Peixe fora d’água


PATRIMÔNIO: Vista de Telluride, com as Montanhas Rochosas ao fundo

Por Steven Allain
Fotos por Joshua M. Hill

“QUER CONHECER O UNIVERSO DE MONTANHA?”, me perguntou Caco. “Claro, por que não?”, respondi. “Então semana que vem a gente parte pro Colorado.” O convite do meu amigo e chefe, Caco Alzugaray – publisher da Editora Rocky Mountain – era praticamente irrecusável. É bem verdade que eu acabava de chegar de uma viagem à Austrália e tinha um milhão de coisas pra resolver no trabalho. Mas não ia deixar passar a oportunidade de assistir ao Mountain Film Festival, em Telluride, Colorado.

Primeiramente, porque adoro cinema e esportes de ação – e o festival unia exatamente essas duas paixões. Segundo, porque estava curioso para conhecer o universo que tanto fascina Caco e Andrea Estevam, a Belô, diretora editorial da revista Go Outside, que também iria na viagem. Ambos são experientes corredores de aventura e estavam ansiosos para suar a camisa nas montanhas rochosas – alem, é claro, de curtirem o festival de cinema. O evento reúne, todos os anos, a nata do montanhismo e da escalada norte-americanos.

Desde que me lembro por gente, cultivei com todas as energias meu amor pelo oceano. Fiz e ainda faço de tudo para poder passar o maior tempo possível no mar quando as ondas estão boas. O surf tem sido, por bem ou por mal, minha única constante nos últimos vinte e poucos anos. Tanta dedicação me manteve perto da costa e longe das montanhas por muito tempo. Mas a verdade é que o frio e a vasta imensidão sempre me atraíram. Apesar desta não ser a minha primeira visita às Rocky Mountains, minha experiência limitava-se a algumas viagens para praticar snowboard e a leitura esporádica de livros de montanhismo. Ou seja, lá em Telluride, eu seria um peixe fora d’água.

Já preparado para sentir-me fora do meu elemento, embarquei de mente aberta, ansioso por novos ares e uma cena diferente. Depois de uma escala em Dallas, aterrissamos na pacata Montrose e pulamos no carro em direção às montanhas – que em poucos minutos já exibiam seus picos brancos no horizonte. Nunca havia visitado as Rockies no verão – e a beleza da natureza nessa época do ano me impressionou. Ao lado da estrada corriam riachos de água cristalina de desgelo. Milhares de flores amarelas cobriam os campos de grama verde e farta que saciava o imponente gado Angus.

Em pouco mais de uma hora, a estrada afunilou-se num lindo vale que termina na base de uma imponente cadeia montanhosa. É ali, no fim desse vale, que fica Telluride. Assim que se chega ao lugar fica claro que além de muito charmosa, a cidade – na verdade, pouco mais que uma vila – tem uma rica história. Há mais de cem anos, Telluride surgiu como um dos centros de mineração da região e por décadas a extração garantiu o sustento de seus moradores – e dos milhares de mineiros que ali buscavam seu ganha-pão. A maioria dos prédios e construções são dessa época e considerados patrimônio histórico, inclusive nosso hotel, o New Sheridan, construído em 1891 e situado no coração da cidade.

MOSTRA: Dean Potter responde às perguntas da plateia após a exibição de Man vs. Eiger

O FESTIVAL COMEÇOU NO DIA SEGUINTE com uma série de sessões acontecendo simultaneamente nas pequenas e algumas vezes improvisadas salas de cinema de T’Ride, como os nativos chamam a cidadezinha. Após cada exibição, diretores e protagonistas discutiam a produção e respondiam perguntas do público, criando um ambiente interativo superinteressante. Além disso, havia palestras de grandes nomes do montanhismo todos os dias. Fiquei impressionado com as histórias de feras da escalada como Ed Viesturs e Dean Potter, ou com o piadista nato (e excelente escalador) Timmy O’Neill. Para mim, aqueles eram personagens desconhecidos e tudo era novidade.

Entre as sessões, Telluride fervilhava. Milhares de pessoas caminhavam pela rua principal, lotando cafés, livrarias, restaurantes e pubs. Na calçada, moradores, turistas, yuppies, escaladores, cinematógrafos e artistas de rua formavam uma eclética mistura de personagens. A cidade espera o ano todo pelo festival, que marca o começo do verão, e isso fica claro na cordial receptividade ao pessoal de fora. O maior exemplo aconteceu no segundo dia do festival, quando a rua principal foi fechada para a distribuição gratuita de sorvete. Isso mesmo, sorvete! Bastava entrar na fila e escolher o sabor e a cobertura – só mesmo em Telluride.

Eram tantos filmes que ficou impossível assistir a todos. Mas vale mencionar alguns destaques. Man vs Eiger, que conta a história do escalador Dean Potter e suas impressionantes conquistas, escalando sem segurança e fazendo Base jump com wingsuit, é de cair o queixo. Nico’s Challenge, que relata a brava escalada do Kilimanjaro pelo adolescente e portador de deficiência física (ele nasceu sem uma das pernas) Nico Calabria, é uma lição de vida. O emocionante Point of No Return conta a trágica história de três escaladores norte-americanos que perderam a vida no monte Edgar, na China, em 2008, usando imagens capturadas pelos próprios escaladores e depois encontradas na montanha.

Mas nenhum me impressionou tanto como 180º South. Dirigido pelo ex-surfista profissional Chris Malloy e protagonizado pelo surfista, aventureiro e escalador Jeff Johnson, o filme aborda maravilhosamente a questão da destruição do meio ambiente pela insaciável necessidade humana por energia e recursos. Isso tudo dentro de uma história de aventura e busca interior, traçando um paralelo incrível entre escalada e surf. Além de me fazer questionar a maneira como vivemos e consumimos – e consequentemente lesamos o meio-ambiente – o magnífico 180º South mostrou como o esporte dos meus companheiros de viagem estava próximo e interligado ao meu. Montanhismo, escalada, surf – na essência, é tudo a mesma coisa. Desafio, aventura, superação e interação com a natureza. Os elementos são os mesmos, muda somente a forma de interagir com eles.

Antes de voltar, ainda tive a oportunidade de fazer um trekking até o topo de uma montanha próxima cortada por uma belíssima cachoeira – a Bride’s Veil – e dar uma boa pedalada com meus amigos pelos vales próximos a Telluride. Esse contato com a natureza apenas confirmou o paralelo apresentado em 180º South. E fez com que, no final das contas, eu me sentisse em casa nas montanhas – um peixe que agora sabe mergulhar em outros mares.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2010)







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