Entre quatro quilhas


ADITIVADO: Munido de sua quad, o decacampeão mundial Kelly Slater entra no mar para mais uma bateria

Por Mario Mele

É UM CICLO NATURAL: profissionais criam tendências e amadores ajudam a propagá-las. Funciona assim na arte e na música, não podia ser diferente no esporte. Em 2005, depois de vencer o Maverick’s Surf Contest, um disputado campeonato de ondas grandes encaradas na remada, o jovem surfista norte-americano Anthony Tashnick fez questão de dividir as atenções com seu equipamento. “O segredo está na minha Stretch”, disse ele, referindo-se à sua prancha mágica de quatro quilhas construída pelo shaper californiano William “Stretch” Riedel. “Ela se agarrou à onda como uma [prancha] triquilha, mas funcionou melhor nas cavadas e mudanças de direção”, completou.

Apesar de Anthony não figurar no circuito mundial, ganhar uma disputa do porte de Maverick’s foi um divisor de águas para as pranchas quadriquilhas. Com essa vitória, as “quads”, como são chamadas, renasceram com força total depois de quase três décadas, quando foram inventadas, e, de lá pra cá, a procura por esse modelo entre os surfistas amadores tem crescido bastante.

“Tudo é uma questão de gosto”, diz Stretch, que fabricou sua primeira quadriquilha em 1983, quando Anthony nem sequer tinha nascido. “Assim como tem caras que gostam mais das morenas, há surfistas que preferem as quads, que são mais rápidas do que as tradicionais triquilhas e exigem habilidade extra nas manobras”, emendou. A perícia do shaper também conta. “Estou sempre aprendendo coisas novas sobre a colocação de quilhas, o tamanho de borda, o design da rabeta. Mas não posso entregar os meus segredos.”

A preocupação de Stretch faz sentido. Ele, que aprendeu a shapear com seu pai ainda nos anos 1960, atualmente é um dos mais envolvidos com a evolução hidrodinâmica das quads, além de estar frequentemente pesquisando sobre novos materiais para a construção de pranchas. Para aperfeiçoá-las, sua principal cobaia é o norte-americano Nathan Fletcher, que também é skatista e snowboarder, e que está sempre usando essas outras modalidades para ampliar seu repertório de manobras de surf. Seja passeando dentro de um tubo ou criando malabarismos aéreos, Nathan costuma estar acompanhado da quadriquilha feita por Stretch.

ESTE ANO, UM DOS MAIS RECENTES capítulos das quatro quilhas foi assinado pelo big rider havaiano Mark Healey. Na alta temporada de Puerto Escondido, no México, o surfista de 28 anos domou sua quad num dificílimo drop vertical, dobrou à esquerda na base da onda e adentrou o enorme salão oval de água salgada para finalizar o combo com perfeição. “A prancha encontrou a linha certa sozinha, eu só precisei ficar em cima dela. Essa é a beleza das quads”, ponderou o havaiano, fascinado com sua gunzeira de 9 pés.


CONTROLE: O californiano Anthony Tashnick desce uma "morra" em Mavericks, na baía Half Moon, na Califórnia. Ele foi o vencedor da edição 2004/2005 com uma quadriquilha

Mark se interessou pelas quads há três anos, quando estava atrás de uma prancha mais esperta. “Como nos principais picos de ondas grandes do mundo eu sou backside, queria uma prancha que respondesse bem às cavadas sem que precisasse colocar tanta pressão nos calcanhares”, explica ele, que surfa com a perna direita à frente (goofy footer). “Encontrei a solução na quad, que me permite entrar numa onda para a direita no ponto crítico e ainda assim permanecer nela, igual aos caras que a surfariam de frontside.” Sua performance tem impressionado tanto que, recentemente, Mark e a quadriquilha ganharam um artigo exclusivo no surfline.com, o portal de surf mais acessado do mundo.

O shaper de Mark é o californiano Gary Linden, que já havia feito história com essas pranchas no começo dos anos 1980. Em 1982, Gary construiu uma quadriquilha para ondas grandes encomendada pelo norte-americano Mike Lambresi, que se tornou tricampeão naquela década. Mas, desde então, as quads estavam fora do cardápio de sua fábrica em Oceanside, na Califórnia. “Inspirado pela vitória de Anthony Tashnick em Mavericks, me reinteressei pelas quads”, diz Gary. “Mas a eficiência delas só será amplamente reconhecida depois que algum surfista profissional ganhar uma série de eventos com uma”, acredita.

Em 2009, Kelly Slater disputou o Pipe Masters, no Havaí, com uma quadriquilha, mas foi barrado na final pelo australiano Taj Burrow. Dois anos antes, no entanto, o ex-campeão mundial CJ Hobgood venceu uma etapa válida pela divisão de acesso do circuito mundial (WQS) surfando com um modelo parecido. O próprio CJ se impressionou com o desempenho da prancha, pois era apenas a segunda vez que ele surfava com ela. “Realmente ela fez toda a diferença. Mas meu shaper Bill Johnson saberia explicar melhor como isso funciona”, disse na época.

Bill surfa de quadriquilha desde 1983, logo depois que os primeiros modelos foram fabricados. Hoje, ele nota o aumento da popularidade pelo crescimento das encomendas da sua marca Teqoph. “Vendemos muitas Stealth Quad, a mesma prancha usada por CJ.” Ele aposta as fichas na versatilidade das quads, com novos desenhos e formatações de quilhas. “Os shapers deveriam ser mais inventores, e não simplesmente ficarem copiando ou seguindo um mesmo modelo. Sinto que este é um segmento que ainda tem muito espaço para evoluir.”

O crédito da invenção das quads é um assunto polêmico até hoje. Mas alguns nomes – além dos já citados até aqui – são frequentemente mencionados quando se fala no desenvolvimento das quatro quilhas. O australiano Bruce McKee, por exemplo, criou, a partir de uma quad, o Multisystem, um kit com cinco encaixes de quilhas (um central e quatro laterais) em que é possível variar entre as configurações triquilha e quadriquilha. No Brasil, o shaper paulista Gregorio Motta é um dos que indicam a quad não somente para aprimorar o estilo, mas para sentir uma nova sensação do surf. E, para isso, pouco importa se é um equipamento de última geração ou uma peça de museu.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2010)







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