Escola marítima


AO MAR: Aleixo, na proa da embarcação que ele mesmo construiu
(Foto: Divulgação)

Por Camila Junqueira

Qual é objetivo do projeto Fraternidade?

Quero fazer minha sucessão, passar adiante minhas experiências. O contato com o mar e com outros povos numa volta ao mundo é mágico, transforma a vida para sempre. Quero voltar ao mar no Fraternidade, um veleiro-escola que eu mesmo projetei, com jovens determinados e sonhadores como eu, que não se satisfazem apenas comendo e bebendo. Quero estimular neles o gosto pela descoberta do novo.

E como esse gosto pela descoberta surgiu em você?

Tinha 16 anos quando ganhei um óculos de mergulho de um amigo. Fui olhar os peixinhos e me apaixonei pelo mar. Tornei-me mergulhador e fui viajar para praias mais distantes. Com 22 anos cheguei a Porto Seguro (Bahia). Ainda não tinha ido muito longe, mas vi que lá só tinha natureza. Fiquei encantado e me dei conta de que todo o mundo podia ser tão bonito quanto Porto Seguro, mas de formas diferentes. Eu tinha que conhecer todo o mundo, não só a Bahia, e de barco é a melhor maneira de fazer isso. E a mais barata também, porque você mora no veleiro. Também li o livro Expedição Moana (de Bernard Gorsky, sobre quatro mergulhadores que deram a volta ao mundo numa expedição submarina, de 1948 a 951), aí surgiu a ideia. E logo me tornei escravo dela.

E o que você fez para realizar esse sonho?

Daquele dia em diante comecei a trabalhar para isso. Foram 15 anos. Quando decidi, não sabia o que era navegação, nunca tinha içado um pano, nada. Nesse tempo aprendi a velejar, a construir barcos, a ganhar dinheiro para comprar materiais. Mais tarde descobri que tinha o principal: o sonho. Se você tem o sonho, terá o resto.

Por que sozinho?

No começo não pretendia ir sozinho. A ideia surgiu durante uma viagem que fiz no final dos anos 1970. Apareceu um francês querendo ir para a África do Sul e precisando de um tripulante, fui com ele. Foram 34 dias de Salvador a Cape Town (cidade do Cabo). Revezávamos, enquanto um dormia o outro trabalhava. No início tinha que acordá-lo para perguntar como se faziam as coisas, não sabia nada. Mas depois não queria mais que ele acordasse. Descobri que podia fazer tudo sozinho. Então resolvi que faria minha viagem só, que seria melhor levar o barco em um do que ter que administrar as intrigas do convívio com outro. Foi ótimo viajar assim. É uma questão de amor, entre eu e o mar, sem intermediários. Divino mar, apenas eu e ele. Pensava: se sou uma pessoa de bem o mar vai me preservar, se eu sou uma poluição ele vai me destruir. E ele não me destruiu. Mas o tempo passa, e já não é mais tempo de estar sozinho, é tempo de compartilhar minhas experiências com os outros.

Quem serão os jovens que participarão do projeto Fraternidade?

Estamos analisando os currículos de muitos que se candidataram há um ano. Vou levar os bons naquilo que pesquisam. Quero juntar jovens de várias áreas: oceanógrafos, cineastas, antropólogos, sociólogos, antropólogos, biólogos, fotógrafos e repórteres, para enriquecer também a troca entre eles. Fiz alguns vídeos na última volta ao mundo que fiz, em 2000. Quero voltar com mais material dessa vez, para um documentário.

E o barco? Precisa de algo de especial por levar uma tripulação inexperiente?

Trabalhei nos últimos cinco anos na construção do Fraternidade. Tudo o que aprendi na prática em todas as minhas viagens está nele. Ele reflete a minha alma. São 70 pés, dois mastros, 60 toneladas de puro aço, um leme retrátil, tudo muito mais automatizado que no Três Marias (veleiro de 36 pés usado nas suas outras três voltas ao mundo), para facilitar a navegação e compensar a pouca experiência da tripulação. O Fraternidade tem tudo que podemos precisar, foi projetado e construído como um veleiro-escola.

De todos os lugares que você conhece, quais te impressionaram mais?

As ilhas isoladas do oceano Pacífico. Lá as pessoas vivem de forma diferente e sonham diferente também. Na Polinésia, a beleza do povo me encanta. Eles são bonitos porque são todos felizes, isso é impressionante. É o contato cara a cara com povos assim que quero que meus jovens tripulantes tenham.

Você nasceu na Ucrânia, e antes de vir para o Brasil passou pela Alemanha e Itália. Nunca pensou em se mudar daqui?

Conheço muitos países. Há vinte anos eu já conhecia mais de cinqüenta. O mundo mudou tanto, países que não existem mais, outros que viraram dois. E sou engenheiro, uma profissão universal, poderia morar em qualquer parte do mundo, mas continuei na Bahia. Cresci em Salvador, construí minha vida e minha família ali. Adotei a Bahia e me sinto adotado pelos baianos.

Qual foi a situação mais perigosa que você já enfrentou?

Foi na minha primeira volta ao mundo. Cheguei à porta do oceano Índico justo na estação de ciclones, no final de dezembro – os piores meses eram janeiro e fevereiro. Tinha pouco dinheiro e esperar significava ficar ali por quase dois meses, e o sonho de completar me perseguia. Resolvi ir. Dentro de mim moram duas pessoas, uma que é corajosa, não tem medo de voar, acha que pode fazer qualquer coisa. E outra, que é cuidadosa, medrosa e precavida. Naquele momento tomou o poder a primeira, e quando isso acontece, nem sei, só depois mesmo, quando o outro assume o controle, que me dou conta e fico preocupado com o que acabei de fazer! Enfrentei um mar assustador, um temporal, talvez um ciclone passando muito perto. Naquele momento todos os sonhos me abandonaram, só queria minha vida. Mas passou, e cheguei à África do Sul. Aí, só me restava o Atlântico para realizar meu sonho. Isso foi em 1981. Agora sou muito mais um equilíbrio dessas duas pessoas.

É difícil ficar tanto tempo longe da família? Como você lida com isso?

A relação que tenho com o tempo quando estou no mar é outra. Nas primeiras viagens, em 1981 e em 1986, escrevi muito e tudo era tão novo que nem via o tempo passar. Na primeira queria acabar, completei o mais rápido possível, foram 14 meses. Na segunda, aproveitei mais, fiz mais portos e os conheci melhor. Na última, em 2000, já com os filhos crescidos, a família foi me encontrar em vários pontos da viagem. Viver esse outro tempo, diferente do tempo em terra, do tempo das cidades, também é algo que vai fazer esses jovens pesquisadores pararem para pensar.


Qual poderá ser a maior dificuldade do veleiro-escola Fraternidade?

Não sei. Sei que também vou aprender muito com os jovens que irão comigo. Nada é igual na vida, mas também não precisa ser igual. Sei que não vou conseguir passar exatamente a mesma experiência que vivi, mas tenho certeza que depois da viagem esses jovens, e até mesmo eu, seremos outros, veremos a vida com outros olhos. Vida é movimento, nada é igual a nada.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de outubro de 2009)







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