Sonhos gelados


EXPEDIÇÃO: Will arrasta trenó em treino na região de Fins, Noruega

Por Camila Junqueira
Fotos por Acervo Shackleton Foundation

A BORDO DO NAVIO NIMROD, o explorador anglo-irlandês Ernest Shackleton içou as velas no dia 3 de agosto de 1907 com o objetivo de alcançar o extremo sul do planeta. Um ano e meio depois e a 97 milhas náuticas (180 quilômetros) da meta, ele deu meia-volta. Numa decisão de líder, Shackleton preferiu não colocar em risco a vida de seus homens e tomou o caminho pra casa em 9 de janeiro de 1909, depois de fincar a bandeira britânica na latitude 88º 23’ – o lugar mais austral até então explorado pelo homem.

Em 1914 (depois de os 90º serem alcançados em 1912 pelo norueguês Roald Amundsen), Shackleton voltaria à Antártica para mais uma frustrada expedição, que tinha como objetivo a travessia do continente a pé. Desta vez o navio Endurance foi engolido pelo gelo, e ele e seus 27 companheiros passaram pouco mais de um ano isolados, protagonizando uma das histórias de sobrevivência mais impressionantes da aventura.

O projeto permaneceu inacabado até janeiro de 2009, quando, cem anos depois da viagem do Nimrod, seis descendentes de Shackleton e de seus homens montaram a Shackleton Centenary Expedition (Expedição do Centenário Shackleton) para refazer os passos de Schackleton. E eles não apenas foram até o ponto alcançado pelo irlandês, mas até o polo em si.

Tanto a Nimrod quanto a Centenary começaram a marcha de quase 1,5 mil quilômetros na ilha de Ross – a diferença é que os homens de Nimrod atracaram e os de Worsley pousaram. O grupo de agora, que partiu 66 dias antes do aniversário da desistência de 9 de janeiro de 1909, escalou na sequência o monte Erebus, o vulcão mais austral do planeta, até o abrigo Shackleton, no cabo Royds, já no extremo oeste da ilha de Ross. Eles então atravessaram a plataforma de gelo Ross até o continente sobre esquis, com cada homem arrastando seus suprimentos em trenós individuais. Depois, ascenderam a geleira de Beardmore até um platô polar, a 740 quilômetros do pólo, para então encararem uma longa e dura marcha até o lugar mais ao sul alcançado por Shackleton.

Ali, a Centenary foi dividida em dois: o Time do Gelo (formado por Henry Worsley, Will Gow e Henry Adams), que percorreu em 66 dias a mesma rota dos homens da expedição Nimrod até a latitude 88º 23’; e o Time das Últimas 97 Milhas (Tim Fright, Matty McNair, Dave Cornell, Andy Ledger, Richard Gray e Keith Abel), que fez em dez dias o trecho final até o pólo Sul, começando no dia 9 de janeiro.


BARBA FEITA: Henry Adams, Will Gow e Henry Worsley, do Time do Gelo, no começo da expedição

A seguir, Tim Fright, 25 anos, sobrinho-neto de Frank Wild, braço direito de Shackleton, conta como foi a experiência.

GO OUSTIDE: Como surgiu a ideia de refazer os passos de Shackleton?

Tim Fright: A ideia foi de Henry Worsley. Os três membros do Time do Gelo viajaram 799 milhas náuticas (1.471 quilômetros) para finalizar um negócio familiar não terminado, mas a intenção maior foi manter vivo o espírito de liderança de Shackleton, tão fundamental na sobrevivência dos membros do Nimrod e do Endurance.

Quem desempenhou o papel de líder de Shackleton?

Foi o Worsley. Mas como tudo deu certo, a figura do líder não foi tão importante como na expedição de 1909.

Da intenção à realização, o que foi necessário?

Quase cinco anos de planejamento, arrecadação de 450 mil libras [mais de R$ 1,5 milhão] e estruturação da Fundação Shackleton. A preparação física também foi importante.

Como foi o treino de vocês?

Seguimos um treinamento intensivo no gelo na Noruega, na ilha Baffin (Canadá), na Escócia e na Áustria, com a assistência do Instituto Médico Olímpico de Londres. E fizemos muito fortalecimento em academia.


A expedição foi mais fácil ou difícil do que vocês esperavam?

Mais difícil. Todos sofreram muito com a altitude, sobretudo o Time do Gelo, que sentia um desgaste muito mais intenso que nós. O ar era muito rarefeito.

O planejamento funcionou?

De maneira geral, sim. Tivemos muita sorte com o tempo. A neve estava numa consistência boa para esquiar. O incidente mais significativo aconteceu com o Time do Gelo, quando atravessavam o glaciar de Beardmore. Os crampons de alumínio, que eles preferiram aos de aço, não aguentaram a rigidez do terreno. Parecia que andavam sobre concreto vestindo espetos.

O que foi mais importante no sucesso da expedição?

A preparação, o planejamento e os instrumentos de localização e comunicação de alta tecnologia (telefones satelitais e GPS).


Vocês pretendem refazer também a Expedição Endurance?

Pretendemos. O centenário da Endurance será em agosto de 2014, então temos tempo para decidir.

Frio, duro, rápido


Ray Zahab e Kevin Vallely falam sobre sua segunda expedição ao polo Sul, que quebrou mais um recorde (MICAH CRATTY)

No dia 6 de janeiro de 2009, Ray Zahab, Kevin Vallely e Richard Weber bateram o recorde da mais rápida expedição ao polo Sul sem apoio e assistência, completando a viagem em menos de 34 dias. A Outside norte-americana conversou com Ray e Kevin, já em casa, no Canadá.


OUTSIDE: Qual é a sensação de estar fora do gelo?

Ray: É ótima. Quando estou fora, penso muito nas coisinhas na vida diária que, normalmente, passam despercebidas. Um exemplo é trocar fraldas: não é tão ruim quando a saudade do bebê é muita.

A viagem valeu a pena?

Kevin: Mesmo se não tivéssemos batido o recorde, teria valido. É fantástico planejar uma coisa durante muito tempo, estabelecer um objetivo, daí sair e cumprir.

Havia tensão entre vocês?

Kevin: Nos demos muito bem, o que é raro nessas situações. Lembro-me de ler que os participantes de expedições polares têm o mesmo relacionamento que têm os presos entre si. Mas todas as noites eu chorava de rir.


Como é o ambiente antártico?

Ray: Minha perspectiva do terreno é diferente, pois eles estavam usando esquis e eu estava de raquetes de neve. Para mim, a neve fofa era absurdamente difícil. Quando penso na Antártica, penso em neve.

Kevin: O platô antártico é o lugar mais solitário do mundo. A única criatura viva é um inseto de 1 centímetro, que vive no alto de uma montanha há milênios, comendo bactérias. Teoricamente ele foi levado ali pelo vento.


Quais temperaturas vocês enfrentaram?

Kevin: Perdemos nosso termômetro no segundo dia, então estimávamos as temperaturas pela composição da manteiga. Se a gente conseguisse roer a manteiga, estaria menos 20 graus. Quando ela começava a se partir em pedaços, estava entre menos 30 e menos 40. E quando quebrava feito vidro, estava menos 50. Em nenhuma vez ela se quebrou como vidro, mas se partiu bastante. Aliás, acabei de voltar do dentista, onde consertei um dente quebrado ao tentar morder um pedaço de manteiga.

O treino te preparou para a viagem?

Kevin: Não dá para treinar para uma coisa desse tipo. Se você está treinado para andar 12 horas por dia no começo, é porque treinou demais e vai ficar arrasado no final. Eu estava ligeiramente destreinado. Sofri muito nas primeiras semanas. Depois, me senti forte até o fim.

Você cansou da comida?

Kevin: Sim. Ali, a única dieta que funciona é a de alta taxa de gordura. E eu sou vegetariano! Foi muito difícil eu passar de um cara que come tofu e castanhas para alguém que só come carne, banha e manteiga.

Qual foi a sensação quando vocês chegaram ao polo?

Ray: Quando botamos a mão no polo Sul, a sensação foi de “uau, terminamos! Agora não temos mais que puxar essa porcaria de trenó”.

Kevin: Encontramos uma expedição e eles disseram “na nossa barraca tem uma garrafa de vinho e duas cervejas”. Então, tomamos tudo de café da manhã, depois fomos dormir.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de março de 2009)







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