O plano perfeito

Por Fernanda Franco

O ECOMOTION/PRO já não é mais novidade para equipes brasileiras. Mas a sexta edição, realizada entre 2 e 7 de novembro, teve um sabor a mais: valeu como a final do campeonato mundial de corrida de aventura, o Adventure Race World Championship (ARWC), e colocou as melhores equipes do mundo para cruzar os estados de Ceará, Piauí e Maranhão.

Cerca de 40 dias antes da largada, a organização liberou algumas informações sobre a prova, como o tamanho dos trechos de cada modalidade, clima e terreno por onde as equipes passariam. Para completar os 520 quilômetros, elas teriam que correr 130 quilômetros, remar 140 quilômetros (divididos em dois trechos) e pedalar mais 277 em todos os tipos de terreno (praia, estrada, areia fofa e trechos espinhentos da caatinga) – tudo isso debaixo do escaldante sol do árido Nordeste, amenizado pelo vento apenas na região litorânea e, em vários trechos, com pouquíssima água potável disponível.

A partir dessas informações, equipes trataram de adaptar seus treinamentos e montar estratégias e engenhocas para a prova. Para as brasileiras, o objetivo era ser uma das primeiras equipes nacionais ou embolar a disputa com veteranas do Ecomotion/Pro como a espanhola Buff (campeã de 2005 e 2007), a neozelandesa Merrell Zanfel (de Robyn Benicasa), a francesa Wilsa Helyhansen e a norte-americana Nike, duas vezes campeã mundial que ainda não competira no Brasil. Já para as equipes de fora, sempre se revezando nas melhores colocações, a motivação era o título de campeã do mundo.

Conversamos com algumas equipes antes da largada, prometendo a elas que suas estratégias seriam publicadas somente depois do início da prova. Quando você lê esta revista, provavelmente os vencedores do Ecomotion/Pro já foram definidos, e assim você poderá saber se as estratégias a seguir foram eficientes ou não. A cobertura completa da corrida estará em nossa edição de dezembro.

Remando na banheira

Os 140 quilômetros de canoagem em barcos de plásticos sit-on-tops (abertos), apelidados pelos brasileiros de “saboneteiras”, renderiam um total previsto de 23 horas nesses barcos de pouca performance. Para minimizar esse tempo, as equipes brasileiras intensificaram os treinos e investiram em adaptações para aproveitar o vento da região. Em nenhuma outra edição do Ecomotion/Pro as condições locais foram tão propícias para o velejo.

A brasiliense Sundown Oskalunga percorreu todo o perímetro do lago Paranoá (cerca de 80 quilômetros) em caiaques oceânicos duplos, que a princípio seriam utilizados na prova. Camila Nicolau, arquiteta e remadora há 13 anos, foi a responsável por desenvolver a base para encaixar as velas industrializadas, feitas para caiaques oceânicos (já que não existem no mercado modelos específicos para os sit-on-top).

Uma das equipes brasileiras mais forte na água, a Motorola SOS Mata Atlântica apostou, além dos treinos longos e das velas oceânicas, em um porta-mapa para caiaques desenvolvido pelo integrante Mateus Ferraz “O mapa fica no meio das pernas e é possível mexer nele com as próprias pernas, sem tirar as mãos do remo. A idéia é não parar de remar.”, explicou. A base das velas da SOS também servirá de apoio para os pés.

Já a paulista Selva remou 75 quilômetros ao redor da ilha de Santo Amaro, no litoral sul paulista, nos lentos sit-on-tops. Caco Fonseca, o navegador, decidiu fabricar sua própria vela: com mastro de bambu e base produzida por um marceneiro. Eduardo Sarhan, da Camaleão, foi além: preparou um sistema de barras de ferro que une os dois caiaques e ainda um esquema de leme controlado pelos pés. “Assim podemos parar para comer ou dormir, e ainda permitir que algum integrante descanse”, explicou.

As equipes internacionais, como a Team Sole e a Orion Health, mais acostumadas com remadas longas e técnicas, disseram confiar em seus treinos. A atleta Robyn Benyncasa, da Merrel/Zanfel, por via das dúvidas reforçou a preparação e percorreu em setembro 160 quilômetros de caiaque numa prova no rio Colorado. Seu parceiro, Greg Letts, completou provas de canoagem em Yukon Territory, seu quintal de casa, no Canadá.

Pedal espinhudo

Uma das dúvidas dos competidores era como superar os 277 quilômetros de mountain bike, maior distância da prova, sobre a areia e os espinhos da caatinga. Quais os melhores tipos de pneu e selante, para impedir furos? E a calibragem mais eficiente? Todas as equipes nacionais especularam sobre a grossura do pneu a ser usado e as possíveis mudanças para cada perna, mas apenas a QuasarLontra testou efetivamente a interação dessas variáveis em terrenos similares ao da prova. “Não queríamos ‘achismo’. Fizemos um treino específico na praia para acertar isso e sentimos na perna como a calibragem faz diferença”, explicou Rafael Campos. Ele relembrou o Elf Authentic, prova expedicionária realizada no Nordeste em 2000, em que a equipe desistiu por problemas com as bikes – entre eles, sete pneus furados num trecho de 90 quilômetros. Para proteger suas câmaras e evitar furos, a Sundown Oskalunga trocou o conhecido Mr. Tuff por um selante local: o couro de bode. Mas a equipe só testaria sua eficiência em terras cearenses.

Ecomotion a vapor

“Muitas equipes sofrerão de hipertermia, insolação, desidratação e bolhas nos pés e lábios. Serão 12 horas de sol na cabeça. A melhor estratégia é manter-se hidratado e protegido do sol”, alardeou o diretor técnico, Tiago Valois, depois de ter batizado um dos trechos da prova de Caldeirão do Ecomotion.

Ao saberem das condições climáticas da prova, os eternos favoritos da Nike tentaram afastar de si os holofotes. “Estamos ansiosos para correr na América do Sul, mas costumamos ir bem melhor em provas montanhosas e frias. O calor, a umidade e ausência de água em alguns trechos serão muito desafiadores para nós”, declarou Monique Merrill. Rafael Campos, que correu todos os mundiais desde 2004, acredita, porém, que o calor não irá abalar as equipes de ponta “Eles fizeram outras provas em regiões quentes e estão acostumados”, declarou.

Mats Anderson, da sueca Bjufors confirma a tese de Rafa: ele correu recentemente o Primal Quest, na quente Utah (EUA) e terminou na 6a colocação. Seu parceiro de equipe, Neil Jones, ficou com o 3o lugar. O segredo? Menos equipamentos e mais água na mochila. Outra que já chegou aclimatada ao Brasil foi a neozelandesa Robyn Benicasa: ela correu em setembro uma prova de ciclismo de mais de 800 quilômetros no vale da Morte, região de clima desértico na Califórnia. Foram 33 horas de pedal ininterrupto, com uma elevação de 11 mil metros. “Uma loucura!”, descreveu Robyn. Quem estava longe do calor – como o neozelandês Ian Edmond e a brasileira (residente na Nova Zelândia) Nora Audrá, ambos da equipe Sole – teve que usar a criatividade. O casal chegou a treinar dentro da sauna, “dedurou” a companheira de equipe Karen Lundgren.

A Selva, aproveitando os conhecimentos técnicos do navegador Caco, que além de corredor e treinador é também doutor em fisiologia do exercício, embarcou antes para o Ceará. “Vamos chegar cinco dias antes e treinar leve nos horários mais quentes. Estudos mostram que isso é suficiente para o metabolismo se adaptar ao novo ambiente”, revelou Caco.

Camelando no nordeste

Trechos longos, calor infernal e pouca (ou nenhuma) água pelo caminho. Pensando nisso, teve equipe que treinou carregando mais líquidos na mochila do que o normal. “Queremos sempre ter uma margem maior de água para cada trecho. Corremos quatro horas e meia com bastante água nas costas para simular o que teremos que fazer na prova”, contou a kalunguete Camila.

Já Shubi Guimarães, da Motorola SOS Mata Atlântica, revelou uma tática para encontrar água no sertão, usada pela equipe para conquistar a vitória no Brasil Wild Extreme, em abril. “Nesse tipo de local, o povo tem o costume de captar água da chuva. Todo ranchinho tem um tipo de calha na telha ou no pé de bananeira que escorre até uma cuia no chão”, contou.

O calor também pode trazer problemas de pele ocasionados por fungos, então muitas equipes apostavam na adaptação das roupas para o clima. “Usaremos peças mais largas, de cor clara e com costuras para o lado de fora, para evitar o atrito com a pele e areia juntos”, contou Sarhan, que desenvolve roupas esportivas. No lugar das tradicionais camisetas de manga longa sob o colete de provas, apenas manguitos.

Beduínos do nordeste

“Saber caminhar nas dunas também será um fator de distanciamento entre as equipes. Eu particularmente andaria descalço e só usaria papete ou sandália se a areia estivesse muito quente”, confessou, em sigilo, Tiago Valois, depois de fazer o mapeamento da prova. A idéia de Tiago nem de longe passava pela cabeça dos atletas. A principal preocupação deles era como manter a areia fina longe dos pés em imensidões de areia como a dos Lençóis Maranhenses, possível ponto de passagem da prova.

As equipes internacionais como Merrell, Orion Health e a Castilla y León és Vida partiram para o Nordeste com bons tênis e polainas para serem fixadas neles, diminuindo a entrada de areia. A Nike cogitava a idéia de usar uma espécie de capa de lycra por fora do tênis. Mas a idéia mais inovadora mesmo parecia ser a estratégia de Paul Romero, da equipe Sole, contada por sua mulher Karen. “A teoria de Paul é deixar o tênis encher de areia, e aí não caberá mais nada dentro que possa incomodá-lo”.

A Quasar Lontra testou e aprovou uma meia com trama mais fechada. Para outras equipes, cobrir o tênis todo era a única alternativa. Depois de inovarem no Brasil Wild usando polainas para sapatilhas de bike adaptadas, a SOS vai aperfeiçoar ainda mais a engenhoca. “Elas se desgastaram muito depois de 40 quilômetros. Agora terão que durar todos os trechos de dunas e serem mais fáceis de tirar nas transições”, avaliou Mateus. A Camaleão ia pelo o mesmo caminho. Hadi, da equipe Faap Aventura, não acreditava que polaina alguma pudesse segurar a areia. “Vamos de papete ou de meia, para manter o pé limpo”, simplificou.

O problema não é só a areia: é a areia com o vento. A Sundown Oskalunga foi até a região de Fortaleza treinar e sentiu na pele a areia chicoteando no corpo. “É por isso que os caras do deserto usam roupas largas e turbantes na cabeça. Venta muito e as rajadas são violentas. Vamos adotar o visual”, disse Camila. Já Rafa Campos apostava nas roupas com proteção solar, e Sarhan nas bandanas para o rosto e óculos que vedassem completamente os olhos.

A equipe carioca Start Lagartixa surgiu com uma proposta inédita – adaptar os bastões de caminhada, aumentando a base para que ele não afundasse tanto na areia durante o trekking.


DIVÃ DA AVENTURA

Trabalhar em conjunto é algo que todo corredor de aventura aprende ao longo das provas. Quanto mais experiente e mais integrado for o time, mais fácil os atletas superarão os imprevistos e resistirão à fadiga física e emocional. “As coisas quebram, a gente se perde. Quem consegue resolver mais rápido esse tipo de problema, se dá melhor. Com sinergia tudo é mais fácil e não é preciso gastar energia conversando”, reflete Shubi. Diante dessas questões, duas equipes, a SOS e a Selva, decidiram tratar o relacionamento entre a equipe mais profissionalmente e começaram a fazer sessões de terapia em grupo, assistidos por psicólogos.

Nos caso da SOS, as primeiras sessões quase causaram um rompimento da equipe – mas também mostraram novas formas dos quatro integrantes trabalharem juntos. Compartilhar as responsabilidades parece ter sido uma das principais, já que eles decidiram que, além da prova ser dividida em trechos para que cada um navegue um pouco, também haverá um integrante “reserva” para dividir as dúvidas com o navegador ou substituí-lo, se necessário. Além de tentar minimizar a frustração do erro, a idéia da SOS é não deixar o ânimo cair caso o erro aconteça. “Não podemos deixar a emoção afetar a performance”, atesta Mateus. Eles também resolveram criar a figura do “anjo”. “Vamos cuidar uns dos outros e só de você ter esse cuidado, já faz a diferença. Vamos estar sempre os quatro juntos. E eu acho que assim a equipe ganha”, afirma Shubi.

A psicóloga da Selva é Vanessa Cabral, corredora de aventura especialista em psicologia do esporte com tenistas e nadadores. Marcio Campos achou que as idéias de Vanessa poderiam melhorar a comunicação da equipe. “A reclamação dele era que na hora do desânimo ou da dor a comunicação parava e a performance caía”, contou Vanessa. “É natural. À medida que o stress emocional e físico aumentam, cada um se fecha e liga o sensor de sobrevivência”, complementa.

Vanessa trabalha para que cada atleta descubra suas forças e suas fraquezas, e também dos companheiros. “Dessa maneira é possível entender o que está por trás de uma dor no estômago e assim desenvolver estratégias para se ajudarem mutuamente”. A equipe é filmada durante as sessões e depois escutam e ouvem a si próprios para exercitar a autocrítica. Criando esse novo canal de comunicação, Vanessa serviu como intermediária para que Márcio e Caco resolvessem um conflito velado. “Mesmo se conhecendo há 11 anos, havia coisas difíceis de um falar para o outro. Mas as tensões foram dando lugar a sentimentos comuns entre eles”, conta Vanessa.

Um dos trabalhos que vem sendo realizado pelo grupo antes do Mundial é a elaboração de um boneco que represente a equipe. “Eles foram dando nome, personalidade, características e fraquezas ao boneco. Na verdade eles deram forma e corpo à equipe, identificando quem é alma, coração e cabeça. Criando um boneco, os egos se anulam e eles consistem uma coisa só, eliminando qualquer competição inconsciente entre eles.” Faz parte também reforçar feitos da equipe que reflitam sua personalidade, como o salto de 20o pra 2o no Brasil Wild Extreme. “A Selva tem uma capacidade de superação incrível. Eles precisam se apoderar disso e não deixar se abater com os imprevistos”, completou a psicóloga.

Para o Ecomotion PRO, sua primeira prova depois do início das conversas em grupo, a Selva partiu sem nenhuma lição de casa. Depois do Mundial, eles deverão se encontrar para conversar sobre o que funcionou e o que falhou, e também para fazer um processo de desaceleração com atividades de fundamentos específicos e massagens entre eles. “É importante para conhecer o corpo do companheiro de equipe e manter o espírito de time”, finalizou Vanessa.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2008)







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