A solução dos problemas


NO JOGO: Daniel durante uma das tentativas no implacável The Game, o boulder mais difícil que ele já abriu até hoje
(Foto: Divulgação)

Por Mario Mele

FALTAM MENOS DE DUAS HORAS para a seleção brasileira estrear na copa do mundo da África do Sul e a cada toque da vuvuzela o escalador norte-americano Daniel Woods me olha com um sorriso de interrogação. Mesmo depois de saber a razão da empolgação da vizinhança, ele continuava achando o som da corneta de plástico engraçado. Até que uma bomba treme-terra o fez cair na gargalhada. “Futebol!”, exclamou. “Ela joga bem, às vezes me ensina umas regras desse esporte”, disse, apontando para a namorada, a também norte-americana Courtney Sanders, que é ainda melhor como escaladora.

Daniel e Courtney vieram ao Brasil para o campeonato Open North Face de Boulder, em Curitiba, promovido pela marca que o patrocina. Naquele momento em que conversávamos, ele já havia vencido a competição, desbancando César Grosso e Jean Ouriques – dois escaladores brasileiros que ultimamente têm concentrado esforços no boulder. Courtney, mesmo escalando há somente dois anos, foi a terceira colocada entre as mulheres nesse evento, atrás das brasileiras Thais Makino e Andreia Rissi, respectivamente.

A escalada é a vida deles. Portanto, ao contrário da nação brasileira que aguardava aflita o Brasil entrar em campo, eles só pensavam nos blocos de pedra de Ubatuba e São Bento do Sapucaí, as duas cidades paulistas que ainda estavam pendentes na agenda do casal no país. Então resolveram que aproveitariam os 90 minutos de bola rolando e estradas vazias para se mandar para o litoral.

Daniel fez 21 anos dia 1º de agosto. Só de escalada, já tem 16. Tudo começou quando o pai dele, um programador de sistemas, recebeu uma proposta de emprego melhor no Colorado (EUA). “Antes nós morávamos no Texas, numa região totalmente plana, nada boa para a escalada”, conta ele. Quatro anos depois de ter experimentado o esporte pela primeira vez, o garoto passou a se interessar pelas competições. “Conheci Chris Sharma e Dave Graham, os melhores escaladores do mundo, que abriram meus olhos para os campeonatos.”


BEM-SUCEDIDO: Daniel tem apenas 1,70 metro, parece um magrelo mirrado, e acha que suas pernas são fracas. Mas será que os braços não compensam?
(Foto: The North Face)

A paixão de Daniel (e modalidade em que ele conquistou o maior reconhecimento, sendo considerado hoje o melhor do mundo) é o boulder, um estilo de escalada caracterizado por lances curtos, em blocos de pedra que não passam dos 5 metros de altura, no qual não são utilizadas cordas – no máximo um colchão para amaciar a queda. Nisso, a trajetória dele tem sido diferente da de Sharma e Graham, que também têm boas conquistas na escalada esportiva. “Acredito que o boulder seja a forma mais pura da escalada, por não usar equipamentos. É também muito social – pratico com amigos – e desafiador, porque você sempre procura o caminho mais difícil para seguir”, diz. “Enquanto na escalada esportiva as vias são longas, parecendo mais um teste de resistência, no boulder o lado ginasta do escalador está constantemente sendo posto em xeque. É necessário dar pulos e se segurar apenas com um dos braços.”

Foi um ginasta, o norte-americano John Gill, o responsável por transformar o boulder num esporte autônomo, desvinculado da escalada tradicional. Na década de 1950, quando a modalidade ainda era vista como um treinamento de força para os escaladores tradicionais, Gill passou a fazer da escalada em boulder um estilo de vida. Ele também era matemático, e costumava chamar os desafios na rocha de “problemas”. Além da força e habilidade, Gill trouxe o carbonato de magnésio da ginástica olímpica para a rocha. Esse pó branco ajuda a controlar o suor das mãos e é até hoje um acessório indispensável em todos os tipos de escalada. Mas, se nos anos 1950 Gill ampliou os limites do boulder com “problemas” V8 e V9 (sistema de graduação em boulders em que quanto maior a escala numérica, maior a dificuldade), em 2010 foi Daniel Woods que elevou de vez o nível da modalidade.

Em fevereiro, sem ter nada melhor para fazer durante o rigoroso inverno do Colorado, ele decidiu se dedicar novamente a um projeto numa parede negativa em Boulder Canyon – lugar ideal para a prática do esporte, próximo de onde o atleta mora –, e que há dois anos já vinha tomando seu tempo. Depois de resolvido, Daniel o batizou de The Game (O Jogo, em inglês) e sugeriu a inédita graduação V16. “Foi a coisa mais trabalhosa que realizei até hoje na vida. Tive que evoluir mental e tecnicamente para conseguir”, garante. “É uma escalada dificílima do começo ao fim, com uma sequência de movimentos V10, alguns bem longos, em agarras pequenas. E o que define a graduação é a combinação desses movimentos”, completa Daniel, justificando o grau proposto. Trata-se realmente de um problemão: para se ter ideia, alguns dos melhores escaladores do mundo, como o suíço Fred Nicole e o francês Tony Lamiche tentaram ganhar O Jogo, mas voltaram para casa com o rabo entre as pernas.

O nome, segundo Daniel, foi atribuído por se tratar de uma escalada em que é preciso acionar a opção “jogo” na mente, ou seja, treinar as passagens até que elas se tornem uma coisa fluida, natural. Coincidência ou não, atualmente uma de suas preferências musicais é o rapper californiano Game. “Mas gosto também do Lil Wayne e do Young Jeezy”, completa.


BOULDERING: Na Turquia, até ruínas foram transformadas em paredces de escalada
(Foto: Divulgação)

O ESCALADOR “GANGSTA” agora espera pelo lançamento do filme sobre o The Game. Seu esforço foi registrado pela produtora Big Up (bigupproductions.com), quase uma 20th Century Fox do gênero escalada, e, em breve, poderá ser visto no curta-metragem The Hardest Move, que será lançado durante o festival Reel Rock (reelrocktour.com), em setembro. “Estou acostumado com câmeras e flashes. Há seis anos elas fazem parte das minhas escaladas. E gosto de assistir ao resultado final, primeiro porque as pessoas envolvidas na produção são meus amigos, e depois porque acho legal ver como meu estilo e força melhoraram de quando eu tinha 17 anos pra hoje.”

Nos últimos quatro anos, a evolução de Daniel foi exponencial. Em junho de 2007, ele fez a primeira ascensão de um projeto no parque nacional Rocky Mountain, também no Colorado. Em 2001, Dave Graham havia visualizado e tentado essa conquista – em vão. Seis anos depois, Daniel retomou os trabalhos, conseguiu chegar ao topo, e então chamou a linha de Jade (V15). Há um vídeo no YouTube que mostra toda a trabalhosa função. Até conseguir domar Jade, Daniel desgruda várias vezes da parede, esfola os dedos, xinga. “Já era meia-noite quando finalmente consegui. Além da minha headlamp, havia lanternas e holofotes, alimentados por geradores, que ficavam constantemente mirados para a parede. Estava tão claro quanto um ginásio de escalada”, relembra.

Daniel concorda que uma escalada dura se transforma quase em uma obsessão enquanto não é concluída. Mas assegura que não se trata de uma neurose sem limites. “Me sinto confiante quando o sol se põe e a temperatura cai. Com menos calor e as mãos suando menos, a aderência na rocha aumenta muito. Portanto, escalar no fim de tarde, ou mesmo à noite é perfeito quando você está querendo ultrapassar seus limites.”

Despertar Jade foi como mexer no formigueiro. Depois que Daniel mostrou que era um projeto escalável, choveu escalador querendo desafiá-lo. Tanto que hoje a potente via já soma sete ascensões, entre elas a do inglês Tyler Landman e a do norte-americano Paul Robinson, dois caras que sempre estão correndo atrás dos maiores problemas do mundo do boulder. “Não sei se é mais fácil do que realmente parecia ou se os escaladores estão cada vez mais fortes”, reflete ele.

O próprio Daniel não deixou de fortalecer os próprios braços. Em 2007, ele focou as competições. Ganhou um título nacional e foi vice-campeão do Mammut Bouldering Championship, evento promovido pela marca suíça de equipamentos que geralmente inova nos formatos das paredes de escalada. Um ano depois, tirou terceiro lugar na copa do mundo de boulder, na Áustria, promovida pela Federação Internacional de Montanhismo e Escalada (UIAA). Já 2009 foi o ano de dar um gás na escalada esportiva. Em Gorges Du Loup, na França, Daniel costurou a dificílima Kinematix (via 9A na graduação francesa, que equivale ao 11c da tabela brasileira). São poucos os escaladores no mundo que desfrutam desse nível na escalada esportiva, mas Daniel ainda se diz um iniciante nessa modalidade. “Um iniciante que encadena uma via 9A”, ironiza a namorada Courtney. Ele se explica: “Não me sinto motivado para me dedicar à escalada esportiva como faço no boulder. Apenas um 9A no currículo nem se compara às coisas que Sharma ou [o jovem escalador tcheco] Adam Ondra fazem. Eles são realmente profissionais nessa modalidade.”

Mesmo assim, os triunfos dos anos anteriores não chegam nem perto do apetite com que Daniel acordou em 2010. Pela dificuldade, The Game poderia ser até considerado o prato principal. Mas em junho, poucos dias antes de vir ao Brasil, ele foi novamente destaque da mídia especializada ao vencer o Teva Mountain Games, no Colorado. O campeonato valeu como uma etapa da copa do mundo de boulder, que integra o calendário da Federação Internacional de Escalada Esportiva (IFSC), o órgão máximo da escalada competitiva. Para colocar a mão no troféu, Daniel teve que superar o austríaco Kilian Fischhuber, atual líder do ranking mundial da IFSC, e o japonês Tsukuru Hori, o terceiro do mesmo ranking. E assim assinou uma nova marca: foi o primeiro escalador norte-americano a ganhar uma etapa da copa do mundo de boulder. Entre as mulheres, Alex Johnson já tinha conseguido a façanha em 2008, mas, entre os homens, uma etapa da copa ainda era tabu para os Estados Unidos.

“Claro que ser o primeiro a resolver um problema complicado na rocha me traz muita satisfação”, explica Daniel. “Mas acho que vencer uma competição é ainda mais prazeroso. Envolve vários escaladores top, e apenas um sai vencedor. Mesmo que você escale um boulder V16 na rocha, nunca poderá afirmar que é o melhor do mundo por causa disso. Vários escaladores podem repeti-lo em seguida. Sem contar o lado estressante dos campeonatos.”


OMBRO AMIGO: Mais uma investida na escalada esportiva
(Foto: Courtney Sanders)

POSTERIORMENTE, OUTROS “PROBLEMAS” V16 foram sugeridos – e solucionados –, como o Rastaman Vibration, solucionado por Paul Robinson em Buttermilk, na Califórnia. Talvez por isso Daniel não faz a mínima questão de se lembrar que ainda é o único escalador que até hoje não foi cuspido pelo impiedoso The Game. Dessa maneira, parece nunca estar satisfeito. “Atualmente, estou trabalhando num projeto no parque nacional Rocky Mountain, do lado esquerdo de Jade, que acredito que seja um V15 ou V16. Passei uma semana só estudando os movimentos.”

Enquanto fala sobre novos projetos, Daniel abre os braços, levanta uma das pernas e se prende a uma parede imaginária, parecendo executar uma complexa posição de ioga. “Nunca fiz ioga, meu treinamento tem sido puramente a escalada e exercícios para fortalecer os dedos. O máximo que faço além disso são algumas abdominais e flexões de braço”, admite.

Só então percebo que seu tênis é um modelo de skate, com um furo na parte de fora do pé esquerdo do tamanho de uma moeda de dez centavos. “Não é perigoso um escalador profissional andar de skate?”, pergunto, mudando completamente de assunto. “Pode ser, mas é viciante”, responde. “É como escalar: você cai bastante, mas enquanto não acerta, é impossível parar de tentar. E quando você finalmente completa a manobra, a sensação é muito boa, parecida com a de resolver o ‘problema’ de um boulder”, diz.

Pois é, Daniel é também um skatista, que desce escadarias com manobras de flip e frequenta pistas com a namorada. E não se cansa de falar sobre os benefícios desse esporte. “Apesar de ser perigoso para os tornozelos, andar de skate é um excelente treino para as pernas. Meu biotipo é bom para a escalada, tenho braços compridos e fortes, mas minhas pernas são meu ponto fraco. As dela são mais fortes do que a minha”, diz, olhando para Courtney. Definitivamente Daniel não nasceu para o futebol.


(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de agosto de 2010)







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