Sob as vinhas da Toscana


PIÚ BELLA: As ruazinhas da cidade de Montalcino, lar de um dos melhores brunellos da Itália

Por Eric Hansen
Fotos por Shana Novak

DESDE QUE CONHECI Tim “o Nariz” Wanner, um importador de vinho em Boulder, Colorado (EUA), ele e eu sonhamos em fazer nosso próprio vinho. Por quê? Porque gostamos do gosto; porque curtimos a sensação de cabeça leve e barriga cheia; e porque, depois de seis anos visitando adegas, desenvolvemos opiniões bem fortes sobre o que é vinho bom de verdade – 12,5% de álcool, sabores suaves de fruta, nada de animais fofos no rótulo – mas curtimos de tudo, do Sangue de Boi ao Pétrus. E queríamos que esse amor se espalhasse. “A gente precisa fazer o nosso próprio vinho!”, costumávamos gritar. E depois o porre passava.

Qualquer um pode fermentar uvas compradas na feira em um latão de lixo no quintal de casa, mas fazer um vinho decente é complicado. A maioria das uvas precisa ser colhida manualmente no final de setembro ou começo de outubro, retiradas do cacho, esmagadas e fermentadas em umas poucas semanas bem corridas; misturadas por consultores que mais parecem xamãs, e depois guardadas em adegas escuras por anos a fio. O Nariz e eu sempre achamos que seria mais fácil montar nossa própria BMW Série 5 usando uma linha de montagem emprestada. Ou será que não? Consultamos as conexões européias do Tim e, uma semana depois de dar meu primeiro telefonema, um dos amigos italianos do Nariz me pôs em contato com Francesco Illy.

Ex-vice-presidente da Illy, uma tradicional dinastia do café, Francesco, 57 anos, é dono de um sítio pequeno em Montalcino, na Toscana, e tinha a reputação de ser meio cientista maluco: um cara de ideias grandiosas com a grana para botá-las na prática. Um de seus mais recentes passatempos é criar fotografias extremamente detalhadas, do tamanho de murais, e depois reduzi-las a um tamanho de 21-25 centímetros, deixando assim os detalhes invisíveis a olho nu. Sua última empreitada foi criar uma máquina de café combinada com rádio, chamada Good News, que contas as notícias enquanto você faz um espresso.

Sua vinícola de 133 acres, Le Ripi, é como um hobby. Seis anos atrás, Francesco começou a produzir o Brunello di Montalcino – tipo de vinho varietal com 100% de uvas sangiovese que é o orgulho da Itália, ficando atrás somente do poderoso Barolo –, um dos quais é chamado de Lupi e Sirene. O rótulo mostra sereias de topless e lobos com falos vermelhos brilhantes eretos.

Francesco estava mais que animado com nossa colaboração.Ele achava que nosso interesse em produzir vinho era um “sinal do destino”. Apesar de não dar para arregaçarmos as calças e pisar em algumas uvas, ele sugeriu que o visitássemos para misturar um pouco de vinho. Ele me disse que já sonhava há um bom tempo em pegar o sangiovese de dois ou três tonéis e misturá-los para fazer um novo brunello. “Tudo no mundo tem pai e mãe, e você pode ser o pai desse novo vinho”, ele me disse. “O Tim pode ser a mãe.”

Compramos nossas passagens e estabelecemos uma meta simples, mas incrivelmente ambiciosa: fazer um brunello ao qual a revista The Wine Advocate – criadora da escala de 100 pontos de avaliação de vinhos que já virou praticamente um padrão – desse uma respeitável nota de 90 ou mais.

FAZER VINHO HOJE EM DIA costuma envolver processos industriais que as pessoas geralmente associam com salgadinhos tipo Cheetos. Pode-se fazer um vinho ficar mais suave ao paladar adicionando-se agentes de refino como clara de ovos; tingi-los com um concentrado chamado Mega Purple; e fermentá-los com levedos “artificiais” geneticamente modificados. Alguns vinhos populares chegam – e saem – dos EUA não em garrafas, mas sim chacoalhando nos enormes reservatórios de navios-tanques, e estima-se que um quinto dos vinhos da Califórnia, incluindo alguns produtos muito bons, têm um teor alcoólico tão alto que precisam ser colocados em centrífugas “desalcoolizantes” para chegar ao teor desejado.

Diante disso tudo, parecia que estávamos voltando no tempo quando chegamos em nosso Alfa Romeo alugado na propriedade idílica de Francesco. Le Ripi é uma casa de pedra no final de uma solitária estrada de terra que segue pelo meio de morros, a uns 15 quilômetros da cidade murada de Montalcino. Uma faixa verde-clara de vinhedos sobe uma encosta virada para o sul, descendo por ravinas arenosas até o rio Orcia, repleto de pedras. Ao longo do vale, antigos castelos erguem-se em meio às florestas. “Uma brisa suave sopra, trazendo a fragrância de aspargos, sálvias e mentas, todas selvagens”, escrevo no meu caderno – o primeiro sinal, percebo mais tarde, que estou acreditando demais na lenda da Toscana.

“Bem-vindos”, diz Lisa, que cuida da Mastrojanni, uma vinícola vizinha que pertence à corporação da família Illy. “Que bom que resolveram vir nos visitar”. Devido a dificuldades para achar o caminho, nós estamos quatro horas atrasados. Mas isso não importa. Logo fica claro que entramos em um universo paralelo onde toda notícia é boa, alguns detalhes são imperceptíveis, e o contínuo espaço-temporal se curva à mercê das vontades do excêntrico Francesco. Neste momento, ele está ocupado, por isso a Lisa, uma morena magra que fala inglês alto, nos mantém ocupados com uma excursão pela Mastrojanni.

A operação é bem organizada, de pequena a média, e tem sido comandada pelo mesmo vinicultor da velha guarda desde o início dos anos 1990. A excursão é longa e sem muita coerência, e quando finalmente experimentamos seus mais recentes brunellos – um dos quais a The Wine Advocate recentemente deu uma nota 91 –, começamos a nos perguntar se vamos ficar cara a cara com Francesco. E eis que surge ele, saindo da adega, falando animadamente sobre um acidente que quase aconteceu enquanto tirava fotos do rio Orcia do helicóptero de um amigo. Sua barba por fazer começa a tornar-se respeitável e ele usa um rabo-de-cavalo grisalho e o que vamos aprender a identificar como seu uniforme: calças jeans, camisa-polo amarelo-manteiga e um blazer cor de salmão. “Hello”, ele diz em inglês, enquanto seus olhos distraídos passam a impressão que ele não faz ideia de quem nós somos. E então ele vai embora.

Naquela noite, a sensação de estranheza retorna. Só sabemos que devíamos jantar juntos. Quando nos encontramos na Mastrojanni, Francesco se apresenta não com um “Ciao”, mas sim nos entregando garrafas de brunello e dizendo, “Talvez a gente beba um pouco, então vamos tomar as estradas secundárias”. E então todos entramos em seu Range Rover roxo.

A conversa durante o jantar com carpaccio e massa com molho de javali em um dos restaurantes favoritos de Francesco mostra-se ainda mais desconcertante. Ele pula de assunto em assunto, num momento usando o Google Maps do seu iPhone para tentar encontrar onde ele encalhou seu iate de 56 pés (foi na Grécia ou na Croácia?), no próximo esbravejando contra o absurdo fascista das regulamentações sobre plantação orgânica na Itália. De acordo com ele, os reguladores prefeririam ver toda sua vinícola ser devorada até a morte por aranhas vermelhas do que usar um copinho de pesticida químico. Quando a conversa finalmente se volta para os vinos rossos, entretanto, ele mostra porque tem tanta moral no sofisticado negócio da fabricação de brunellos. Segundo ele, sua intenção é fazer o brunello do futuro.

BRUNELLO, QUE É PRODUZIDO SOMENTE NA REGIÃO DE MONTALCINO, na Toscana, foi criado no final do século 19 quando um ex-soldado começou a fazer experimentos com a pequena e durona uva sangiovese, e logo chamou o produto resultante de brunello, ou “marronzinho”. Desde então, a uva tem sido a base de um dos mais elegantes e caros vinhos na Itália. Mas, apesar do prestígio do brunello, as vinícolas da região passaram por alguns maus momentos no século 20. A estabilidade só chegou na década de 1970, quando ricaços como Francesco começaram a comprar as propriedades menores. E embora haja hoje exatamente 202 vinicultores nessa região minúscula – que produz cerca de 540 mil caixas por ano, um décimo do que produz uma grande vinícola industrial –, nenhum deles é igual a Francesco.

Enquanto a maioria dos vinicultores fermentam suas uvas em tonéis de carvalho ou aço, ele construiu um grande tanque de vidro grosso para que pudesse ficar de olho na fermentação, e talvez descobrir um jeito melhor de misturar as uvas. E ele vem realizando testes nos últimos oito anos, a um custo altíssimo, numa estratégia que batizou de Método Bonsai. Ignorando séculos de sabedoria agrícola, plantou cerca do dobro do número de vinhas que o normal para que elas tenham de lutar entre si pelos nutrientes no solo. Então ele corta um terço das plantas, deixando apenas as uvas mais resistentes amadurecerem. “As plantas fazem vinhos melhores quando estão numa situação de estresse”, explica.

Pode ser, mas nunca vimos tanto estresse assim. A linha que divide genialidade e pura loucura é bem tênue, e não sabemos de que lado o Francesco está. “O brunello dele era animador”, o Nariz me conta mais tarde, quando Francesco está longe, “mas ele ainda não encontrou sua voz. Ele precisa envelhecer”. Concordo, mas ainda há esperança. Por volta de meia-noite, com o restaurante vazio há tempos, Francesco, Nariz e eu estamos fumando charutos quando o italiano finalmente pergunta: “Então, o que vocês querem fazer em Montalcino?”.

Ele não falou nossos nomes nem uma vez, nem disse nada sobre sua oferta. Agora, está nos perguntando o que queremos fazer na cidade! Preocupado com que ele tenha esquecido que fazemos parte de seu “destino”, digo: “Hã, a gente queria misturar um brunello, como a gente falou no telefone”. “OK”, ele responde, e depois faz uma oferta ainda melhor, sugerindo que dois dias depois tentemos misturar seu vinho não-testado e um pouco do excelente produto da Mastrojanni. Ficamos aliviados, e passamos o dia seguinte e meio experimentando dezenas de brunellos dos produtores e nos familiarizando com a paisagem vinícola local.

NA HORA MARCADA, chegamos à espaçosa mansão de pedra de Francesco, muito animados. Somos apresentados à sua namorada, Roberta, e a um homem com cabelo grisalho ondulado, Maurizio, que Francesco descreve simplesmente como “meu consultor”.

Embora seja normal supor que a mistura de vinhos (ou “blending”) envolva todas aquelas horríveis técnicas das aulas de química na escola, na verdade não é necessário fazer titulações ou testes de pH – basta instinto estético e medições ocasionais. Michael Silacci, o vinicultor virtuosi na prestigiada Opus One, na Califórnia, diz que até hoje ele não tem certeza se é um mestre em blending. “Tudo que sei é que consigo equilibrar tudo melhor agora.” Com mais de uma década de experiência, ele e sua equipe conseguem fazer um blend com até cinco uvas diferentes, como pintores que criam uma única e bela tonalidade usando todas as cores de tinta. Ele faz misturas e comparações por semanas, valendo-se de meia dúzia de colegas para experimentar diferentes formulações.

Nós, por outro lado, temos zero de experiência e só uma tarde de trabalho. Após 45 minutos na adega, experimentando uns 25 tonéis numerados segundo o ano e o lote da vinícola, selecionamos nossos principais ingredientes: 12 sangioveses favoritos de 2006. Então subimos as escadas até uma longa mesa de madeira na sala de estar. Enquanto lavamos um cilindro com marcações de volume e uma caixa de copos novos – as únicas ferramentas necessárias para se fazer a mistura –, Maurizio arruma metodicamente as garrafas. Uma fila de Mastrojannis em um lado da mesma, Le Ripis no outro, com ano, número do tonel e outros detalhes anotados em seus rótulos de esparadrapo.

O Nariz faz o primeiro experimento fatídico, combinando partes iguais de duas de nossas duas garrafas favoritas – a 38, com seu “toque de cereja”, e a 3, com seu “pacote quase completo”. Ele agita o copo, gargareja e… o gosto é horrendo. As misturas seguintes são igualmente repugnantes. Usando lógica reversa, o Nariz tenta misturar nossas duas garrafas menos favoritas, mas essa tentativa também acaba sendo cuspida. Eu não estou me saindo melhor, e minhas tentativas resultam em anotações como “Uva-seca torrada em uma sopa de piche para telhado”.

Francesco vai ficando impaciente; o Maurizio não fala nada. Só depois descobrimos que ele devia estar dizendo alguma coisa, que ele é praticamente um superastro do blending, fazendo vinhos em vários continentes para Mario Batali e a família Cinzano, entre outros. Se tivéssemos pedido seus conselhos, ele certamente teria dito que a primeira regra para fazer um bom blend é achar um bom vinho para servir de base e ir acrescentando aos poucos pequenas porções de outros vinhos, chegando a 0,1% por vez, para corrigi-lo ou melhorá-lo. Em vez disso, continuamos misturando tudo em grandes quantidades, entorpecendo nosso paladar com repetidos erros. Cansado de nos ver fazendo merda, Maurizio finalmente experimenta uma de nossas tentativas. “Eles não são complementares”, observa. Então faz um blend e passa adiante como exemplo.

A mistura é humilhantemente ótima. E não fazemos ideia de como ele fez isso. Se acrescento um vinho com um toque de pimenta, a mistura sai maravilhosamente apimentada, mas também com um gosto áspero e tânico. Se acrescento um vinho com uma textura suave, ele fica como seda, mas o gosto das frutas desaparece.

No início da tarde, Maurizio já foi embora faz tempo, Francesco está dormindo no sofá e Roberta está lendo uma revista na outra sala. Pelo menos uns 40 copos de vinho passaram pela minha boca e a única coisa melhorando é a prosa das minhas anotações. A respeito das misturas, escrevo: “envernizado com caramelo derretido”, “licorice mergulhado em cacau em pó”, “cheiro de tabaco molhado”. Estou precisando de um intervalo.

O Nariz, por outro lado, continua firme – e passou a se preocupar em encontrar o equilíbrio perfeito entre dois vinhos diferentes, antes de acrescentar gotinhas de um terceiro. Quando já estou começando a tropeçar nas pernas, ele grita “É isso!” e ergue sua mais recente criação – 80% do tonel 4, 15% do 41, 5% do 49. “Acho que é melhor que o do Maurizio.” Eu experimento. “Acho que é um vinho nota 90!”

EM CASA, ESCOLHEMOS um nome – Furbo (gíria em inglês para mafioso) – e contratamos um amigo designer, que faz um rótulo com um desenho de Al Capone fumando cachimbo. Nossa caixa de garrafas pretas sem marcações passa pela alfândega, sem ser inspecionada, três meses depois.

Algumas semanas após a chegada da caixa, Antonio Galloni, o provador de vinhos italianos da The Wine Advocate, concorda em experimentar o Furbo. Em 15 de outubro levo uma garrafa até seu apartamento na parte chique de Manhattan, deixando nossos sonhos nas mãos da babá dos filhos do grande crítico. Três dias depois, ele manda suas observações por e-mail. As críticas são duras de engolir. “Este vinho tem um estilo peso-pena que não tem o corpo que vim a esperar de tintos da safra de 2006 da Toscana, principalmente de Montalcino”, escreve. O gosto que o vinho deixa na boca é “abrupto” e “sem profundidade”. Algum elogio? “A cor é boa.” Nota: 84 pontos, razoável para vinhos em geral e somente passável para vinhos de Montalcino. Uma garrafa de US$ 11 de Xerez Yellow, para comparar, levou nota 87.

“Detonou a gente!”, uiva o Nariz depois que leio o parecer de Galloni. “Porque ele não diz o que pensa de verdade? A gente precisa dizer nossos nomes na história?”

Também me sinto um pouco abatido. Mas então lembro que, em uma caixa de papelão debaixo da minha cama, tenho onze garrafas do que pode muito bem ser a bebida mais rara em Nova York. Com teor alcoólico na casa dos 12,5%, um rótulo de macho, e sabores de fruta tão suaves que dá até para se dizer que falta “recheio”. Vamos começar a festa!

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2010)







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