O rei da dor


ÍDOLO: Mural ao lado do teatro Montalban em Hollywood (EUA), celebrando a volta de Lance às competições

Por Christopher Keyes

“Meu jeito de competir era muito duro e, algumas vezes, eu era um personagem espinhoso, abrasivo. Eu não tinha – e ainda não tenho – muito tempo para papinhos e bobagens. Acrescente-se a isso a suspeita de doping, o fato de eu ter abandonado o ciclismo e de não estar totalmente no esporte. Quer dizer, eu entendi essas coisas e estou aberto para conversar a respeito. Mas algumas dessas pessoas são muito imaturas. E tenho uma péssima notícia para elas: estou voltando. E estou retornando em nome de 8 milhões de pessoas que morrerão este ano no mundo, e acho que essa é uma razão nobre para eu voltar à minha bike. As pessoas que falam mal e reclamam do meu retorno veem a Fundação Lance Armstrong como uma fraude mas, com o perdão da má palavra, fodam-se elas. Eu não tenho tempo para isso. Minhas intenções são puras e, como eu disse, não param por aqui”.

ESTA É A RESPOSTA CURTA. Para ser justo, a pergunta que Lance Armstrong estava respondendo não era “por que você está voltando?” ou “você está preparado para voltar?”. Era “você está surpreso com todo o drama a respeito da sua volta?”. Mas, com poucas frases afiadas, ele respondeu às três. Ele está voltando à sua bike porque quer tornar internacional sua luta contra o câncer. Não, ele não está surpreso com todo o drama. E se o mal guardado segredo de seu sucesso no passado era a habilidade única de Lance de converter a ira que sentia dos críticos em combustível para suas pedaladas, então a resposta é sim, Lance Armstrong está preparado.

Hoje é o Dia dos Veteranos, 11 de novembro de 2008, e estamos na casa de Lance em Austin, estado do Texas (EUA). Cheguei aqui imaginando como os últimos três anos afetaram seu tão bem documentado espírito competitivo. Durante esse período, o mundo assistiu como o Atleta Lance – sobrevivente de um câncer, arrasador de competições, sete vezes campeão do Tour de France – transformou-se publicamente em Celebridade Lance, um atleta ligeiramente mais pesado e amigável, que correu impressionantes maratonas abaixo de três horas, mas também figura constante em tabloides, graças a uma série de namoradas famosas, à presença certa em festinhas, ou graças às suas corridas de torso nu junto com seu amigo texano Matthew McConaughey. Mas quem poderia criticar essa criatura? Dos 15 aos 34 anos ele viveu uma vida quase monástica, empenhado pela simples vontade de ser o ciclista mais rápido do mundo. Quando essa fase terminou, ele havia mais do que experimentado a boa vida. Mas agora ele está mais velho.

É difícil imaginar uma lenda de 37 anos não só vencer o relógio biológico, mas também voltar rapidamente à sua vida ascética.

Minhas primeiras horas com Lance pareceram confirmar essa ideia. Passamos o começo da tarde numa sessão de fotos em sua loja de bike em Austin, a Mellow Johnny’s (o nome veio da pronúncia ianque das palavras francesas maillot jaune, que significam “camiseta amarela”). A loja de 1.400 metros quadrados, instalada num espaço industrial reformado no centro da cidade, é repleta de fotos e souvenirs de Armstrong – camisetas amarelas, bikes de corrida aposentadas e fotos gigantes de 3 por 3 metros, de momentos clássicos do Tour de France. É um santuário. É também o tipo de lugar que pode apavorar um treinador, receando que seu atleta-estrela acabe afogado em seu próprio sucesso.

Durante a sessão, Lance esteve relaxado e simpático. Ele fazia brincadeiras com os funcionários da loja, falava da recente viagem à Califórnia para treinar com os fuzileiros norte-americanos, e até posou para fotos com fãs no estacionamento. Depois disso, viajamos meia hora de carro num trânsito péssimo, e nos sentamos em seu home office, rodeados por uma quantidade ainda maior de lembranças: as sete taças azuis do Tour de France alinhadas na prateleira. Lance se recosta e coloca os pés descalços sobre a mesa. Eu sei qual seria minha primeira pergunta.


OUTSIDE: Você está relaxado demais para conseguir a Camiseta Amarela?

LANCE: Acho que estou mais relaxado do que naqueles anos, entre 1999 e 2005. Mas é um relaxado diferente. Ainda presto atenção ao que está sendo dito a meu respeito, mas não guardo mais as coisas aqui dentro, como eu fazia antes.

Que tipo de coisas?

Antes eu era assim: “Então tá, você escreveu aquelas coisas e agora eu não falo mais com você!”. Não faço mais isso. Eu sento e converso com a pessoa, digo a ela que foi uma matéria idiota, de merda, e por que eu penso assim. Se, ao final da conversa só pudermos concordar em discordar, então está tudo bem.

Mas algumas coisas de que você falava costumavam motivá-lo. Eram seu combustível.

É, mas a minha cabeça está renovada, mais forte e motivada. De 1999 até 2001 minha mente vivia num estado complicado, como em uma briga. Isso piorou um pouco no final [da minha carreira]. Mas ainda conseguia encontrar coisas para me motivar. E vou encontrar mais uma vez. Sempre há pequenas iscas por aí.

Você quer dizer, material de muro de recados.

Bom, eu não tenho um muro de recados, mas tenho uma ótima memória. E isso não é uma ameaça, é só um fato.


TROPA DE ELITE: Lance testa as suas habilidades junto aos fuzileiros norte-americanos
(Foto: Elizabeth Kreutz)

E É UM FATO MESMO. DOIS ANOS ATRÁS, sentei-me neste mesmo lugar – terceira almofada do sofá a partir da porta do escritório – perto de Lance, que também se sentou no mesmo lugar: uma poltrona de encosto alto, perto da lareira. Eu estava ali para fazer uma matéria de capa para a edição de dezembro de 2006 da Outside, a respeito de seu primeiro ano de aposentadoria. Eu tinha acabado de preparar meu gravador digital na mesa, e estava dando uma última olhada nas minhas anotações, quando Lance fez a primeira pergunta da entrevista:

“O que foi aquela capa com o Floyd?”

Ele se referia à capa da Outside norte-americana de julho de 2006, que mostrava uma foto em preto- e- branco do rosto de Floyd Landis, com a chamada “Lance Quem?”.

“Quero dizer, dois anos antes eu estava na capa com a chamada ‘O Maior Atleta do Mundo’”, continuou, sem dar brecha para eu escapar. “E depois é ‘Lance quem?’”.

Concordamos em discordar, e a entrevista foi perfeitamente amistosa depois disso. Essa foi a minha primeira experiência com “a memória”, a forma como Lance guarda críticas e insultos para usar mais tarde. Ao conversar com ele tem-se a sensação de que ele memorizou cada palavra que já tenha sido escrita a seu respeito, independentemente da categoria ou relevância da fonte. Seus aliados mais próximos confirmam. “Lance sempre tirou sua motivação da ira e do ressentimento”, declarou seu treinador, Johan Bruyneel, ao jornal belga La Dernière Heure.

Desta vez, coloquei meu gravador na mesinha de café. Os dedões da mão de Lance estavam mexendo em seu BlackBerry, atualizando sua conta do Twitter, hábito que começou há dez dias e já atraiu mais de cinco mil seguidores. Um exemplo de post: “Terminei o treino na academia (o melhor até agora) e de pedal. Logo mais, vou almoçar. 10h47, 13 de novembro”. Falamos um pouco sobre blogs, e Lance comentou sobre alguns posts no Outside Online que o espetaram recentemente. Ele realmente lê tudo e se lembra de tudo.

Descreva como foi o telefonema que você deu a seu treinador, Johan Bruyneel, contando que iria voltar.

[Risos] Ele achou que era piada e disse: “Liga de novo amanhã, quando não estiver bêbado”. Ele não esperava por essa.

Ninguém esperava. Todo mundo com quem conversei que trabalha com você me disse que estava chocado. Foi uma decisão totalmente impulsiva?

Não, foi um processo gradual. Neste verão eu estava treinando para a maratona de Chicago, só treinando para ficar em forma. Estávamos puxando ferro, correndo, correndo em trilha, pedalando – um monte de coisas diferentes. Comecei a perder peso e a entrar de cabeça nos treinos. Isso tudo estava acontecendo enquanto o Tour era disputado, e eu estaria mentindo se dissesse que não fiquei animado.

Foi muito difícil assistir ao Tour depois da sua aposentadoria? Você, às vezes, pensava: “Eu poderia ter ganhado mais um”?

Em nenhum dos Tours eu pensei isso. Assisti ao de 2006 e ao de 2007, e nunca me ocorreram tais pensamentos. Assisti como fã. A gente faz observações sobre a corrida, o estilo, as táticas e estratégias, o ritmo, a atitude. Mas em nenhum momento me veio à cabeça, nem durante o Tour de 2008.

Todo mundo sabe que você manteve a forma, mas não é como se estivesse treinando para uma temporada de ciclismo. Por que voltar a isso?

Eu não me importo com a parte do treino. Eu gosto de sofrer, gosto de me submeter a treinos duros e da estrutura que é preciso ter para fazer isso. Minha vida foi mais complicada nestes últimos anos fora da bike. Era tipo “você tem de ir ali e dar uma palestra” ou “tem de aparecer aqui para tal coisa…”. É uma vida mais dura para mim, pois há uma estrutura menor e é menos físico. E o que eu gosto é de competir. Pode ser uma prova local, ou o 12 Horas de Snowmass [prova de MTB no Colorado]. Qualquer uma me dá a mesma sensação. Eu tenho frio na barriga como todo mundo. Me dê uma linha de largada, uma de chegada e uma bike e… estou dentro.


REESTREIA: O heptacampeão (à esquerda) treina na Espanha com o esloveno Jani Brajkovic, integrante de sua nova equipe, a Astana
(Foto: Elizabeth Kreutz)

DÁ PARA DIZER ALGUMA COISA a respeito da importância global de Lance Armstrong pelo fato de a Vanity Fair, revista norte-americana que cavou uma entrevista exclusiva a respeito do seu retorno em 2008, ter conseguido guardar um segredo de 30 anos sobre a identidade do Garganta Profunda (personagem do caso Watergate, que derrubou o então presidente dos EUA Richard Nixon, em 1974), mas não ter conseguido manter em segredo a notícia-bomba de Lance antes da impressão da revista. A novidade voou tão rápido pela internet que o veículo se viu forçado a publicar na internet o furo de reportagem.

Foi uma informação importantíssima para o ciclismo. O esporte havia sido quase esquecido pelos fãs norte-americanos, devido tanto à ausência de Lance quanto a uma série de escândalos de doping que arruinaram os melhores atletas que ainda competiam – Floyd Landis, Jan Ullrich, Ivan Basso, Alexandre Vinokourov, e outros. Seria de se pensar que os organizadores do Tour de France veriam a volta de Lance como uma oportunidade milagrosa. Em vez disso, o novo presidente da empresa organizadora do Tour, Jean-Etienne Amaury, disse ao jornal francês L’Equipe: “Não podemos dizer que [Armstrong] não envergonhou o Tour de France”.

Assim é a complicada relação entre Lance e os franceses. Em 2005, o L’Equipe publicou uma extensa investigação a respeito do suposto doping do atleta no Tour de 1999. Dentre várias alegações, o jornal citou um teste independente realizado em amostras de urina tiradas de Lance daquele ano. Em 1999 não havia testes para EPO, uma droga de aumento de desempenho que aumenta a contagem de células vermelhas dos atletas. O L’Equipe alega que, depois de novas tecnologias de testes serem usadas, a contraprova das amostras deu positivo. Lance negou veementemente o relatório, e uma averiguação subsequente, realizada por investigadores holandeses independentes, inocentou-o de qualquer malfeitoria. Mesmo assim, muitos de seus críticos mais ácidos, franceses ou não, ainda apontam para a história do L’Equipe como a prova do crime.

Desde que Amaury fez seus comentários, Lance também tem sido criticado por ter feito com que a União Ciclística Internacional (UCI) burlasse as próprias regras para permitir que o ciclista entrasse, no último minuto, no Tour Down Under da Austrália, em janeiro. Ele teve que responder a questões sobre se ele será o líder da nova equipe Astana, que inclui o prodígio espanhol de 26 anos Alberto Contador, que já ganhou um Tour de France, um Giro d’Italia e uma Vuelta a España. Ele foi criticado por manter em segredo sua decisão a respeito da participação ou não no Tour de 2009 (ele esperou até o dia 1º de dezembro de 2008 para tornar a informação oficial). Há também as críticas óbvias em cima da própria equipe Astana. A esquadra baseada no Cazaquistão saiu do Tour de France de 2007 por violação das regras de doping, e não foi convidada para a corrida do ano passado. Para um ciclista que tentou fugir do fantasma das drogas juntar-se à Astana foi uma escolha curiosa.


Você ficou surpreso com o bombardeio?

Muito drama. Mas nós sabíamos que haveria reações, positivas e negativas. E acho que, no geral, a maioria foi positiva. Certamente haverá pessoas… quero dizer, veja bem, algumas das coisas negativas que li são de arrepiar. É como se eu fosse, ao mesmo tempo, Charles Manson, Osama bin Laden e Jim Jones [se referindo, respectivamente, a um famoso assassino norte-americano da década de 1960, ao terrorista das Torres Gêmeas, e ao pastor suicida da seita Templo do Povo].


Você deveria saber que a sua nova equipe provocaria a fúria de alguns dirigentes do ciclismo.

Mas você deve julgar isso aliado à lealdade a uma pessoa…

Você quer dizer seu treinador, Johan Bruyneel?

Isso. Johan Bruyneel, sem sombra de dúvida, é o melhor treinador de esportes profissionais. Sua ficha é inigualável. E eu sou muito leal. Tenho pessoas que trabalham bem e, se elas estão trabalhando, não as troco, nunca. Eu sei que tem uma história com a Astana há alguns anos no Tour. Mas eu pediria que todos pensassem nas pessoas envolvidas, eu e o Johan.


Dois dos melhores ciclistas do mundo estão agora na sua equipe: o norte-americano Levi Leipheimer e o Alberto Contador, que não demonstrou vontade de ceder a você a posição de líder da equipe.

É. Alberto se deixa levar, pois fala demais. É jovem, e isso é coisa de jovens. É só ver um microfone, que ele começa a falar. Mas não há tensão, não vamos começar a escolher o líder agora.

Mas você não pode dizer isso dos anos anteriores. Na equipe Discovery Channel, ninguém ficou imaginando quem seria o líder.

Com certeza agora é diferente. Há chances reais de que eu seja o terceiro mais forte na equipe, e tudo bem. Eu não gasto tempo pensando nisso. Como ciclista profissional você deve apoiar o homem mais forte, e eu vou seguir essas regras, pois é o que desejo. A proposta do meu retorno é esta mensagem internacional. Se a campanha internacional for um sucesso, não estarei tão preocupado com a minha colocação, mesmo que eu fique em quinto lugar no Giro e em quarto no Tour.

Mas aumentar a atenção das pessoas por meio da bike significa que você deve ser competitivo. As manchetes não podem ser “Lance desiste”.

Não, isso não pode acontecer. Seria péssimo. Mas não vai acontecer.

Sua primeira competição, o Tour Down Under, acontecerá em dois meses [de 14 a 22 de 22 janeiro de 2009]. Como você acha que vai se sair?

Não faço a mínima ideia. [Ele chegou em 29º lugar na classificação geral e a equipe Astana foi a vencedora, com Levi Leipheimer na primeira colocação].

Você está com medo?

Vou ficar nervoso, com certeza.


ASSÉDIO: Mídia ataca o campeão durante o Tour Down Under da Austrália, em janeiro de 2009

LANCE É UM CICLISTA profissional em parte por ser uma aberração da natureza. Diz-se que seu coração é um terço maior que o da maioria dos homens. No entanto, Lance é um ciclista campeão porque treinou tão ou mais duro do que qualquer outro ciclista do pelotão. Na época de suas sete vitórias no Tour, ele era o mestre da tática, evitando os acidentes nos trechos planos e dominando as provas contra-relógio. Muito frequentemente ele também era o melhor nas subidas, o que não é fácil para um ciclista de 5’11” de altura que pesa – fácil – 80 quilos. Nas lendárias subidas do Tour, como a Mont Ventoux e a L’Alpe d’Huez, 200 gramas fazem uma grande diferença, e muitos dos rivais de Lance eram pesos-pena de 60 quilos. O campeão compensava desenvolvendo uma máquina mais eficiente – creditemos este trabalho ao técnico Chris Carmichael e a uma bicicleta eletrônica – e controlando seu peso como um judoca de universidade.

Por isso fiquei um pouco surpreso quando apareci na casa dele depois da sessão de fotos e deparei com Lance comendo porções e mais porções de sushi. “Só tomei uma vitamina depois da minha pedalada matinal”, explicou, já se antecipando à minha pergunta.

Estávamos em pé na cozinha, antes da entrevista, reunidos ao redor de uma ilha gigante com tampo de granito. Sua namorada, Anna Hansen, estava conosco e também Mark Higgins, seu agente há muito tempo. Anna me ofereceu uma bolacha com gotas de chocolate. Quando Lance viu o pacote, espichou os olhos. “Você já experimentou um desses? Nossa, são os melhores. Cara, eu odeio essas coisas. Posso comer um pacote inteiro sozinho”. Havia 12 cookies no pacote.

Quanto você está pesando agora?

Entre 76 e 77 quilos.

E qual foi o seu máximo depois de 2005?

Até quanto cheguei? Oitenta e três quando voltei a treinar. Mas eu normalmente começava a maioria das temporadas com 81. No Tour eu fico com 74. É bom eu estar um pouco à frente agora. Estou com 5 quilos a menos do que costumo ter no começo da temporada. É muito duro para o corpo fazer dieta.

Poucas pessoas acham que alguém com 38 anos pode ganhar o Tour de France.

Trinta e sete. Eu estarei com 37 e 11 doze avos. [risos] Não, 37 e cinco sextos.


Poucas pessoas acham que alguém com 37 anos e cinco sextos pode ganhar o Tour.

Não discordo totalmente dessas pessoas, mas acho saudável ter minhas dúvidas, prestar atenção no meu corpo e na minha preparação física. Por vários motivos, isso [minha idade] me motiva. E não quero ser o cara que diz “isso com certeza vai dar certo”. Daí não dá e eu me decepciono.

Você se inspirou vendo a Dara Torres, nadadora de 40 anos que ganhou três medalhas em Pequim?

Sim e não. É um evento diferente. Não dá para comparar 50 metros livres com o Tour de France. Mas a mulher que venceu a maratona olímpica [Constantina Tomescu] tinha 38 anos. A ciência diz que atletas de resistência acima dos 30 anos não são mais fracos ou lentos do que os mais novos. O problema para um atleta de 37 anos é que, provavelmente, ele vem competindo há 25 anos. Nesse ponto, a cabeça diz “vamos fazer alguma coisa além disso. Já basta”.


Você acha que se beneficiou dessas “férias”?

Na minha cabeça eu me sinto como em 1998, 99. Você poderia argumentar que eu já voltei de fases mais difíceis. E este é o meu ponto de vista. Estou voltando de três ou quatro anos parado, sem treinar muito ou competir. Mas em 1997, 98, eu estava voltando de um ano e meio parado, lutando contra o câncer, com altas doses de quimioterapia, radiação, cirurgia – zero tempo na bike. Então, tento usar um ponto de vista otimista.

NO MEIO DA NOSSA ENTREVISTA, Lance tem que atender a um telefonema da Nike. Hoje é o dia do jantar anual de premiação da empresa, que acontece no estado do Oregon (EUA). Eles vão conectar Lance ao vivo pelo telefone, para responder a algumas perguntas do mestre de cerimônias. O volume do telefone é suficiente para que eu consiga escutar os dois lados da conversa, que começa com efusivos aplausos.

NIKE: Lance, você está aí?

Pode crer, obrigado pelo convite.

Como está sua volta?

Você não recebeu meu recado? Eu decidi cancelar. [risos] Brincadeira…

COMO UM POLÍTICO VETERANO, ele passa suavemente de uma entrevista íntima a perguntas amplas feitas por uma plateia enorme. É tão impressionante quanto apropriado. Sob vários aspectos, a vida de Lance parece uma longa campanha política. Ele tem uma equipe de conselheiros que o ajuda a talhar sua estratégia. Ele viaja de cidade a cidade fazendo discursos. Ele arrecada toneladas de dinheiro. Ele tem sua própria versão de slogan de campanha – Live Strong, ou viva forte – e sua própria versão de broche de campanha, a pulseira de borracha amarela. E, quando necessário, ele consegue fazer um discurso impecável em cima da hora, até substituindo o “eu” pelo “nós”, unindo a plateia numa luta em comum.

Escute sua explicação de retorno – e a grande missão – para o povo da Nike: “Bom, temos muito que cumprir. Eu lembro às pessoas que fazem parte da equipe LiveStrong, aqui em Austin, que escolhemos uma briga difícil. Esta doença é uma das mais complicadas, duras e determinadas adversárias que qualquer um de nós irá encarar, individualmente ou em sociedade. Há histórias de sucesso que são ótimas, mas temos um monte de trabalho a fazer. E isso vai demandar comprometimento renovado de nossa parte e da parte do Governo federal, sobre o qual estou incrivelmente otimista depois da última terça-feira. E vai precisar de muito esforço das pessoas no mundo inteiro”. Alguns minutos mais tarde, o telefonema da Nike termina e Lance retoma à nossa conversa, exatamente onde havíamos interrompido.

No que a sua volta à bike vai ajudar na cura do câncer? Na Austrália, por exemplo, há algum tipo de acordo para sua ida até lá? “Vou correr na sua prova se você se comprometer a fazer X, Y, e Z?”.

Não, mas eles compreendem que é uma prioridade de saúde pública. É um processo contínuo. Olhe, eu vou ser o primeiro a admitir que, se eu for até lá e o governo da Austrália não se comprometer a nada, vai ser uma vergonha, uma perda de tempo. Eu acho que o orçamento para o câncer [na Austrália] está entre US$ 150 ou 160 milhões. Seria legal aumentar este número um pouquinho.

Dois anos atrás você pediu 1 bilhão para o então presidente Bush.

É, não consegui.

Você está conversando com Barack Obama?

Eu tenho um relacionamento pessoal com ele. Não é que nós nos falamos todos os dias, mas tive com ele mais do que poucas conversas a esse respeito. Você sabe que ele perdeu a mãe para o câncer há alguns anos. E perdeu a avó dois dias antes das eleições.

Você está mais otimista a respeito do que pode conseguir com Obama?

Totalmente. Qualquer coisa será melhor do que o que tivemos na batalha contra o câncer. Tivemos um corte nos fundos para os institutos nacionais de saúde. Tivemos uma proposta relaxada com relação ao fumo. Muita distração, muitas outras coisas para as quais eles estavam pensando em gastar o dinheiro. Acho que o nosso país [os EUA] tem de investir em assuntos como o câncer. Eu via [o bilhão] como um investimento, não um gasto. Gosto de George Bush como pessoa e como amigo, mas como sobrevivente de câncer? Terrível.


NA ATIVA: Lance se prepara para competir no Tour da Califórnia (EUA), em fevereiro de 2009
(Foto: PCN Photography)

INDEPENDENTEMENTE da veemência com a qual ele se defende das acusações de doping, Lance sabe que não conseguirá provar sua inocência de maneira retroativa. Em vez disso, ele quer acabar com a especulação fazendo de si mesmo um dos atletas profissionais mais transparentes da história. Ele contratou Don Catlin, CEO do grupo sem fins lucrativos Anti-Doping Research (Pesquisa Antidoping), para dirigir seu programa independente de testes. Don tem o crédito por ter desenvolvido o sistema de passaporte biológico, atualmente endossado pela UCI – em vez de testar o sangue ou a urina de Lance para traços de drogas individuais, como EPO ou esteroides, Don irá medir seus níveis normais de glóbulos vermelhos, hormônios de crescimento e esteroides normais, e depois usá-los como comparação no decorrer da temporada. Um aumento rápido de qualquer um desses biomarcadores irá sinalizar que ele está trapaceando, independentemente da presença ou ausência de drogas no seu sistema (dias depois da publicação dessa reportagem na Outside norte-americana, em fevereiro de 2009, Lance e Don anunciaram a renúncia ao programa, por este ser inviável financeiramente). Lance também lembra que estará sujeito às regras da UCI, da Agência Mundial Antidoping, da USA Cycling, do Comitê Olímpico Norte-Americano, assim como dos controles aleatórios que tais organizações venham a requerer, independentemente das competições.

Na verdade, até o momento da publicação na Outside norte-americana, Lance esteve sujeito a, pelo menos, sete controles aleatórios desde que anunciou seu retorno. Conforme documentado em seu twitter, o quinto controle aconteceu dois dias depois da presente entrevista: “Terminei meu ‘teste’. Quarto controle ‘surpresa’ desde o meu retorno. Tem algum outro atleta/ciclista pró sendo visitado com esta frequência? 6h40, 13 de novembro”.

Ainda assim os questionadores insistem, e nenhum fala mais alto do que Greg LeMond, que já foi amigo e mentor de Lance. O três vezes campeão do Tour de France se transformou num incansável, ligeiramente enervante, divulgador de escândalos. Dois anos atrás, Greg testemunhou no julgamento de Floyd Landis e, de uma maneira bizarra, revelou que havia sido molestado sexualmente quando jovem. Recentemente, ele processou a marca de bikes Trek, sua patrocinadora durante muito tempo, e de Lance também, por interromper a produção de sua linha de bicicletas por conta de suas críticas ao doping no ciclismo, que estavam principalmente focadas em Lance. Ele alegou que o VO2 máximo de Lance – a medida da quantidade de oxigênio que um atleta utiliza durante o exercício – é muito baixo para que suas vitórias sejam plausíveis (o VO2 máximo de Lance é 85; e o de Greg era de 92,5). O adversário também compara os programas de testes independentes como o de Lance, a “um lobo cuidando do galinheiro”. Em vez disso, ele argumenta que os ciclistas deveriam submeter-se a testes de VO2 máximo imediatamente após as corridas, o que exigiria que eles subissem numa bicicleta ergométrica depois de cruzar a linha de chegada. Em 25 de setembro de 2008, Lance deu uma entrevista coletiva na feira Interbike, em Las Vegas (EUA), para fazer o anúncio oficial de seu retorno. Greg estava sentado na primeira fila, esperando para fazer a primeira pergunta.


Você sabia que o Greg LeMond iria aparecer?

Sim. Os organizadores me perguntaram se ele poderia vir e eu disse “claro”. O que eu iria dizer? Não? Acho que ele perdeu muita credibilidade naquele dia, perante a imprensa e os fãs do ciclismo. Eu observei a plateia. Havia algumas centenas de pessoas, e a reação delas não foi positiva. Greg tem problemas. É uma história triste, a começar por todos os relacionamentos fracassados com todas as pessoas na vida dele. E eu falo de lealdade, de estar junto das mesmas pessoas, coisa que ele nunca conseguiu. Provavelmente por causa das coisas que emergiram no caso Floyd. Eu não gosto do Greg, mas não desejo isso a ninguém. Então, deixa ele. Ele não queria fazer perguntas, queria só dar sermão. Ele quer teste de VO2 no fim das etapas do Tour. Tudo bem. “Você acabou de terminar o L’Alpe d’Huez. Será que você pode subir aqui? Vamos botar esta máscara na sua cara e fechar seu nariz e faremos um teste de VO2”. Ah, vai funcionar, sim.


Mas todas as ideias dele são tão más assim?

Deus abençoe o Greg, mas ele não é o cara para estabelecer o programa. Ele não é um cientista. Temos aqui um ciclista conhecido, um dos melhores de todos os tempos, simplesmente gritando sem parar. Não está avançando com a causa. Temos que parar de ficar sentados e gritando assim. No final das contas, o ciclismo fez mais do que qualquer outro esporte. O primeiro a testar a presença de estimulantes, o primeiro a testar o EPO. Primeiro, primeiro, primeiro, primeiro.


Você não acha que as drogas são tão difundidas no ciclismo quanto nos fazem pensar?

Temos que parar de pensar que “foi o Tour mais rápido da história porque estão todos drogados”. Não. Isto é absolutamente, categoricamente, patente e ridiculamente falso. Porque eu vejo o Michael Phelps ou a natação em geral e eles estão, tipo, batendo os recordes mundiais. Isto é porque o corpo humano evolui, o treinamento evolui. E o Tour de France evolui. Quando eu o venci em 1999, como era minha bike de subida? Nove quilos e meio. E quando venci em 2005? Seis quilos e trezentos. Cara, dá para subir muito mais rápido carregando 3 quilos e 200 gramas a menos. É um desserviço enorme simplesmente dizer “ah, isso é merda. Ele deve ter trapaceado”. Somos tolos ao pensar assim. As pessoas vão trapacear? Sim, vão. Elas trapacearam este ano? Sim. Vão continuar trapaceando nos próximos 50 anos? Sim. Tudo bem, eu quero um esporte limpo. Quero que as pessoas possam assistir ao evento e dizer “eu acredito nisto”. Mas não vou subir nesta cadeira e começar a gritar como sou limpo. Vou subir na cadeira e gritar quanto dou duro nos treinos e quanto eu quero vencer.

ANTES DE SAIR, perguntei a Lance se poderia visitar a academia na qual ele vinha treinando regularmente com seu treinador, Peter Park. Para chegar até lá, ele me conduz por uma escadaria de mármore que nos leva a duas portas. Uma se abre para um pátio lateral e um quintal gigante. A outra, sem janelas e protegida por um teclado de alarme, é a entrada para a academia doméstica de Lance Armstrong, ponto de partida para seu retorno. Enquanto ele vira a maçaneta, espero a porta se abrir para revelar o espaço de treino melhor aparelhado do mundo, suprido com máquinas de alta tecnologia e televisores de 60 polegadas. Em vez disso, adentramos uma monótona garagem para dois carros, iluminada por lâmpadas fluorescentes e ainda cheirando ao último treino. Quase não há equipamentos, e o único luxo é um superaparelho de som. É um pouco mais do que uma masmorra – e é uma péssima notícia para os adversários: Lance ainda adora sofrer.

Quando eu estive aqui há dois anos, havia um buchicho a respeito de um filme sobre a sua vida. Agora, com a sua volta, ele teria um novo final. Como é o novo final na sua cabeça?

Num mundo perfeito, se eu pudesse fazer o script, os dois seriam sucessos – as competições e a campanha. Eu correria bem e venceria sobre a minha bike. Por outro lado, minha mensagem se espalharia pelo mundo e os governos a abraçariam e se comprometeriam. Comprometeriam seus dólares, seus recursos, seu povo e sua paixão. Esse comprometimento é firme. Mas, veja bem, há sete destas taças azuis por aqui. Para ser sincero, eu não preciso de uma oitava taça. Eu preferiria ler um artigo no jornal contando o sucesso da campanha e como o comprometimento da luta contra o câncer foi significativo. Se eu tivesse que escolher entre os dois, escolheria o segundo. Mas eu não me importaria de ter os dois.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2009)







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