Os sobreviventes do Jalapão


MOLDURA: Cercadas pela serra do Espírito Santo, as dunas do Jalapão marcaram o início dp Brasil Wild Extreme, que teve na disputa quartetos e duplas

Por Fernanda Franco
Fotos por Marcio Bruno

A NOITE DE LUA CHEIA DO DIA 7 DE JUNHO na comunidade de Mumbuca ganhou um brilho extra. Os moradores do vilarejo – que abriga 36 famílias de origem quilombola, e que ganhou novas perspectivas depois que passou a comercializar peças feitas em capim dourado – abriram suas portas para os 33 quartetos e 11 duplas que disputariam, a partir do dia seguinte e até dia 12 de junho, a corrida de aventura expedicionária Brasil Wild Extreme. Os nativos ofereceram a simplicidade e a alegria de suas cantigas de roda, cederam a escola e sua cozinha para o pernoite, prepararam uma sopa para os atletas, ensinaram o caminho do rio para o último banho antes da largada, e revelaram a grande responsável pelo artesanato típico do Jalapão ter conquistado o mundo: dona Miúda.

A senhora de quase 80 anos, cabelos brancos ajeitados num coque e fala difícil de entender aprendeu a técnica de tecer peças, como chapéus e bijuterias, com a mãe, descendente de índios. Multiplicou a arte entre as mulheres e os homens da comunidade, e melhorou a vida de todos. Nas paredes da sua pequena casa de alvenaria com pouco acabamento, ela exibe orgulhosa alguns troféus de sua longa jornada como matriarca da comunidade, como uma foto com a esposa do governador do Tocantins. E conta que tem fácil acesso às autoridades. “Eu que ajeitei tudo aqui: orelhão, escola e luz elétrica”, afirma, sem modéstia.

Mesmo com toda essa movimentação noturna atípica para o pequeno povoado, por volta das 23h a calmaria era absoluta. A noite fresca aliviou o calor castigante do cerrado do Jalapão e colaborou para as poucas horas de sono dos atletas. Nem no rádio da organização se ouvia qualquer palavra. “Está tudo pronto. Fui pedir as bênçãos enquanto assistia à lua cheia sozinho”, revelou com tranquilidade Julio Pieroni, o diretor da prova, que nesta edição percorreria o que possivelmente é a região mais inóspita já usada numa corrida de aventura.

Apesar de contar com muitas nascentes, veredas e rios, o Jalapão costuma vir precedido do apelido de deserto. Isso porque tem a menor densidade demográfica do país: cerca de um habitante por quilômetro quadrado. A prova não teve equipes de apoio e cada quarteto ou dupla encontrava seus equipamentos apenas em pontos determinados pela organização. Por isso, cruzar a linha de chegada exigia, além de força e estratégia, um planejamento logístico preciso, a fim de sobreviver durante aproximadamente cinco dias sem auxílio externo algum. Contar com uma casa para pedir água, comida ou informação seria o mesmo que achar uma sombra farta no deserto – não o da região, mas o do Saara.

Esse isolamente foi um dos fatores que atraiu muitos competidores para a prova. “Faço corridas de aventura desde 2000, e há dois anos diminuí meu ritmo de participação. Mas correr num local tão longínquo me seduziu. É uma forma de turismo não convencional para mim. Vou passar por lugares que jamais teria a oportunidade de conhecer se não fosse assim”, revelou, ansioso, Émerson Furnaletto, da equipe Competition Aroreira, enquanto observava o pequeno riacho que cerca a comunidade iluminado pela lua cheia. Para Victor Teixeira, da Quasar Lontra Master, só o Jalapão para fazê-lo participar da sua 88a corrida sem estar treinado para tal distância. “Não tinha me preparado para uma prova longa, mas não resisti a vir correr aqui”, confessou durante o percurso.

MÃE DE TODAS: Dona Miúda é a precursora do trabalho com capim dourado, que hoje é exportado para o mundo todo

LOGO DEPOIS DA LARGADA na ensolarada manhã do dia seguinte, os competidores já se depararam com as famosas dunas do Jalapão. Originadas da erosão do arenito da serra do Espírito Santo, que fica ao fundo da paisagem, os montes de areia de cor alaranjada são cercados por riachos de água límpida e cristalina, formando verdadeiros oásis. Chegar lá pelas estradas de terra só é possível em carros 4×4. O caminho dos atletas foi pelo cerrado, sem trilhas demarcadas, com charcos e trechos de areia “engolideira”, que chegavam a afundá-los até a cintura, com risco real de encontrar animais como sucuris pelo caminho.

Era imprescindível que as corredeiras de água potável do rio Novo, uma das grandes atrações da região, fizessem parte do percurso. Mas foi preciso muita negociação com o Naturatins (Instituto Natureza do Tocantins), órgão ambiental do estado, para a liberação dessa parte da prova. Além de estar localizado dentro de uma área de conservação e ser um dos únicos rios potáveis do Brasil, as praias de areia fina que ficam nas margens do rio Novo abrigam animais selvagens como raposas, antas e onças, sendo fácil avistar suas pegadas. Também é comum assistir a casais de araras azuis sobrevoando suas águas, que servem de lar para apenas seis casais de pato mergulhão – ave em extinção com apenas 250 espécimes restantes no mundo. Convencer o órgão que administra o parque de que a corrida não teria impacto durante o período de acasalamento dos patos (entre maio e setembro) foi uma das mais árduas tarefas da organização. “Posso dizer que estou mais esgotado de negociar do que qualquer outra coisa”, confessou Julio.

O compromisso firmado entre o Brasil Wild e o Naturatins exigia o comprometimento de cada uma das 44 equipes, que deveriam parar de remar e simplesmente deixar o bote correr pelo rio caso avistassem um casal de patos. Como contrapartida à liberação, foi feita uma doação de quase trinta itens para auxiliar na monitoração das aves no campo, como caiaques infláveis, coletes, remos, barracas, sacos estanques, barracas e até um par de rádios.

Além do acordo para a preservação do pato mergulhão, outra exigência do governo do Tocantins foi o uso da mão-de-obra local durante a prova. Cerca de 80 pessoas participaram ativamente na organização. Uma delas foi Diego Sommer, proprietário da empresa 40 Graus no Cerrado. Organizador de uma prova local de enduro a pé, Diego viu na realização do Brasil Wild uma excelente oportunidade de troca de informações e uma real possibilidade de organizar a primeira corrida de aventura do estado. “Fiquei bem próximo à organização para conhecer a fundo a logística de uma prova desse tamanho. Acho que o governo percebeu que uma prova de aventura envolve outros aspectos além do esporte em si, como, por exemplo, a interação com a comunidade local”, reflete ele sobre os benefícios da prova para o avanço dos esportes de aventura no Estado.


SOLUÇÃO: O artesanato na comunidade de Mumbuca mudou a vida da comunidade

COM O RIO LIBERADO, foi hora de focar na operação do rafting de cerca de 40 quilômetros e corredeiras classes III e IV – uma verdadeira prova de logística. Sob o comando de dois dos mais antigos canoístas do Brasil, os antigos parceiros José Pupo e Massimo Desiati, 42 botes de rafting foram transportados de São Paulo até o Jalapão. O deslocamento final de 10 quilômetros até a praia dos Crentes, local onde as equipes iniciavam a descida, teve de ser feito pelo leito do rio, já que as fortes chuvas que caíram na região poucos dias antes da prova impediram a passagem do caminhão pela estrada de terra já precária. Para garantir a segurança dos competidores nas corredeiras, foram contratados 15 dos melhores instrutores de rafting do Brasil, com experiência em bases famosas de águas brancas como as cidades paulistas de Brotas, São Luís do Paraitinga e Juquitiba, e também do próprio rio Novo.

Os instrutores fizeram reconhecimento das corredeiras, marcaram as portagens, sinalizaram as trilhas, ajudaram a fazer a calibragem final de cada bote, acompanharam a descida das equipes e ficaram de prontidão em pontos estratégicos das corredeiras, caso fosse necessário algum resgate.

Mesmo com a pouca experiência em rio por parte de algumas equipes, quase todas sobreviveram às corredeiras, apelidadas por Massimo – proprietário da Quatro Elementos, que descobriu o rio Novo em 1997 e opera um roteiro comercial em suas águas desde 2002 – de “Até que Enfim”, “Ixion/Coicinho de Anta/Coice de Anta/Mergulhão” e “4 Elementos”. Quem sucumbiu à 4 Elementos foi a equipe Oskalunga Sundown Adventure Camp. Usando um barco KR9, mais estreito que os botes tradicionais de rafting, mas com o comprimento mínimo exigido pela organização, a equipe foi jogada na água. “Entramos na segunda parte dessa corredeira sem velocidade e um pouco de lado, aí não teve como controlar”, explicou Zolino.

A cidade de Ponte Alta marcou o encontro das equipes com sua caixa de reabastecimento e a saída da prova do Jalapão. Para alguns, ali foi também o fim da competição para muitos participantes. Depois de um trekking de 61 quilômetros por serras e cerrados sem trilhas, com pouca água e nenhuma presença humana, as equipes chegavam à cidade em diferentes graus de esgotamento e sofrimento. Fabiano Kenzo, da equipe Clímax Forever Living, tinha um pé em carne viva. “Se eu não fosse menino crescido, chorava agora”, confessou, enquanto assistia à médica da prova fazer um curativo na ponta do seu castigado dedinho.

Fora da área oficial do parque, a natureza continuou a impressionar. De Pouso Alto as equipes pedalaram 118 quilômetros até Taquaruçu, cidade com clima serrano que fica encravada num vale rodeado de formações rochosas e 80 cachoeiras. Duas delas – a Roncadeira e a Fazenda Encantada – foram escolhidas para sediar as sessões de vertical. Antes de finalizar os quase 480 quilômetros de prova remando no rio Tocantins e no lago artificial que beira a cidade de Palmas, os atletas ainda pedalaram no Parque Estadual do Lajeado, área de preservação ainda fechada para visitação, mas liberada pela prova – um privilégio que, para a maioria das equipes, vale mais do que um lugar no pódio.


TRADIÇÃO: A arte de tecer o capim dourado é transmitida de geração para geração

SEIS MESES ANTES DA REALIZAÇÃO do Brasil Wild Extreme, a região do Jalapão serviu como cenário para a gravação do reality show americano Survivor. Em sua 19a temporada, o programa da rede CBS – que foi idealizado pelo norte-americano Mark Burnett, o mesmo que em 1995 criou o Eco-Challenge, a corrida de aventura transmitida pela TV que popularizou o esporte no mundo – mexeu com a economia e a rotina dos moradores da região do Jalapão.

Seu Emivaldo Rufo Cunha, morador de Mateiros, foi o responsável por preparar a sopa para os atletas e a organização na noite da véspera da largada do Brasil Wild, na escola de Mumbuca. Ele era orgulho puro ao falar de seus dotes culinários e habilidade para servir cerca de mil refeições por dia durante o programa gringo, e no título de melhor omeleteiro dado pela produção do reality. No Brasil Wild, ele não teve registro em carteira, caminhonete à sua disposição ou ingredientes como salmão ou camarão para preparar o cardápio, mas foi muito gentil ao explicar os ingredientes que havia usado na sopa. Também não se cansava de citar o programa que mudou a vida de sua família. “Foi o melhor salário que já tive na vida”, revelou. Com os rendimentos do programa, seu Rufo comprou uma casa, uma moto e comemora principalmente o passo dado pelos filhos, que trabalharam construindo os cenários das provas do programa. Pablo, de 20 anos, montou uma loja de roupa, e Débora, de 22, usou o inglês que já sabia para trabalhar no programa, além de namorar um dos produtores. “Foi uma das melhores experiências da minha vida. Aprendi muito, principalmente sobre cuidado com o meio ambiente e os processos de reciclagem. Eles faziam tudo corretamente”. Quanto ao namorado australiano da produção, ela desconversa. “Ainda mantemos contato por email, mas estamos muito longe”.

Já na fazenda que serviu como uma das bases para a prova, seu Antonio e dona Milma, os proprietários, ainda comemoravam a passagem do Survivor por ali. “Primeiro eles sobrevoaram de avião, depois apareceram para negociar”, conta seu Antonio. A fazenda fica nas margens do rio Novo, e foi lá que as equipes do Survivor montaram seus acampamentos, acompanhadas por apenas quatro pessoas da equipe de filmagem. Todo o restante da produção, cerca de 250 pessoas, ficou alojada em casas construídas em outro local especialmente para o programa. Além de ter “alugado” a beira do rio, seu Antonio ainda trabalhou como segurança, com carteira assinada, para garantir que não houvesse vazamento de informações.

O casal comprou a fazenda recentemente, depois te ter vindo de Goiânia, e conta como é difícil viver isolado. “Não temos luz elétrica, apenas uma placa solar. A geladeira é a gás. Escrevemos para o Lula para pedir o ‘Luz para todos’”, conta seu Antonio. Dona Milma reconhece que vive num lugar ainda selvagem. “Não lavo mais roupa na beira do rio, pois já vi uma onça na outra margem. Também tive que acabar com uma criação de galinhas, porque atraía muita raposa e lobo-guará”, completa. A nova casa do casal, de chão batido e paredes de palha de buriti, foi construída depois do programa e guarda poucas roupas, alguns objetos de decoração pendurados entre as palhas e fotos com a produção do programa. A fazenda Progresso, além de seu encantos naturais, agora também é conhecida por ser a fazenda do Survivor.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2009)







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