Estranhos esportes russos


FIGURAS DEMAIS: Russos tocando tambor no Mont Blanc, na Europa

Por Maximo Kausch

Lembro que, em 2003, quando eu estava escalando na França, conheci um grupo de russos um tanto excêntricos. Um deles falava algum inglês, e começamos a contar um pouco de nossas vidas um ao outro. Milos me contou que ele fazia turismo na Rússia e que seu pai era campeão de turismo. Esses russos faziam muitas coisas estranhas e tinham equipamentos estranhos. Não prestei muita atenção à questão do “campeão de turismo“ na ocasião. Pensei que se tratava de uma pessoa que viajava muito e ganhara reconhecimento por isso.

Vi essa galera pela última vez no cume do Mont Blanc, com um tambor tocando músicas tradicionais russas. Anos depois o tal russo me mandou um email falando que, agora, ele "competia turismo" no Altay e no Cáucaso. Continuei sem entender…

Três anos mais tarde, durante a descida do acampamento 4 no Korjenevskoya, nas montanhas Pamir, na Ásia Central, encontrei dois russos subindo uma crista. Ilyia, o russo que estava comigo, reconheceu um deles, os cumprimentou, tirou uma foto e me apresentou os dois como turistas russos. Precisamente, ele disse "russian tourists".


Novamente ouvi aquele termo estranho. Imaginei que eram duas pessoas sem muita experiência em montanha, ou seja, eram apenas "turistas". Andrey, um dos turistas, se contorcia para explicar sua expedição usando as poucas palavras que sabia em inglês. Ao me aproximar, observei um estranho tipo de botas. Apontei para o pé dele, fazendo uma cara de: "O que é isso?". Sorrindo, ele desamarrou um crampom que, ao soltar um pedaço de espuma de colchonete, revelou uma papete e meias. Apontando para as meias e fazendo o número "2" com a mão, Alexey me advertiu que eram necessárias duas meias por causa do frio. Orgulhoso, ele apontou para sua bota improvisada e gritou: "KOFLACH!" — a famosa marca de botas –, fazendo um sinal de "Ok". Estávamos a mais de 6.000 metros de altitude, e o lugar todo encontrava-se coberto de neve.


MUITO LOUCO: Russo descalço no acampamento alto do Korjenevskoya

Eles ficavam realmente nervosos quando não conseguiam nos explicar alguma coisa. O amigo de Alexey, que mais parecia o russo mau do filme do Rambo, era o mais impaciente e, quando não conseguia se expressar, gritava em russo falando mais e mais rápido. Rapidamente, Alexey acendeu um cigarro e ofereceu: "Zigaret?", ali a 6.100 metros de altitude!


Iliya explicou mais tarde como foi que Alexey perdera a bota. Ele começou a contar que, durante a aproximação, eles acamparam na beira de um rio, que cresceu e levou parte dos seus pertences, inclusive uma bota. Sem entender nada, perguntei a história novamente. Iliya reforçou: “Isso mesmo, eles chegaram até aqui a pé, demoraram três semanas e tiveram que carregar tudo".


Eu tinha chegado ao acampamento base depois de viajar quase duas horas em um helicóptero. Lembro de ter aberto a janela e olhado uma paisagem cortada por rios e quase sem vegetação. "Aquelas montanhas de 7.000 metros ficam no meio do roteiro de turismo deles e tiveram que escalá-las”, alegou Iliya. Mais tarde a história foi esclarecida:


Os russos têm um esporte chamado "Turismo" ou "Turismo de Montanha" (ou como você queira traduzir горном туристском), que é mais ou menos o que nós classificamos como "rally humano" ou enduro. O turismo russo, porém, é bem mais complexo. Basicamente, você vai de A até B levando o que precisa. O problema é que, às vezes, aparece um pico de 7.000 metros no caminho, e você tem que escalá-lo, como aconteceu com Andrey e seu amigo. "Turistas de montanha" precisam de um grande conhecimento em vários tipos de escalada, trekkings complexos, técnicas de sobrevivência e sobretudo, ser russo!


Esteriótipos quase nunca se encaixam. No caso dos russos, no entanto, é diferente. Fiquei surpreso ao pesquisar um pouco mais sobre Andrey Lebedev. Li sobre alguns de seus roteiros de turismo pelo Altai. Um deles durou 26 dias e 225 km, atravessando passos montanhosos, rios, vales, escalando cumes, cruzando desertos etc. Imagino que seja necessário um psicológico extremamente forte para agüentar tanto, por tanto tempo.


O esporte tem seis categorias e até um campeonato russo de turismo. A grande diferença entre o turismo e a escalada é que um escalador vai até o topo e volta, enquanto o turista geralmente vai até o topo e continua seu roteiro dali. Um turista sempre leva sua bagagem e não faz um "ataque" a um cume sem carregar todo o peso. Entretanto, nas categorias mais altas de turismo, fica muito difícil dizer se o turista é mesmo turista ou escalador.


As categorias são definidas pela dificuldade dos passos montanhosos ou pelo grau técnico da escalada, longitude e duração do percurso. Durante o campeonato nacional, o turista deve desafiar os outros competidores, fazendo um roteiro mais difícil, mais longo ou mais técnico. Categorias ficam cada mais difíceis a cada ano, e hoje se cogita a possibilidade da criação da categoria 7.


Quando eu for para a Rússia, vou pensar duas vezes quando alguém perguntar: "Qual é o motivo da sua estadia? Turismo ou Negócios?".

*O site Alta Montanha é um espaço virtual inteiramente dedicado ao tema do montanhismo. Para visitá-lo, clique aqui. Conheça também o novo site oficial de Maximo (gentedemontanha.com)







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