Nas nuvens


ENXAME: Ciclistas trabalham em equipe para cortar o vento na Claro 100k

Por Andrea Estevam
Fotos por Fábio Piva

NA FRENTE DE UM PRATO DE MACARRÃO, na véspera da minha estreia numa prova de ciclismo de estrada, eu bombardeava a incauta Adriana Nascimento, que ingenuamente aceitara o convite para jantar em casa, com perguntas. “E se o pelotão me engolir? E se alguém cair na minha frente? E se furar o pneu?” Adri, nove vezes campeã brasileira de mountain bike cross-country e ícone do ciclismo nacional, mal conseguia mastigar sua comida entre uma resposta e outra. Antes de ir embora, deu o conselho que ficaria martelando em minha cabeça durante toda a prova: “Não se esqueça que o ciclismo é um esporte coletivo”.

Adriana estava falando do vácuo, o invisível melhor amigo dos ciclistas. No xadrez das provas de estrada (mesmo nas individuais), saber quando colocar a cara do vento é quase tão importante quanto estar com as pernas fortes. Por isso, na semana anterior Adri havia ensinado seus alunos como revezar o vácuo num treino coletivo na estrada dos Romeiros, uma das favoritas dos speedeiros paulistas. Cada um ficava à frente um minuto e daí abria para o lado direito para que o segundo da fila assumisse a liderança, sem aumentar o ritmo. Quem saía pra direita esperava o penúltimo ciclista passar para acelerar e “entrar na roda” novamente – ou seja, posicionar-se perto o suficiente do ciclista à frente para aproveitar o vácuo criado pelo grupo. Assim, o árduo trabalho de cortar o vento era dividido fraternamente. Nossa média subiu de 28 para 33km/h, enquanto nossa percepção de esforço diminuiu sensivelmente.

O plano era aplicar essa técnica na Claro 100k, novo circuito de ciclismo de estrada brasileiro, criado e organizado pelo mountain biker Mario Roma. A primeira etapa, no dia seguinte, colocaria mil ciclistas para pedalar no asfalto virgem do trecho sul do Rodoanel. Mas não era só o asfalto que seria deflorado – para mim também seria uma perda de virgindade, só que no mundo dos pelotões, vácuos e homens de pernas raspadas.

Mas uma coisa é brincar de vácuo e de pelotão com os amigos num treino amistoso. Outra é tentar fazer isso no meio de um enxame de duas mil rodas movidas por cérebros e corpos hipóxicos. A visão dos pelotões na TV, nas coberturas das grandes provas de ciclismo, sempre me causou um misto de fascínio e terror: um monstro que se move a 60km/h, espichando-se e encolhendo, engolindo pobres ciclistas fadigados como uma nuvem de gafanhotos. E as quedas, então? Um pelotão inteiro se transformando numa grande almôndega de carne humana ralada, lycra e carbono. Sempre que via um pelotão na TV, imaginava como seria estar ali no meio. E dali a poucas horas eu estaria

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Cerquei-me de cuidados para minha estreia, numa vã tentativa de proteção e controle. Convenci duas amigas (Silvia “Shubi” Guimarães e Marcela “Mate” Toldi) a me acompanharem. Assim como eu, elas vêm da corrida de aventura, têm mais intimidade com a terra do que com o asfalto e achavam que pelotão é um tipo de entidade sobrenatural maligna. Largaríamos na Elite (200 ciclistas inscritos), para fugir da muvuca da categoria Open (800 ciclistas inscritos), e nos revezaríamos em nosso utópico micropelotão – que ingenuidade! – ao longo dos 100 quilômetros de percurso. Sabíamos que os três minutos de vantagem que ganharíamos largando na Elite não nos protegeriam por muito tempo. “Quando a nuvem de gafanhotos da Open chegar, a gente espera eles passarem e depois continua no nosso revezamento”, combinei com elas.

MAS É CLARO QUE AS COISAS não aconteceram assim. Primeiro porque 200 ciclistas são 200 ciclistas, e não havia como ficarmos em nosso micropelotão paralelo. Segundo porque, bem, a gente não é muito flor que se cheire quando a endorfina e a adrenalina – essas sim as verdadeiras entidades sobrenaturais do esporte – começam a bombar em nossas veias.

Menos de 500 metros após a largada, já pintou uma fila de ciclistas ali, dando sopa. Encaixamos na roda. Como tinha mais gente no pelotão, nosso esquema de revezamento foi por asfalto abaixo, mas beleza: ficamos ali, escondidinhas, no conforto do vácuo. Que gostoso. O ritmo estava tão confortável que dava vontade de acelerar, mas havíamos ouvido tantas vezes para nos pouparmos, dosarmos o ritmo, etc, que ficamos por ali mesmo. Afinal, éramos as haoles ali. A estrada parecia grande e vazia demais para desbravarmos.

Só ouvimos o zunido das rodas, centenas delas girando juntas, alguns segundos antes da nuvem nos engolir. Ela nos cercou como o vento num túnel de testes aerodinâmicos, passando por nossos lados e nos carregando com força invisível. Devia haver ali uns 150 ciclistas; era o Grande Pelotão da Open, ainda não desmembrado por ser começo de prova. Minha bike parecia puxada por um imã gigante. Eu me concentrava em manter a linha reta (“sem movimentos bruscos nem mudanças de direção”, me dissera Adri) e monitorava onde estavam Shubi e Mate, para que não nos perdêssemos na multidão. Sei lá por que continuávamos ali no meio, contrariando tudo o que combináramos. Acho que a adrenalina e a tentação do pedal fácil eram sedutoras demais para sairmos. E o medinho, confesso, era bom.

Até que ouvimos o primeiro “pssssss”. “Pneu furado!”, alguém gritou. A nuvem diminuiu a velocidade, se dispersou um pouco, e depois se reagrupou e retomou a aceleração. Com cuidado, nos deslocamos para a margem do pelotão. Mas mesmo na borda, onde a sucção é menor, sentíamos os pedais mais leves. Aí veio o segundo susto: “Queda! Queda!” Foi o tempo de abrirmos para a direita e vermos a massaroca de quadros, capacetes e camisetas coloridas, emboladas no chão. Sem precisarmos nos falar, saímos do enxame e deixamos a nuvem seguir caminho.

A marca dos 50 quilômetros havia ficado para trás. Estávamos sozinhas, mas foi por pouco tempo. Logo passou um pelotão menor, e depois outro, e outro. Entramos em um deles, mas não curtimos o astral. Um dos caras era um babaca: não queria ficar atrás da gente e por isso sprintava, todo metido, só para “morrer” em seguida. Fazia todo mundo gastar energia desnecessária. Um outro cara no mesmo pelotão não deixava quem abria pra direita voltar pra linha de vácuo. Pelotão de malas.

Aceleramos um pouco e alcançamos outro. Esse era bom: tinha uns grandalhões que pareciam uma muralha contra o vento. Já havíamos nos acostumado com o movimento do vácuo. Às vezes tínhamos até que brecar. Ou pedalar bem pouquinho, levadas pela esteira de ar. Fomos aprendendo a detectar as melhores rodas. Tinha um cara numa bike vermelha, mais velho, com certeza mais experiente, que era a melhor roda da prova. Velocidade constante, atento, sinalizando os movimentos com antecedência. Pena que ele teve cãibras por volta do quilômetro 70 e parou. “Preciso agradecer ele na chegada”, pensei.

Faltando 20 quilômetros, nós três estávamos num outro pelotão. Velocidade confortável. Gente sorrindo e antecipando a alegria da chegada. Eu tinha me poupado até ali e estava me sentindo bem – tão bem que começou a bater um tédio. Ninguém no pelotão parecia muito disposto a botar a cara no vento para ajudar o grupo a acelerar. Coube às mulheres fazer isso. Eu, Mate e mais duas ciclistas assumimos a frente e apertamos o passo. Nossa pequena nuvem acordou. Depois de ter feito 90 quilômetros num ritmo conservador, me deu vontade de sentir o gosto do sangue na boca. Escapei. A Mate e mais três caras vieram atrás, fechando a formação do nosso pelotão capota-mas-não-breca. Dois ciclistas que vinham mais para trás atacaram, e nos passaram. Tentei, mas não consegui entrar na roda deles.

Segui firme contra o vento, tão concentrada em tirar do corpo o máximo de força que mal via o asfalto passando borrado abaixo de mim. Quando eu achava que o coração não ia agüentar e a perna ia explodir, saía pra direita e alguém assumia a frente, assim eu podia descansar por alguns segundos antes de dar tudo de mim novamente. Estava exausta, bufando, babando, mas eufórica. Sentia o corpo todo vibrar – e não era trepidação da pista. De repente, me vi parte de toda aquela emoção das fugas e ataques que sempre me arrepiaram nas transmissões ao vivo do Tour de France. Era real, eu estava ali. Cruzamos a linha de chegada e pegamos (eu, Mate e Shubi) pódio na Elite MTB, depois da campeã Adri Nascimento (importante ressaltar que só ficamos entre as primeiras porque no mesmo fim de semana havia duas provas importantes de mountain bike, então a concorrência estava fácil).

Para uma estreia, não foi nada mal: nenhuma queda, nenhuma lesão, pódio e até premiação em dinheiro. Mas meu grande prêmio foi a descoberta de uma nova sensação, uma nova possibilidade de diversão ao ar livre. Gostei muito de brincar de ciclista. Mesmo. Acho que quero brincar de novo.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2010)







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