Nos passos de Joe Simpson


PAUSA NA CAMINHADA DO SEGUNDO DIA: " É um dos trajetos mais exaustivos. Estava chegando no passo Siulá Punta, com 4.830 metros. Mas o visual deslumbrante recarregava a energia com poucos minutos sentado"

Texto e fotos por Felipe Milanez

FAZ FRIO. O vento varre as montanhas até o vale, fazendo o teto da barraca quase tocar meu corpo deitado. A tarde cai. Há muita névoa lá fora e não enxergo um metro à frente. Foi um dia exaustivo: caminhei mais de 40 quilômetros, subi cerca de 2.500 metros, e agora estou a 4.800 metros de altitude. As pernas doem. Se me aquecer, sei que as dores vão melhorar – recebi esse conselho de Joe Simpson, montanhista que há 25 anos escalou a inédita face oeste do Siulá Grande, na mesma cordilheira em que estou agora.

A altitude some com o oxigênio e desidrata. Estou dentro do saco de dormir, cansado, mas sem sono. Joe, que se tornou meu companheiro de viagem pela Huayhuash, acaba de despencar para a morte depois de ter alcançado o cume do Siulá Grande. Ele não esperava que a descida fosse tão traiçoeira, mesmo sabendo que é na descida que a maioria dos acidentes em alta montanha ocorrem. Por mais que eu já conhecesse o desfecho da aventura de Joe, a sensação de mistério e a expectativa de acompanhar a luta dele para sobreviver não diminuíram. Ele é forte, técnico, determinado, tem muita capacidade de concentração e consciência de como seu corpo reage à pressão da alta montanha. Sei disso, mas a angústia persiste. Não há nada que eu possa fazer, além de seguir lendo e torcendo para que ele sobreviva.

Em algumas horas, o vento para, e com isso uma sensação de paz parece chegar ao ambiente. A tempestade aos poucos vai dando lugar a um céu de estrelas. Saio do casulo, estico a perna, urino, olho o infinito diante de mim. Ao fundo, atrás da lagoa de Carhuacocha, nuvens passam como uma cortina a se abrir e apresentar o esplendor do Siulá, uma impressionante massa de rocha e gelo. Fico quieto, admirando a imponência de seus 6.344 metros. Aqui no Peru as montanhas são divindades para as populações indígenas. Para mim também há algo de sacro nessa visão. Os glaciares brilham com a lua e a lagoa reflete esse cenário como um espelho mágico.

Enxergo, no horizonte, as fissuras das gretas no gelo. São como pequenos traços, cicatrizes na montanha. Mesmo daqui de longe, de onde a dimensão do volume e tamanho é completamente desproporcional e ilusória, elas parecem imensas e assustadoras. Joe estava lá, penso comigo. Bastava ele ter esperado o vento limpar o tempo, a tempestade terminar e o sol chegar, no dia seguinte cedo, para que a descida tivesse sido muito mais segura.

Amanheceu um sol forte, brilhando por trás das montanhas. Em quechua, huayhuash quer dizer “amanhecer branco”. Saio da barraca, que tem a lona congelada e dura como uma porta. Atrás da lagoa brilha o Siulá Grande, e é na sua direção que sigo. É apenas o meu segundo dia na trilha de cerca de 180 quilômetros que contorna a cordilheira Huayhuash, e esse talvez seja o mais bonito de todos. Ao longo de 20 quilômetros e cerca de 1.000 metros de subida, passarei em frente ao Siulá e bem próximo da linha de lindos picos nevados da cordilheira, além das três lagoas em variados e surpreendentes tons de verde, estendidas nos vales.

Guardo o livro Tocando o vazio na mochila, dentro de um saco plástico para proteger da chuva que deve chegar em algumas horas. Vinte e cinco anos separam a minha presença em Huayhuash do acidente dos dois jovens escaladores britânicos Joe Simpson e Simon Yates.

NA NOITE DE 7 DE JUNHO DE 1985, Joe e Simon estavam no segundo dia da descida do cume do Siulá – que haviam conquistado na ensolarada tarde do dia anterior – quando Joe despencou de um degrau de gelo e quebrou a perna. Simon, sentado em um buraco cavado no chão, sem ancoragem ou sistema de segurança adequado, passou a baixá-lo pela corda, até que Joe despencou no vazio. Alguns anos depois, em seu livro Tocando o Vazio, Joe escreveu: “Então, aquilo que eu esperava aconteceu. As estrelas se foram e eu caí. Como algo que retorna à vida, a corda chicoteou violentamente contra meu rosto e caí silenciosa, infinitamente, em direção ao vazio, como se estivesse sonhando que caía.” A epopeia que começava ali para Joe é uma das maiores histórias de sobrevivência humana em situação extrema: a escalada na greta, com a perna quebrada; os dias rastejando, sem alimentos ou água. É também, pela precisão e qualidade da descrição, um dos maiores clássicos da literatura de aventura.

Decidi fazer a trilha acompanhado apenas de um guia – o simpático e companheiro Mario, um arriero de burros – e dois esforçados burritos que carregavam nossa alimentação e bagagem. Não arrisquei subir nenhum pico, nem chegar tão próximo do Siulá a ponto de atingir os glaciares. Limitei-me a passar sete dias (inclusive o réveillon e o primeiro dia do ano) observando as lindas montanhas da cordilheira, e lendo Joe Simpson em um dos circuitos de alta montanha mais bonitos do mundo.

Localizada ao sul das cordilheiras Blanca e Negra, que são separadas pelo estreito vale do Callejon de Huaylas, a Huayhuash é um aglomerado de imponentes picos recortados, isolados geologicamente de tantas outras montanhas no Peru, encaixado com perfeição entre a densa floresta amazônica e a aridez da costa peruana. São oito cumes acima dos 6.000 metros de altitude, praticamente um ao lado do outro. O majestoso Yerupajá é o segundo mais alto, depois do Siulá, que domina a família que inclui Rasac, Siulá, Jirishanca, Carnicero, Rondoy, Sarapo. Os oito picos nevados são como seres sobrenaturais. Olhando-os de baixo, eu imaginava uma personalidade distinta para cada um.

O tempo em Huayhuash é marcado pelo som da água. Ali nasce o Marañon, um dos principais formadores do rio Amazonas. A água que escorre para o Marañon desce serpenteando os Andes até a planície Amazônica. Esse fio d’água ganha volume e, ao atravessar a fronteira com o Brasil, é batizado de Solimões – nome que carrega até encontrar o rio Negro e formar o rio Amazonas. Huyahuash é uma das caixas d’água da Amazônia. É natural que as tempestades tropicais tenham efeitos aqui em cima. Ventos fortes e mudanças bruscas no clima, de um céu límpido para uma tempestade, são um constante na cordilheira. Estou ali em plena estação das chuvas, considerada a pior para o trekking, e por isso mesmo aquela que permite caminhar absolutamente só – apenas no último dia, quando descia para Llamac, topei com um pequeno grupo de espanhóis que iniciava a trilha.

Água vem do céu, todos os dias, no início do período da tarde, com chuvas constantes nos vales que se transformam em neve nos pontos mais altos. Água vem do chão, nas inúmeras nascentes que brotam em terrenos planos, formando uma visão absolutamente lunática, com bolas da vegetação local de alguns metros brotando do chão, verdes e floridas, circundadas por água que se espalha profunda e cristalina pelo solo. Água desliza por rios, córregos, cachoeiras, pelas paredes. O som que marca o ritmo da caminhada e do sono, em Huayhuash, é o som da água na pedra, como um zunido de fundo, sempre presente. De tempos em tempos, eu ouvia também um estrondo. Parecia um trovão, grave e distante, mas eram avalanches. Na beira das lagoas, quando tinha visão direta dos glaciares e podia ficar tempos admirando a sua beleza, presenciei algumas vezes elas escorrerem como cataratas.


AMANHECER DEPOIS DA PRIMEIRA NOTE DA TRILHA: Lagoa Carhuacocha, 4.138 metros. No fundo, bem no lado esquerdo, quase sem aparecer na foto, o Siulá Grande, com 6.344 metros. "Foi a primeira vez que vi o Siulá"

JOE E SIMON PASSARAM SEMANAS ACAMPADOS, adaptando-se à altitude. Depois levaram sete dias para sair do acampamento, subir o Siulá e retornar. No estilo alpino de montanhismo, os escaladores partem para o cume em uma única tacada. Levam comida e equipamentos, e dormem no caminho se for preciso. Não há acampamentos intermediários onde poderiam deixar reservas de alimentos e medicamentos, o que tornaria o trajeto mais seguro. “Se alguma coisa der errado, pode dar muito, muito errado”, diz Joe. “Se alguém ficar seriamente ferido, provavelmente morrerá.”

Passei apenas o tempo da escalada e descida deles, uma semana. Ao invés de dividir a trilha nos 15 quilômetros diários recomendados pelas agências, emendei dois ou três percursos “padrão” em um dia. Estava só e em busca do esforço físico e do prazer da exaustão. Dispensei as agências e contratei Mario como guia quando desembarquei no vilarejo de Llamac, que parece uma cidade medieval ou uma aldeia antiga, feita de pedras e encravada em um vale.

Em Huaraz, a capital da região, aluguei equipamentos. Apesar de ser considerada o ponto de partida para o turismo nas cordilheiras Blanca, Negra e Huayhuash, e para a visita ao templo pré-inca de Chavin de Huantar, Huaraz tem uma arquitetura triste e modesta – poderia passar por uma grande favela do Brasil, com suas casas de tijolo, construídas a baixo custo. Mas a estética da cidade é resultado de um desastre natural: Huaraz foi completamente destruída pelo grande terremoto de Ancash de 1970, e depois refeita. As cicatrizes do trauma social causado pelo tremor estão na igreja em reconstrução às conversas com pessoas mais velhas que perderam familiares.

A história, o livro e o filme que retratam a luta de Joe Simpson pela vida deram notoriedade mundial ao circuito de Huayhuash – em todas as agências que passei me prometiam: “vamos levar você para ver onde Joe Simpson esteve”. Mario falava com certa intimidade do ocorrido, assim como os camponeses que encontrei em Llamac, em Chiquian – uma charmosa cidadezinha debruçada sobre um precipício e com uma linda vista da cordilheira – ou na trilha. Mas foi menos na visão do nevado Siulá, e mais na sensação do corpo na alta montanha, que eu pensava em Joe.

Como eu havia decidido cruzar dois passos de montanha por dia (os passos são as travessias mais altas do circuito, sempre por volta dos 4.800 metros de altitude), o segundo passo era sempre extenuante. Lembrava de Joe, e do método que ele desenvolveu para conseguir rastejar pelo glaciar e depois pelas morainas de pedra. Um passo, depois outro. Respirar. Um passo, depois outro. Respirar. Passava, como ele, a mirar um objetivo mais próximo e pensar comigo: vou caminhar até aquele ponto. Criar pequenas metas ajuda a controlar a ansiedade de um esforço grande e prolongado.

A luta de Joe para se salvar é genial, assim como a descrição que ele faz no livro do que passava em sua mente naquelas longas horas. Mostra consciência e racionalidade em momentos de alta tensão, de uma maneira que qualquer um pode se identificar, sem escorregar na literatura salvacionista ou de auto-ajuda. Quando ele começa a se recompor de uma terrível noite no fundo de uma greta, ele reflete: “Fui dominado por uma poderosa sensação de confiança e orgulho, ao reconhecer quão acertada fora minha decisão de sair do platô. Eu tomara a decisão certa e enfrentara o maior dos meus medos.”


ACAMPAMENTO HUAYHUASH: Nessa casa vivem três mulheres – mãe, filha e uma prima. As montanhas ao fundo são o Jirishanca (6.094 metros), o Yerupajá Chico (6.617 metros). Existem muitos córregos nesse acampamento, e se dorme ouvindo barulho de água na pedra

“ESCALÁVAMOS PORQUE ERA DIVERTIDO”, diz Joe Simpson no documentário Touching the Void, dirigido por Kevin MacDonald (no Brasil, traduzido como Desafio Vertical). “Apenas queríamos escalar o mundo, e era divertido, muito divertido.” O filme, realizado em julho de 2002, 17 anos após o acidente, também virou uma obra-prima do cinema de aventura, intercalando reconstituições de cenas com os depoimentos cortantes de Joe, Simon e Richard Hawking, que ficou cuidando do acampamento.

Mais distantes dos fatos, no documentário os dois escaladores refletem sobre as atitudes do passado. Concluem que a maior explicação para o fracasso foi a falta de planejamento: se tivessem levado mais gás, poderiam ter ficado mais tempo na montanha, sem ter de arriscar a descida no escuro, quando houve o acidente. O reencontro de Joe com as montanhas para as filmagens é memorável, e lhe traz novas reflexões: “Vi a face oeste do Siulá Grande e estremeci de medo. Parecia maior, mais malévola e mais ameaçadora do que eu me lembrava.” Joe tem consciência de que, ironicamente, não foi o trauma sofrido que mudou a sua vida, mas o sucesso de Tocando o Vazio. “O acidente abriu-me um novo mundo”, escreve.

Em sua primeira ida à Huayhuash, Joe praticamente não teve contato com a população local. O objetivo dele era a escalada, apenas. As filhas do dono das mulas que carregaram os escaladores e seus equipamentos faziam visitas ao acampamento, espiavam. Richard descobriu chamarem-se Gloria e Norma. Como elas, as pessoas surgem no livro como observadoras, e interagem pouco ou quase nada com os ingleses. Em Cajatambo, a cidade aonde Joe chegou após ter se salvo, ele encontrou camponeses, um policial e um motorista alcoólatra que o levou para Lima. Pessoas anônimas e distantes, que não demonstraram muito interesse pelo gringo, e nem o gringo por elas elas.

Abordado como um gringo, eu também tive pouco contato com os nativos – apesar de sempre ter interesse em conhecer as populações locais. São habitantes simpáticos, mas, como em muitos lugares turísticos, não são dados a abrir sua intimidade para o primeiro gringo que aparece. Preferem manter uma distância quase profissional daqueles que vêm conhecer a bela cadeia de montanhas ou o cenário da história de Joe Simpson.

Em Llamac, dormi na casa de Justino Basilio Vicuña, um atencioso guia de montanha que não pode fazer o trajeto comigo, pois queria passar a virada do ano em família. Vi crianças na rua, brinquei com elas. Falei com alguns idosos. Ouvi histórias. Enquanto atravessava o circuito da cordilheira, cruzei pastores que caminhavam em sua lida cotidiana. Vi uma jovem e simpática menina retornar, já quase noite, com burros e ovelhas, ao acampamento chamado Huayhuash. Ao amanhecer, ela voltou novamente do pastoreio – havia começado o dia de trabalho quando ainda era noite. A jovem dividia sua casa com a mãe e a tia – a casa das três mulheres. Se a cordilheira por vezes me parecia inóspita pelo distanciamento que essa geografia tem do meu universo cultural, ela é também o lar de uma cultura quechua que vive de forma modesta, mas confortável e adaptada. Enquanto eu e Joe vimos uma montanha para ser escalada ou admirada, os quechuas que vivem ali enxergam deuses, companheiros, amigos – ou uma montanha, simplesmente.

Mais do que uma experiência visual, percorrer o longo circuito da cordilheira Huayhuash é uma experiência existencial, em que a natureza impõe seus limites à frágil existência humana. Nossas aspirações e tecnologias são efêmeras diante de tanta rocha, gelo e vazio. Joe era como uma minúscula formiga escalando um dinossauro gigante. Cordas e equipamentos de segurança não foram suficientes para lhe garantir a sobrevivência. Foi a robustez física e psicológica que lhe deu força para chegar vivo ao acampamento.

Depois de tantos anos ausente, quando esteve de volta a Huayhuash para as filmagens do documentário Joe percebeu que a beleza que o cercava era realmente especial. “Eu havia me esquecido de como aquelas montanhas eram lindas, e de repente me dei conta de que, apesar dos meus vinte anos de escalada pelo mundo, a Huayhuash era a cadeia de montanhas mais linda que eu já tinha visto. A emoção me fez sorrir.”

Mergulhado nessa natureza, passei, sozinho, a noite em que a sociedade ocidental celebra a virada de mais um ano. Mario, que também pretendia festejar a virada do ano com a família, seguiu a trilha de volta para casa, em Llamac, e eu permaneci no coração da cordilheira, a mais de 4.000 metros de altitude, diante da lagoa de Jahuacocha e do nevado Yerupajá. Por vezes me deparava olhando para os nevados e sorrindo, como Joe.

O pastor que cuida daquele acampamento e de algumas ovelhas desceu a montanha e acompanhou Mario à festa tradicional da comunidade, em que serviriam um leitão. Me deu a chave de sua casa, uma choça de pedra com cobertura vegetal que lembra uma oca indígena. Mario deixou algumas trutas para mim, e eu pesquei outras para completar a ceia. As ovelhas estavam recolhidas ao fundo. Como geralmente ocorria nas noites de lá, não havia nuvens. O céu estava estrelado. Os nevados brancos cintilavam. Fazia frio. Mas o ar estava agradável – o pulmão já mais acostumado ao pouco oxigênio. Olhei para o Yerupajá, que me encarou de frente, quase tocando na lagoa de Jahuacocha a seus pés. Sorri. A sensação é de estar diante do sagrado, como entrar em uma catedral, uma sinagoga ou uma mesquita. Talvez tenha sido a conversa que tive com o pastor logo antes dele partir. “Fique tranquilo, não há ninguém aqui. Só as montanhas. Se quiser, fale com elas.”

Para ler:

Tocando o Vazio, de Joe Simpson (R$ 40; Cia. das Letras, com tradução de Rosita Belinky)

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de setembro de 2010)







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