacíficos monges budistas – que marchavam contra a alta dos preços dos combustíveis. O CEPD bloqueou o acesso à internet no país durante o período de violência, limitando drasticamente a possibilidade de divulgação de notícias. Este nível de segredo torna-se impossível no caso de uma crescente indústria de turismo. E esses turistas não conseguem permanecer calados ao voltar para suas casas. E, segundo, que turistas inteligentes vão além da fachada fabricada pelo governo. Tome como exemplo Hal Nathan, presidente da Fundação para o Povo da Birmânia. Após sua primeira visita a Mianmar em 1995, o economista fundou sua organização sem fins lucrativos na Califórnia (EUA). Vinte e uma viagens depois, Nathan ensinou centenas de viajantes a como observar o país com responsabilidade. “Há uma forma boa e uma não tão boa de viajar à Birmânia”, diz, “A melhor forma é aprender antes de ir, acessar as pessoas quando se está lá e nunca tomar atitudes políticas”.

Nathan está certo. A única coisa pior do que permitir que seu dinheiro vá para um mau regime é permitir que esse regime explore seus cidadãos sob um véu de obscuridade.

A jornalista norte-americana Stephanie Pearson foi editora sênior da Outside norte-americana entre 1998 e 2008


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2008)







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