Milagre brasileiro


TERRA DO NUNCA: Marcio Tarobinha no volante
(Foto: Ronaldo Miranda)

Por Maria Clara Vergueiro

COPA DO MUNDO, ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS, RIO 2012, notícias sobre a alta do PIB. Nas capas das revistas mais influentes dos Estados Unidos e da Europa, o Brasil é “o cara”. Esse cenário era impensável em 1991, quando o Plano Collor afogou de vez as esperanças de quem começava a botar a cabeça para fora depois de mais de 20 anos de ditadura militar. Pode parecer aula de história, mas tem tudo a ver com o que o recém-lançado documentário Dirty Money pretende resgatar: o início da cultura e do mercado do skate num momento em que as perspectivas de crescimento eram nulas.

Dirigido pela dupla Ricardo Koraicho e Alexandre Vianna – diretor de cinema e ex-skatista da década de 1990, respectivamente –, o filme resgata as imagens e o espírito de um vídeo caseiro, produzido por um grupo de meninos fissurados pela ideia de andar de skate. Unidos pela falta de perspectivas, campeonatos e equipamentos, eles passaram a circular pelas ruas de São Paulo gravando os rolês, inspirados por um ou outro vídeo norte-americano que conseguia passar pelas fronteiras que isolavam o Brasil do resto do mundo. Acabaram, sem querer, registrando um estilo e atitudes que começavam a se definir junto com eles. “No final da década de 1980 o skate estava superforte. Tinha revista, programa de TV e uma galera muito nova vendo aquilo, o que fez com que a gente sonhasse. Veio o plano Collor e a indústria do skate quebrou. Os skatistas profissionais dessa época, que eram mais velhos que a gente, tiveram que se virar, trabalhar com outras coisas, salvo algumas exceções. Os mais novos, que ainda moravam com os pais, se uniram porque queriam viver de skate numa época onde isso passou a ser impossível. A vontade de superar aquele momento de crise foi o que formou esse grupo”, resume o diretor, Alexandre Vianna, 35 anos, dono da câmera que passou a acompanhar os meninos pela cidade.

Bob Burnquist, Marcio Tarobinha, Fabio Cristiano, Rodrigo Mancha e o próprio diretor do Dirty Money eram alguns dos protagonistas do vídeo, gravado ao longo de um ano sem campeonatos, editado em casa e “viralizado”, quando esse termo nem mesmo existia, passando de mão em mão por skatistas do Brasil inteiro. Naquela época, seis mil cópias caseiras do vídeo circularam pelo país influenciando e convidando outros “garotos perdidos”, órfãos da indústria falida, a andar na rua. “A gente chegava em Belém para algum campeonato tosco e os moleques reconheciam a gente do vídeo”, lembra Alexandre.

A fita foi batizada de Dirty Money, mesmo título do documentário que conta a sua história quase vinte anos depois. O nome, uma sátira à discriminação sofrida pelo skate naqueles dias, também virou a marca das roupas enormes que os meninos vestiam. “Se você quisesse alguma coisa, tinha que fazer”, conta Bob Burnquist no documentário, lembrando dos tempos de rodinhas gastas, shapes usados e roupas customizadas por eles mesmos e confeccionadas por alguma avó dedicada. No fim das contas, a resistência era a própria expressão do skate nacional ganhando corpo.


TRAIL GRAB ONE FOOT: Bob Burnquist
(Foto: Wanderlei Mendes)

DESDE SEMPRE, ENTRE A MAIOR PARTE DOS PROFISSIONAIS E DOS AMADORES, o skate é mais comportamento do que esporte propriamente dito, e a atitude que estava ressurgindo com a teimosia dos meninos foi determinante, na opinião de Alexandre Vianna, para consagrar o Brasil como potência mundial. Em 1995, Bob Burnquist foi o primeiro brasileiro a vencer uma etapa do Mundial, na Alemanha, um dos campeonatos mais importantes da época. “Ali a gente começou a achar que ia dar, que a gente conseguiria ter skate profissional no Brasil. Aquilo foi uma injeção de autoestima em todo mundo”, relembra o diretor. De fato, logo depois Rodrigo Meneses venceu outra etapa fora do país. O Brasil começava a mostrar um skate próprio, com aquela identidade que o tal vídeo soube captar tão bem. “O Dirty Money foi um vídeo brasileiro. Nós teríamos absolutamente outro skate no Brasil se não tivéssemos a crise, aquelas pessoas e o vídeo. Foi uma energia coletiva. O skate que se criou naquele momento é reconhecido internacionalmente como uma das melhores cenas do mundo, autônomo, que tem as próprias marcas, ídolos, shapes e estilo”, afirma Ale.

O tempo passou depressa, mas permitiu que aquele time pudesse realizar muito mais do que imaginava. Bob Burnquist revolucionou o skate vertical levando para as alturas toda a ousadia das ruas. “Com o switch stance e as manobras técnicas do street, ele criou um jeito novo de andar. É um cara genial mesmo”, comenta Ricardo, que se interessou em filmar o documentário depois de fazer um curta com Vianna. “A gente achava que a história do Dirty Money, que envolve trajetórias pessoais e influências culturais, seria uma boa maneira de falar do skate para um público maior, não só para quem já faz parte desse universo. Queria que a avó do cara entendesse a essência daquilo que acontece quando o neto pega o skate para dar rolê com os amigos.”

Aos 29 anos, Ricardo foi um dos primeiros a apresentar o wakeskate – que utiliza a prancha do wakeboard solta dos pés – ao Brasil. Trocou a publicidade pelo cinema depois de integrar a equipe de Hector Babenco, quando o diretor rodava o longa-metragem Carandiru, que retratou o massacre sofrido por detentos do então maior presídio do país.

Com o material mais importante do filme em mãos – os originais brutos do primeiro Dirty Money –, os dois diretores pensaram numa estratégia de produção e exibição do documentário que estivesse alinhada àqueles primeiros conceitos. O roteiro, entregaram para o estreante Marcelo Veloso, para “deixar na mão de alguém neutro, que pudesse ajudar a traduzir aquilo tudo numa linguagem que todos entendessem”. Descartaram a possibilidade de exibir o filme nos cinemas, disponibilizando o produto final no site do filme e do patrocinador, que liberou uma enorme sala de cinema em Los Angeles, para uma première especial. De lá, o filme integrou a seleção do L.A. Brazilian Film Festival, com curadoria de Fernando Meirelles. No Museu de Arte Moderna de São Paulo, a première brasileira reuniu família, atletas, amadores, patrocinadores, ícones e lendas vivas. “Com esta estratégia, o filme já foi baixado por mais de 20 mil pessoas, na última contagem. Nunca teríamos a mesma visibilidade no cinema. O que interessa é que, assim como aquela fita de vídeo, o documentário circule.”


GALERA: Marcelo Cruz (sentado), Nilton Urina ( de óculos), Coelho (ao fundo), Dalton Pig e Marcio Tarobinha, já com pinta de profissionais

Para Marcio Tarobinha, testemunha ocular daqueles tempos, o filme de hoje tem mesmo a relevância de um documento. “Os americanos sabem fazer ídolos e a gente não sabe muito. Acho que o documentário tem essa importância, de mostrar para a geração que está aí como foi que as coisas começaram. A gente dá muito valor ao Dogtown, mas esse documentário é o Dogtown do Brasil”, exalta o skatista, em referência ao documentário norte-americano que registrou, provavelmente, os primeiros skatistas do mundo – na verdade, surfistas californianos da década de 1970 que, injuriados com a espera do swell, começaram a botar os carrinhos para rodar dentro de piscinas vazias.

Membro da nova geração, Klaus Bohms, 23, reconhece em Dirty Money a alma do que considera o “skate de verdade”. “Não existe skate sem comportamento. Eu quero chegar aos 40 andando, e com orgulho do que fiz. Quero que seja tão real quanto foi aquele encontro dos caras, aquele vídeo. O papel dos profissionais é manter essa ideologia viva.”

Klaus é um, entre tantos no mundo, que hoje valorizam o skate menos competitivo e mais plástico, bonito de ver, pensado para ser um espetáculo de técnica, aliada ao contexto em que o skatista está inserido. Essa também é a leitura que Alexandre Vianna faz do skate dos anos 2000. “Não importa se o cara deu cinco 540 seguidos. A pergunta é como, de que jeito, a que altura?”. Isso, segundo ele, que hoje edita a revista Cemporcento Skate, não anula a importância da técnica, muito pelo contrário. “Precisa ser muito mais técnico para fazer uma manobra nessas condições, para fazer arte com o skate”. Se o conceito parece ter sido resgatado dos primórdios dessa cultura, as câmeras não. “Hoje, qualquer grupo de moleques andando na rua tem o seu videomaker particular. Geralmente, o cara que não é tão habilidoso acaba virando o cameraman, quase que nem acontece com os goleiros”, brinca. Com a tecnologia e a “marola” a favor do Brasil, fica bem mais fácil fazer uma pequena revolução. “Se perguntassem para a gente, naquela época, como a gente sonhava que o skate poderia ser um dia, a descrição seria o que temos hoje aqui.”

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2010)







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