Cara a tapa

Por Marilin Novak

“O TREINAMENTO ACABA DE COMEÇAR!”. Desde o primeiro contato via telefone até o último segundo, essa é a frase que mais sai da boca dos facilitadores, as pessoas que conduzem o treinamento Olho de Tigre – uma dinâmica em grupo de alto impacto motivacional, com 16 horas ininterruptas de atividades. Ao longo desse tempo, a intenção deles é tirar os 35 participantes do prumo (a qualquer custo, mas sem esforço físico, exceto pelo cansaço psicológico), com o intuito de torná-las seres mais motivados e fortes emocionalmente, principalmente no ambiente de trabalho.

Como praticante de esportes outdoor, eu já passara por alguns perrengues um pouco maiores de que aqueles dados em tradicionais treinamentos empresariais, nos quais engomadinhos de grandes corporações praticam esportes “radicais”, como rafting, rapel e tirolesa. Eu já colocara a costura de forma errada na rocha ao escalar guiando (o que me deixou alguns minutos solando, a 40 metros de altura, até consertar o vacilo). Já descera de caiaque uma corredeira classe IV (numa das vezes cai no refluxo e quase me afoguei). Já me perdera na floresta à noite e chovendo numa corrida de aventura, capotara de bike ladeira abaixo, vira cobra grande no mato. Mas no Olho de Tigre não se pratica nenhuma atividade outdoor, e as 16 dinâmicas acontecem dentro de um salão de eventos de um hotel.

Chegamos ao local às 7 horas para tomar café da manhã, entregar todos os pertences pessoais e fazer o último xixi sem hora marcada. As atividades começam às 8h30 de sábado e terminam a 1 hora do domingo. Antes da largada, os participantes se comprometem a não contar depois pra ninguém o que vai rolar ali, pra não liquidar com o fator surpresa dos futuros participantes – meu namorado jura que o que não posso contar é por que passei o dia inteiro fazendo sexo tântrico grupal. Não foi o caso (existe este tipo de treinamento?), mas de qualquer maneira, não vou narrar aqui o que rolou naquela dependência, apenas dar algumas pistas e afirmar que, sim, eu vi a porca torcer o rabo pra muitos participantes.

Pra começar, nenhuma das vítimas, em momento algum, é tratada pelo nome. Somos todos um número (eu era o 15) e assim seríamos até o fim. Mais ou menos a metade das atividades nos leva a sensações e emoções boas (com direito a apelações do tipo uma gravação da voz do Ayrton Senna de fundo, falando sobre a persistência), e a outra metade a sensações ruins: raiva, submissão, ansiedade, pressão psicológica, arrependimento, vingança, e por ai vai.

Parte do sucesso dos resultados vem do poder de convencimento dos facilitadores, principalmente dos idealizadores do programa – Orlando Pavani Júnior, Márcia Colombani Pavani (esposa dele) e Denise Pavani Scucuglia (irmã dele). O trio merece um Oscar pela atuação! Em nenhum momento você se dá conta que eles estão representando. Eles choram olhando nos seus olhos, se descabelam de forma ensandecida, encarnam o Capitão Nascimento num piscar de olhos. E os participantes, como patinhos, acreditam em tudo.

As dinâmicas também acontecem em uma sequência que as tornam convincentes. Uma é interligada à outra, e você segue acreditando que tudo é real – por exemplo, depois de tantas punições, como não acreditar que o não cumprimento da tarefa faria você excluir do treinamento um companheiro seu, mesmo que este tivesse feito a parte dele? É o suficiente para causar pânico generalizado por causa da responsabilidade. Cerca de 3.800 pessoas já passaram pelas mãos dos Pavani e apenas 1% abandonou o barco, e eu tive a “sorte” de assistir a uma dessas desistências exatamente nesta prova.

Pra agarrar no calcanhar de Aquiles das pessoas, os facilitadores se valem principalmente de três questionários preenchidos pelos participantes na semana anterior ao evento (no dia, tais informações – um resumo de quem e como você é – ficam de forma codificada no seu crachá): a Janela de Johari, criada por dois psicólogos e que explicita como as pessoas se relacionam com as outras; o Egograma, criado por um psiquiatra para analisar o ego; e um questionário sobre religião, mortes na família, virtudes, falhas e outras particularidades.

O que eu senti sob tamanha pressão? Bem, acho que eu sou mais impermeável do que imaginava. Juro que fui honesta nos questionários, mas na hora da berlinda não chorei nem uma única vez, muito menos desmaiei, vomitei, gaguejei (como vi muitos fazerem) ou sai da sala correndo, gritando e xingando pra nunca mais voltar, como o desistente citado acima. Confesso que tive vontade de dar risada em algumas situações, mas as colegas sentadas ao me lado choravam tão copiosamente que eu, em solidariedade, também fiz cara de desesperada.

Não sei o que aconteceu. Acho que não tirei a roupa de repórter. Ou realmente sou insensível. Ou, pior, medrosa quanto aos meus sentimentos. Ou quem sabe os esportes de aventura realmente nos deixam mais fortes. Os facilitadores dizem que às vezes você termina o treinamento e não saca nenhuma mudança no momento, nem no dia seguinte. Mas, segundo Orlando, os resultados podem começar a surtir efeito dias depois, às vezes meses ou até anos (por isto, mesmo depois do fim, eles dizem que “o seu treinamento acaba de começar”). Segundo ele, é comum participantes do Olho de Tigre decidirem fazer grandes mudanças na vida depois do curso. Pra mim, até agora, a experiência não bateu, não causou nenhum cataclismo, catarse, síncope ou qualquer tipo de surto. Continuo a mesma pessoa. Mas vou terminando o meu relato por aqui, pois, de repente, estou sentindo uma necessidade urgente de bater um papo muito sério com a minha chefe. (R$ 670 pessoa física ou R$ 800 jurídica; olhodetigre.com.br).

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2009)







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