Carta ao vento


NAS ALTURAS: Vitor do jeito que ele mais gostava, na companhia das montanhas – no caso, o Aconcágua, na Argentina

Por Andréa Estevam

No dia 19 de maio de 2006, Vitor Negrete falecia a 8.300 metros de altura no Everest. Foi o primeiro brasileiro a chegar ao cume sem a ajuda de oxigênio. ANDREA ESTEVAM, parceira de aventura e uma de suas melhores amigas, escreve a ele, cinco anos depois

Oi, Vitones.

Caraca, já faz cinco anos. Nem parece. E às vezes, como agora, parece o dobro. Que saudade, meu amigo! Hoje você teria 43 anos. O que teria mudado, caso tivesse voltado vivo do Everest?

Gosto de te imaginar meio sentado, com as costas apoiadas no gelo, fitando para sempre a cordilheiras. Mas sei que, por mais que você tenha amado as montanhas acima de tudo, enxerga além delas, e olha pra cá, pra nós.

Cinco anos. Lembro direitinho: o telefone tocando de madrugada, o Caco me dando a notícia, chorando. Senti a dor chegando, se aprofundando, e chorei também. Marina e os meninos perdiam o marido e pai. Nós perdíamos um amigo. Muitos perdiam um ídolo, e o país perdia seu maior alpinista.

Aquele dia foi bizarro. O telefone tocando sem parar, com amigos e jornalistas atrás de informações. Eu tendo que escrever sobre você e ver suas fotos para escolher quais seriam publicadas. Nossa equipe de corrida de aventura – Caco, Ramon, Amendoim, eu e Alf – reunida num almoço incrédulo: você, morto? Por mais que soubéssemos dos riscos, jamais achamos que pudesse realmente acontecer.

O que me tirou do transe foi um repórter filho da mãe perguntando se você não tinha sido imprudente ao subir sozinho. O que se responde para um sujeito que questiona o inquestionável? Reli para ele um trecho do texto que você escreveu para a Go Outside sobre o curitibano Marcos Luszcynski, que havia morrido em 2005 no Mont Blanc: “No alpinismo, cada um decide como quer escalar (…) Defendo veementemente que cada um tem o direito de escolher onde e como quer escalar, e para isso deve se preparar e aceitar os riscos que está correndo”.

Você era o cara que mais sabia dos riscos de subir sem oxigênio e sem sherpas. Foi uma opção consciente, pragmática e simples, como você. Lembro de você dizendo que considerava qualquer “facilitador” (oxigênio, sherpas) uma pequena trapaça contra a montanha. Você já tinha chegado ao cume com oxigênio em 2005 e queria agora ir sem ajuda. Já Rodrigo, seu parceiro de escalada, pensava diferente: os sherpas e o oxigênio tornariam a subida mais segura e seriam cruciais caso algo saísse errado.

Você concordou. Afinal, eram uma dupla, e Rodrigo tinha razão quanto à segurança. Mas, quando a janela de tempo se abriu, você estava aclimatado, e Rodrigo não. Sozinho no acampamento 3, pronto para o ataque, seria de se estranhar se você não tivesse decidido fazer do seu jeito – sozinho, você e a montanha. Imagina que difícil foi para a Marina te ouvir, do outro lado do telefone satelital, comunicando a decisão, sem se sentir no direito de pedir que não subisse. Tinha que ser do jeito mais difícil e puro, né, cabeçudo? Foi assim sempre: tinha que subir no inverno, ou pela face mais sinistra, ou em solo, sem corda ou equipamento. Enfim, esse era você.

Os vídeos que você filmou lá no cume do Everest te mostram tão tranquilo, lúcido e forte. Você agradeceu ao Caco pelo apoio, declarou seu amor à Marina e aos filhos, os “fofitos”. Disse que precisava descer logo, era perigoso ficar ali. O que será que aconteceu que te fez pegar o rádio e pedir a ajuda dos sherpas? Será que você se sentiu mal de repente? Quais foram suas últimas palavras? Eles te ajudaram a chegar ao acampamento 3, te deram sopa quente, te colocaram no saco de dormir. E você não acordou.

O Caco se desdobrou para organizar uma cerimônia budista linda aqui na editora para sua família e amigos, no dia seguinte a sua morte. Ajudou a acalmar nosso coração. O que mais doía era ver o Leon pra lá e pra cá, sem saber o que estava acontecendo. Ele é tua cara e teu jeito, Vitones. Impressionante. Já o Davi era pequeno ainda, tinha poucos meses. E a Marina, bem, você conhece a força da mulher com quem se casou. Nossas orações, naquela cerimônia, foram para ela e seus pais. Você dizia que havia espiritualidade nas montanhas. “Um mundo que não vemos com os olhos”, nas suas palavras. Sabíamos que você estava em paz.

Enquanto isso, aí no Everest, o Rodrigo fez um memorial em seu nome no acampamento base. Foi a primeira de uma série de homenagens. Campinas batizou a Torre do Castelo, o ponto mais alto da cidade, de Vitor Negrete. A Unicamp colocou uma placa com seu nome na parede de escalada do Grupo de Escalada Esportiva. O Marcio Bortolusso fez um filme sobre sua vida, Em busca de sonhos, que foi destaque da Mostra de Filmes de Montanha em 2007. O Caco comprou e deu o maior trato na sua guerreira D20, o Trovão Azul. Você ia ficar feliz de ver. Mas a homenagem mais legal foi a Marina ter concluído, e o Caco ter publicado, aquele livro que você gostaria de ter visto impresso, sobre suas expedições. O título? Espírito Livre.

ESQUENTA: Vitor e Andrea (de óculos) às vésperas do Campeonato Mundial de Corrida de Aventura, na Nova Zelândia, em 2005

Em 2008, o Rodrigo voltou ao Everest e chegou ao cume ao lado do Eduardo Keppke, usando oxigênio. Ele te dedicou essa conquista e com certeza pensou em você a subida inteira. Bom, você deve ter acompanhado tudo de perto. Enquanto te escrevo esta carta, ele está aí de novo, para subir mais uma vez com oxigênio, mas descer voando de parapente. Fica de olho, se passar um campineiro louco voando na tua frente, é ele!

Nunca mais um brasileiro tentou subir o Everest com os pulmões. E, além do Rodrigo e Eduardo, somente Manuel Morgado chegou ao cume com oxigênio. Em compensação, cada vez mais gente se amontoa no campo base em pacotes “pagou, subiu”. Não é só o Everest – todo o Himalaia está mais lotado. A última “corrida” foi para ser o alpinista mais novo no cume do Big E. Jordan Romero, 13 anos, é por enquanto o recordista, mas tem outros moleques se preparando. E a China, por outro lado, quer estabelecer limitações de idade. O que será que você pensaria sobre isso? Ainda bem que naquela nossa última conversa pelo telefone satelital você me disse que tinha finalmente descoberto a beleza do Everest. Que bom. Detestaria saber que você perdeu a vida numa montanha que não respeitava.

Teus fofitos estão ótimos. Leon já tem 7 anos e vai muito bem na escola, gosta de andar de bike e skate. Toca flauta e está numa fase rock’nroll. Já sabe ler e escrever e gosta das aulas de literatura na escola. É independente e sabe argumentar quando contrariado. Davi tem hoje 5 anos. Gosta de andar de patinete e desenhar. É uma criança falante e está aprendendo violino. A Marina tornou-se professora universitária num curso de graduação em história da arte – o melhor trabalho do mundo, segundo ela. Mas ela pede pra eu te dizer que ser mãe do Leon e do Davi é a melhor coisa que aconteceu na vida dela e que sempre agradece a você pelos filhos maravilhosos.

Espero que a fitinha do senhor do Bonfim que te dei esteja ainda amarrada em seu macacão, porque as lembranças mais concretas que você deixou estão sumindo. As bandeirolas que trouxe do Everest em 2005 já apodreceram. A coleira que você fez pra Cuca com um cordim de prussik perdeu-se. A mochila que usamos no Ecomotion Pro 2004 e que carrega o amuleto com que você presenteou a equipe está desmanchando. As fotos não se renovam. Resta aquele improvável CD com Garbage e Kate Bush (fala sério, Vitão, que mistura). Ai, que saudade!

O que não vai desmanchar nunca são as histórias. Encontrei o Osvaldão, seu parceiro de pedalada na carretera austral, numa prova de bike e rimos dos seus “causos”, que já se transformam em lendas. Adoro ouvi-los e recontá-los – imagino você rindo também, com a cabeça para trás e a boca aberta, meio Gato Félix. Fui com o Caco a um festival de filmes de montanha nos EUA no ano passado e falamos muito em você, aquilo tudo era a tua cara. Na falta da pinguinha, brindamos teu nome com tequila das boas. Certeza que você estava lá com a gente. Acho que vou instituir um encontro anual dos amigos do Vitones. Será que você consegue dar uma passadinha? Ou então vamos tomar uma pinguinha no Muniça na próxima terça?

Beijos,

Belô

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2011)







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