Pisando em ovos


GELAAADA: Mergulhos a -1,8 ºC mostravam a diferença das cores no mundo subaquático do Ártico

Por Fernanda Franco

COMEMORANDO OS 100 ANOS DA CONQUISTA DO POLO NORTE, a expedição francesa Deepsea Under the Pole by Rolex partiu de avião para o Polo Norte com objetivos audaciosos. Depois de planejarem a jornada por três anos e simularem as condições que enfrentariam na Finlândia e nos Alpes, oito franceses e um huski siberiano chamado Kaiak – responsável por vigiar os ursos polares – foram desembarcados de avião no ponto mais próximo possível do Polo Norte geográfico. Da latitude 89 23 00 e longitude 76 08 01, eles partiram com o objetivo de percorrer de esqui 800 quilômetros pela calota polar e, ao longo do percurso, gerarem o maior arquivo de imagens e sons subaquáticos captados durante mergulhos a -1,8 ºC (temperatura mínima antes da água congelar). Além disso, também tinham na lista de tarefas colaborar com um programa europeu coletando informações sobre a espessura do gelo e da neve por onde passassem.

Para dar conta de todas essas missões aparentemente impossíveis, foi preciso que cada integrante da equipe arrastasse um trenó de cerca de 140 quilos com equipamentos como cilindros de ar comprimido, roupas de mergulho pesadas, botes para enfrentar as fendas no gelo, alimentos e barracas.

Unir em uma mesma expedição dificuldades como caminhar em temperaturas entre -15 ºC e -50 ºC arrastando um trenó pesado, viver 24 horas sob a luz do dia, mergulhar num oceano a -1,8 ºC e lidar com a imprevisibilidade da natureza em condições tão hostis ao homem pode tirar do prumo qualquer planejamento. E foi o que aconteceu com o grupo de franceses.

Mesmo partindo no início da primavera, quando o sol é permanente e o gelo ainda é forte e grosso, eles nem chegaram perto do destino final que planejavam – as ilhas Ellesmere, distante 800 quilômetros do Polo Norte geográfico. O grupo tinha estimado andar 17 quilômetros diariamente, sendo que no melhor dos dias fizeram apenas 8 quilômetros – a média ficou em 5 quilômetros. A temperatura aumentou 20 ºC em meados de abril (de -30 ºC para -10 ºC), criando muitas aberturas no gelo e reduzindo a espessura da calota polar, o que dificultou a progressão em esquis e tornou inviável chegar às ilhas Ellesmere, onde estudariam a fauna do local. “Nossos trenós estavam muito pesados por causa do equipamento de mergulho. Por isso, não estávamos nada rápidos, principalmente com as condições caóticas do gelo”, revela Emmanuelle Périé, por e-mail.

Por outro lado, abandonar a ideia de progredir rapidamente significava aproveitar por mais tempo os locais de mergulho com boas condições e cumprir a meta de montar o maior banco de imagens do Polo Norte. “Mergulhar no ártico é uma experiência única. Você se sente em outro mundo, ou no espaço, e fica minúsculo em relação à grande massa de gelo ao seu redor”, conta Emmanuelle. “A primeira diferença é a visibilidade, pois a água é realmente cristalina. A outra é a diferença entre o lado de dentro e de fora da água. Fora é tudo monocromático, você só enxerga branco. Embaixo do gelo você vê diferentes tons de azul e verde. Quanto à fauna, a grande surpresa foi termos visto em um dos primeiros mergulhos duas grandes nuvens de krill”, explica a única mulher do grupo.

COM O PASSAR DOS DIAS, a situação do derretimento precoce do gelo ficava mais evidente até debaixo d’água. “Tocávamos o gelo enquanto mergulhávamos, e ele se desintegrava. Também conseguíamos empurrar alguns blocos para fora, o que não seria possível com as temperaturas normais. Por outro lado, a luz era bem diferente nesse período de derretimento em relação ao começo da expedição”, explica Valentine X.

A técnica para se mergulhar sob o gelo é especial, principalmente no Polo. Um do grupo estava sempre preso a um buraco no gelo por uma corda, com duas pessoas a postos na superfície. Quando o gelo se move muito, são abertos mais buracos por segurança, para que os mergulhadores possam ter alternativas. Também são usados relógios especiais, com sistemas mecânicos ao invés dos digitais, que falham nessas condições. Nos 51 mergulhos realizados ao longo da expedição, nenhum incidente foi relacionado, além de uma pequena entrada de água na roupa de Emanuelle, logo resolvido.


QUENTE: A fragilidade do gelo atrapalhou os mergulhadores

Enquanto os mergulhadores aproveitavam o tempo disponível e a capacidade de armazenamento de dados em terra, a equipe de logística preparava o resgate do grupo. Desde o dia 21 de abril, menos de um mês de pois da chegada do grupo ao Polo, já estava decidido que eles deveriam ser retirados do gelo o mais rápido possível. Especialmente esse ano, um estudo comparativo mostrou que no meio de fevereiro, auge do inverno, o gelo já estava pouco consolidado, mostrando mais falhas que o comum. Em março, as temperaturas estavam satisfatórias para permitir o pouso do avião que deixou o grupo, mas em abril a situação se inverteu de novo com ventos quentes vindos do sul. Nunca temperaturas tão altas foram registradas no Polo Norte como se viu agora.

No resgate da equipe, o problema estava em pousar o avião que deixou todo o grupo, um DC3, e os equipamentos numa camada de gelo frágil para o seu peso. Até a companhia aérea se surpreendeu com a situação inesperada para a época do ano. A alternativa encontrada foi usar dois aviões Twin Otter, de menor porte, que poderiam pousar em um gelo mais fino e em uma área menor.

Foram necessárias duas viagens para retirar o grupo todo com o Twin Otter. Os expedicionários “marcaram” a pista de pouso com as malas fluorescentes, e em uma pequena janela de bom tempo, metade da equipe foi resgatada. Os outros quatro integrantes foram os últimos a deixarem o local, junto com Kaiak, que não afugentou nenhum urso polar, porque os predadores não apareceram.

PILULA MÁGICA

Aproveitando que os mergulhadores seriam submetidos a condições tão extremas, a expedição monitorou como os corpos dos mergulhadores reagiriam vivendo e mergulhando no gelo dia após dia

A novidade estava no método: antes de cada mergulho, eles engoliam com água uma cápsula-gel radio transmissora . “A pílula tem sido usada há cerca de dois ou três anos. É uma tecnologia nova e, provavelmente, foi a primeira vez em condições polares”, explica Ghislain Bardout, o líder da expedição.

Capaz de registrar a temperatura corporal entre 12 e 72 horas após ter sido ingerida, a cápsula transmite os sinais captados do corpo através do sistema digestivo para um gravador de dados localizado próximo aos mergulhadores. Esse sinal é convertido em formato digital, sendo que o display mostra tanto a temperatura em tempo real, quanto arquiva para uso e download posteriores. “Trouxemos as informações de volta à França e as transferimos para o doutor Jean Eric Blatteau, do hospital militar de Toulon, que está supervisionando o programa de análise da fisiologia dos mergulhadores. A expectativa é que as primeiras publicações dos resultados sejam feitas em até um ano”, explica Ghislain.

A proposta é estudar não só a resistência térmica humana durante o mergulho sub-polar, mas também as mudanças de temperatura durante ciclos de 24 horas, referente ao ciclo de vigília/sono. Como a expedição aconteceu com luz do dia permanente por causa da época do ano e da latitude, a ideia era avaliar como a temperatura corporal varia sem a existência do dia e da noite, ou seja, com exposição contínua à luminosidade.

Os mergulhadores também preenchiam uma espécie de diário sobre as horas dormidas em cada dia, a que horas se alimentavam, se exercitavam, se sentiam cansados ou sonolentos. Posteriormente, essas informações serão cruzadas com as que estavam sendo captadas por um actímetro de pulso.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de julho de 2010)







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