Virando picolé


EBULIÇÂO: Parece quente, né? Mas a água estava a 2 ºC

Por Grayson Schaffer
Fotos Melody Deas

É HORA DE NADAR, e por isso eu jogo minhas pernas para o lado do meu caiaque duplo sit-on-top de fibra de vidro e pulo nas correntes e ondas a 13 oC do mar do Cabo da Boa Esperança, na África do Sul. O sal arde nos olhos e a água passa de preta a azul, com feixes de algas dissolvendo-se em direção à sombra do caiaque que flutua sobre mim. Logo chego à superfície. “Você não pode vacilar”, grita Lewis Gordon Pugh, maior nadador de longa distância em águas geladas do mundo, enquanto remexe a água perto de seu caiaque. “Nade como se estivesse correndo por um campo minado.”

Certo, os tubarões. Estamos dando sopa no mar do Cape Point, a ponta da península do Cabo da Boa Esperança, com a False Bay a leste. Este é o segundo de três mergulhos gélidos em que me juntei a Lewis – um tipo de iniciação ao regime dele de treinamento para uma grande travessia. O primeiro foi no gelado reservatório de Silvermine, no topo da Table Mountain, na Cidade do Cabo. Esta aqui é bem cerimonial, apenas 20 jardas oceânicas, mas estamos em um dos locais mais famosos de reunião dos grandes tubarões brancos. Se você já viu uma foto de mandíbulas voadoras rasgando uma foca, provavelmente foi tirada em False Bay.

Dawid Mocke, a melhor metade no meu caiaque duplo, opera a embarcação enquanto Lewis me ensina. Se você vai nadar na costa do tempestuoso Cabo, não há melhor equipe para te dar assistência. Dawid é o atual campeão mundial de corrida de caiaque deste tipo, enquanto Lewis, britânico que passou a vida indo e voltando da África do Sul, é o “Ice Bear” – o Urso de Gelo.

Nas últimas décadas, Lewis – quarentão de 1,85 metro e cabelos grisalhos – nadou trechos de 1 quilômetro ou mais nos lugares mais congelados do mundo para chamar a atenção para a mudança climática: a baía de Whaler, na ilha Deception, na Antártica; os 204 quilômetros do fiorde norueguês Sognefjord; ao redor da ilha ártica de Spitsbergen, na Noruega; e, em 2007, por 1 quilômetro de águas abertas no polo norte geográfico, onde teve congelamento nas mãos, ficando quatro meses sem sentir os dedos. Este última também causou uma doença nunca antes conhecida, envolvendo um cristal de gelo na urina. “Você nunca sentiu dor até ter uma estalactite no pinto”, disse Lewis encolhendo-se.

Em abril, quando o visitei, ele estava nos estágios finais de treinamento para uma travessia em maio de um dos vários lagos de 1,5 quilômetro de extensão aos pés da geleira do Khumbu, no Everest. Apesar da água não ser tão fria quanto a dos oceanos polares, também não terá tanto empuxo. A altitude, mais de 5.000 metros acima do nível do mar, poderia exigir que ele nadasse peito, em vez do tradicional crawl, para conseguir respirar. Minimizar o tempo dentro d’água é crucial para Lewis, já que seus feitos sempre estão de acordo com as regras da English Channel Swimming Association (Associação de Natação do Canal da Mancha): sunga, touca, óculos e nada mais.

Eu sigo as regras também, mas minhas braçadas mais parecem uma foca paraplégica do que um nadador treinado, o que justifica a ponta de preocupação na voz de Lewis, enquanto nadamos de volta para os caiaques. No círculo de amizades de Lewis e Dawid, todo mundo conhece alguém que já foi atacado. Tem o Shark Boy, nadador de longa distância que perdeu uma perna, e a amiga de Dawid, Lyla Maasdorp, que pegou o caiaque dele emprestado e devolveu com a metade de trás arrancada por uma mordida. Para aumentar ainda mais minha ansiedade, vinte minutos atrás eu e o Dawid sentimos um baque no casco, que poderia ter sido imaginação – até que veio a segunda pancada bem quando estávamos trocando o olhar de “foi você?”. Mas hoje os tubarões estão seletivos. Voltamos aos caiaques e terminamos nosso tour de 6,4 quilômetros pelo Cabo.

LEWIS MORA COM SUA ESPOSA, Antoinette, seu filho, Finn, e seus dois pequenos cães, Kanga e Nanu, no bucólico bairro de Noordhoek, na Cidade do Cabo. Ele começa o dia praticando boxe, levantando peso e correndo pelas dunas de areia ao redor da montanha na baía de Hout com seu treinador, Craig Scarpa, 35. Alguns dias ele nada um pouco no reservatório de Silvermine, nas águas onde tudo começou, em 1987.

Aos 17 anos, Lewis, que era salva-vidas na praia de Clifton, começou a fazer aulas de natação na piscina com sua equipe do colégio. Um mês depois, ele realizou a dura travessia de 6,4 quilômetros da Robben Island – notória prisão onde Nelson Mandela ficou trancado durante o apartheid – até a Cidade do Cabo. Seis anos mais tarde, Lewis atravessou os 33,6 quilômetros do Canal da Mancha. “Como nadador, eu sou apenas acima da média”, disse, “mas tenho muita força de vontade”.

Essa vontade e a determinação em preservar os locais que ama vêm do seu falecido pai, Patterson Pugh, ex-almirante da Marinha Real e ortopedista pessoal da Rainha. O velho Pugh estava presente durante o primeiro teste da bomba atômica britânica em 1952, no mar da costa oeste da Austrália, sendo responsável por determinar as causas da morte e níveis de radiação na vida marinha que fosse parar na costa após a explosão. Isso teve um profundo efeito nele – mais tarde, contou aos filhos que viu uma imagem em raio X de suas mãos através das pálpebras fechadas. Em 1980, Patterson se aposentou da marinha e mudou-se para a África do Sul, pelo clima temperado. Ele aproveitava as férias escolares para levar Lewis e sua irmã mais velha, Caroline, a vários dos muitos parques nacionais do país.

Depois de se graduar em direito pela Universidade da Cidade do Cabo e por Cambridge, Lewis trabalhou como advogado marítimo em Londres. Em 1998, juntou-se à reserva da elite das Forças Aéreas Especiais (SAS) do Exército Britânico. Ele não tinha muito tempo para nadar, com seus fins de semana ocupados pelo paraquedismo, mas aprendeu a ser duro como um soldado. Foi depois da dispensa, em 2003 – no mesmo ano em que as SAS foram enviadas para o Iraque –, que Lewis decidiu qual seria sua missão: realizar feitos em natação e usar a publicidade gerada para chamar a atenção aos danos causados pelas mudanças climáticas.

“Quando decidi isso, as únicas travessias que sobravam eram as muito geladas”, admite. Mas, com muitas das paragens geladas se derretendo em velocidades alarmantes, o nicho se encaixava muito bem com a missão conservacionista de Lewis. Seu primeiro feito como ativista foi em 2005, quando ele chamou o então primeiro-ministro inglês Gordon Brown, depois de sua travessia em Spitsbergen, para dizer-lhe que realmente as geleiras estavam derretendo. Pouco tempo depois, Gordon nomeou o primeiro-ministro das mudanças climáticas da Grã-Bretanha.

Hoje, Lewis nada em tempo integral. Suas travessias norueguesas de quebra de recorde pelo Sognefjord, em 2004, e logo depois em Spitsbergen o ajudaram a conseguir patrocínios e palestras corporativas onde transforma sua mensagem ambiental em lições de motivação para executivos. A Speedo e a rede varejista sulafricana Pick n Pay financiam suas expedições, enquanto ele sustenta a família dando cada vez mais palestras – atualmente umas 85 por ano. Depois da natação no Everest, ele espera aumentar esse número para mais de cem.


ÚLTIMO FEITO: Em maio, Lewis atravessou o lago Pumori, a 5.300 metros, no Everest

ASSIM COMO MUITOS NADADORES de longa distância, Lewis é grandalhão. Na preparação para o Everest, ele ganhou dez quilos, que mais parecem uma capa de gordura num super herói. Seu regime de engorda é comer tudo o que consegue, especialmente carne de caça africana, como hambúrgueres de avestruz e carne seca de kudu (que ele mastiga constantemente). Mas a modalidade escolhida por ele é muito mais complicada do que simplesmente engordar e mergulhar.

No mundo da natação em águas abertas, atletas de águas geladas são um nicho tão pequeno que dá para contar nos dedos congelados de uma mão. Tem a norte-americana Lynne Cox, 53, que acumulou uma série de fatos de tirar o fôlego nos anos 1970 e 1980, inclusive umas braçadas ao longo de 1,6 quilômetro na Antártica e uma travessia de 3,7 quilômetros entre duas ilhas – uma nos Estados Unidos e outra na então União Soviética – no estreito de Bering.

O que Lewis faz é, na verdade, mais comparável a escalar na zona da morte – acima dos 8.000 metros de altitude – do que a qualquer feito em natação. Assim como para um alpinista, sua sobrevivência depende de treinamento, fisiologia, aclimatação e força mental. Em água gelada, assim como na zona da morte, existe um limite de tempo em que se consegue sobreviver antes de desmaiar ou do seu coração parar.

Quem o ajuda a navegar por essa linha é Tim Noakes, professor de exercício e ciência do esporte na Universidade da Cidade do Cabo e especialista em fadiga do exercício. Durante minha visita à casa de Tim, no luxuoso bairro de Constantia, ele me explica como tudo funciona. Lewis nada com um termômetro retal, que transmite sua temperatura corporal para Tim, num barco que o acompanha. Ele estima que o limite de tempo do nadador em águas a 0 ºC seja de mais ou menos meia hora.

Mais importante do que a reação fisiológica de Lewis é o que se passa em seu cérebro. Tim escreveu um estudo controverso em 2004, em que argumentou que fadiga e falhas físicas não são totalmente causadas por desgaste muscular, mas por um instinto de sobrevivência preocupado demais que ele chama de “governador central”. O corpo manda sinais de dor para o cérebro, dizendo que está muito gelado ou cansado para continuar, e o cérebro responde modificando seu comportamento ou, em circunstâncias extremas, desligando as coisas. “Você vem com seus limites biológicos, mas sempre há reservas”, diz Tim. O professor cita o desempenho extraordinário de ciclistas sob efeito de anfetaminas – que não os deixa mais fortes – como um exemplo de competição além do que o governador central permitiria. Lewis tornou-se sua cobaia para encontrar uma forma mais natural de acessar essa reserva.

Para enganar sua mente, Lewis trabalha com o psicólogo do desempenho Martin Jenkins. “Uso uma técnica que desenvolvi, chamada ‘programação de atenção consciente’, em que ensinamos Lewis a focar sua mente como um raio laser numa série de ‘impulsos escondidos’, o que lhe dá uma habilidade extraordinária de conseguir resultados excepcionais”, explicou Martin num e-mail. Como, por exemplo, elevar sua temperatura corporal a 38,3 ºC antes de nadar.

Tim chama isso de “termogênese de expectativa”, mas nem mesmo Lewis sabe ao certo como ele faz isso. “Fecho os olhos e me imagino dentro de um Hercules [avião de transporte de tropas], voando a mil metros. Trinta soldados esperando sua vez de saltar para a negra noite”, escreve ele em seu recente livro de memórias, Achieving the Impossible: A Fearless Leader – A Fragile Earth [Conseguindo o Impossível: Um Líder Destemido – Uma Terra Frágil]. Aí ele grita “Vai! Vai! Vai!” e se joga. “Tem que ter um motivo para estar ali”, ele conta. “Meu mantra é ‘não há outro lugar em que eu quisesse estar’.”

Seu primeiro objetivo é sobreviver ao choque inicial. A reação humana à água extremamente fria é um reflexo de respirar fundo, seguido de hiperventilação. “A maior parte das pessoas não consegue coordenar braços e pernas com a respiração”, diz Tim, então o mais comum nos casos de afogamento em água gelada é as pessoas morrerem por se debaterem e inspirarem água, em vez de hipotermia. Há também o perigo do que se chama afogamento seco. Isso pode acontecer quando uma só gota de água gelada atinge a epiglote – o pedaço de mucosa no fundo da garganta que direciona a comida e o ar para seus ductos apropriados – e dispara um espasmo que fecha as vias aéreas, levando ao pânico e ao sufocamento.

Já acostumado ao choque, Lewis mentalmente direciona seus membros a um esforço organizado. Daí vem a dor. Em águas geladas, os nervos produzem uma palpitação no corpo inteiro, que não para nunca. Cientistas do Laboratório de Pesquisas da Dor Humana, da Universidade de Stanford, mensuram o limiar de dor de uma pessoa pedindo a ela que coloque a mão num balde de água a 0 ºC pelo maior tempo possível. A média é de menos de vinte segundos. A travessia de Lewis no Polo Norte, em águas a -1,7 C, durou 18 minutos e 50 segundos.

O maior perigo para ele é a hipotermia. “Você tem que sair da água antes que a temperatura corporal chegue a 34 ºC”, diz Tim. Normalmente, 34 ºC seria considerado uma hipotermia leve, mas os braços de moinho de Lewis esfriam mais rapidamente do que seu corpo. O corpo pode até estar a 34 ºC, mas seus bíceps e panturrilhas podem já estar com 32 ºC. “O sangue que irriga esses membros enregelados volta para o corpo mais frio, o que apresenta um sério risco”, adverte o professor. Depois de nadar, a temperatura corporal de Lewis continua a cair, chegando próxima dos 33,3 ºC – perto da falência de músculos e cérebro. Se ele perder a consciência, pelo menos já estará fora d’água, onde pode conseguir um chuveiro quente e atenção médica. Até hoje isso nunca aconteceu. Mas também ninguém nadou 1,6 quilômetro a 5.000 metros de altitude até hoje.

No Everest, o verdadeiro assassino é a altitude. A questão é se o ar rarefeito irá retardar Lewis a ponto de que ele não consiga atravessar em meia hora. O isolamento também complica o assunto. No Polo Norte, sua equipe de apoio tirou seus óculos e o colocou rapidamente num chuveiro quente, a bordo de um navio quebra-gelo russo. No Nepal, ele terá uma dúzia de mãos – principalmente Sherpas, liderados pelo General britânico aposentado Tim Toyne-Swell – que terão que reaquecê-lo com água fervida no acampamento.

PELO MENOS NÃO HÁ TUBARÕES na piscina de gelo. O terceiro teste de Lewis para mim é sua costumeira aclimatação pré-expedição à água gelada, que fará uma vez por dia durante a próxima semana. A piscina em questão é do tipo circular, com 1 metro de profundidade, e o único lugar na Cidade do Cabo que consegue produzir gelo suficiente para resfriar adequadamente a água é o cais de pesca da I&J. O lugar é um longo galpão de dois andares, onde as traineiras atracam para descarregar sua pesca e realizar consertos.

O guarda na entrada dá uma série de telefonemas incrédulos sobre os dois caras que dizem ter permissão para montar uma piscina na doca. Então levanta a cancela e encontramos um ponto entre pilhas de redes embaraçadas e pallets carregados com galões de 200 litros cheios de óleo de motor. Vários funcionários vestidos com macacões manchados de diesel imediatamente começam a nos ajudar. O gelo? Ali. Um cara desaparece e volta dirigindo uma empilhadeira carregando uma tina com uma tonelada de gelo picado, e logo traz a segunda. Aparece mais um homem com uma mangueira de incêndio, que cospe uma gosma preta por todos os lados até que sai água propriamente dita.

A piscina se enche. Não se preocupe com o gelo; somos os dois coxinhas branquelos de sunga no meio do parque industrial. A minha sunga é pequena demais, o que arranca um comentário de Lewis: “Nem o Borat usaria uma dessas”. O mundo cai na gargalhada ao nosso redor, mas então ele fica sério. “Agora escute, você tem que se comprometer 100% a dez minutos. Você sabe que tem força interior para isso.”

É nesse momento que entendo a diferença entre um mergulho de urso polar e o que Lewis está me pedindo. Nunca havíamos discutido um objetivo específico, mas dez minutos soa como muito tempo, e o banho parece gelado – menos de 5 ºC, ele estima. “Em suas marcas, preparados, vai!”, de repente ele rosna. “Simplesmente entre e sente-se.”

Eu obedeço. O ar foge de mim e arfo, enquanto uma dor de cabeça de sorvete muito gelado toma conta do meu corpo inteiro. A urgência de me levantar e sair é forte, mas estou focado num cronômetro imaginário fazendo tique-taque na minha cabeça. Atravessei meio mundo para me sentar nesta piscina de gelo e, maldita seja, vou conseguir. Depois de alguns segundos, o fogo se aplaca, menos nos pés, e eu sinto a minha pele contrair e esticar-se em volta do meu corpo.

“Quero que você diga: ‘Eu consigo fazer isso’”, ensina Lewis. E o que sai é uma serie de ruídos primatas. Lewis entra e recosta-se contra a lateral da piscina como se fosse uma banheira quente. Ele parece calmo e pacífico, como se estivesse pensando em qual cerveja vai pedir da próxima vez que a garçonete vier. Eu tento imitá-lo e duro uns poucos segundos. Então ele resolve que a água poderia estar mais gelada ainda. Ele levanta e começa a quebrar pedaços do gelo que flutuam no meio da piscina e joga-os em cima de mim. “Quebre! Quebre!”, grita. Eu tento, mas agulhadas de dor atravessam minhas mãos. Depois de nove minutos, consigo sentir o calor do meu corpo lá no fundo, mas minhas palmas e solas dos pés doem muito mais. É impossível bloqueá-las. Finalmente, Lewis grita “Tempo!” e saímos. O ar de 15 ºC parece estranhamente quente, e estou frio demais para tremer ou para correr até meu casaco. O tremor começa alguns minutos depois, forte e incontrolável. É o tipo de frio profundo que não cessa com o aquecedor do carro.

Naquela noite, na hora do jantar, Lewis inconscientemente massageia os dedos – os mesmos que sofreram congelamento na natação do Ártico – enquanto fala. Finalmente, ele se vira para mim e pergunta “Seus dedos estão pinicando?”

“Esquisito, os meus não doem nada”, respondo, tirando um sarro. “Sabe, quando você sofre danos nos nervos, a dor sempre volta…"

Mas antes que eu consiga terminar, Lewis enfia os dedos nos ouvidos, afogando minha fala – “Lalalalalala” – usando mais uma de suas técnicas de controle mental.

“Não, falando sério”, pergunta de novo. “Seus dedos não estão pinicando nem um pouco?”

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2010)







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