Um brasileiro ateu terra dos sherpas


RELIGIÃO: Bandeiras de oração colocadas no acampamento próximo ao monte Cho Oyu

Por Maximo Kausch, do Alta Montanha

Os sherpas — habitantes das montanhas do Himalaia, especialmente do Nepal, e reconhecidos alpinistas — são uma espécie de ovelha negra no sistema hindu. Sua genética, religião e idioma diferem totalmente de seus vizinhos indianos. Apesar das diferenças, vivem em paz nas encostas de profundos vales de altitudes elevadas no lado sul do Himalaia. Eles habitam a cordilheira há tanto tempo que seus corpos já se adaptaram às adversidades naturais: esse povo tem baixíssima incidência de edema pulmonar, por exemplo, complicação causada pela altitude que todos os anos mata dezenas de ocidentais que se aventuram na região.

Sherpas descendem diretamente dos tibetanos. Há apenas 700 anos, os primeiros tibetanos atravessaram o Himalaia e se estabeleceram nos vales férteis onde hoje é o Nepal e o norte da Índia. Sherpa significa "gente do leste" no idioma local.


FORÇA: Os sherpas levam sua mochila na testa

Grande parte dos sherpas ganha a vida hoje com o alpinismo. Aproveitando-se de sua facilidade em grandes altitudes, trabalham diretamente em expedições, ajudando os ocidentais com tarefas do dia-dia. Os sherpas são acostumados a carregar peso, pois desde muito jovens passam parte da vida levando cargas nas costas. Sua bagagem não é levada nas costas, mas na testa!

Além dos trabalhos de "mordomo de altitude", eles são responsáveis por toda a logística de uma expedição. São os sherpas que levam e montam barracas em altitudes extremas, são eles quem cozinham, derretem a neve, carregam garrafas de oxigênio e até fixam cordas. Uma expedição comercial simplesmente não acontece sem esse povo. Estrangeiros pagam milhares de dólares por isso. No Himalaia de hoje, é possível contratar um sherpa só para você — ou "personal sherpa". Ele só não ajuda na hora de você ir ao banheiro.

É um povo extremamente amigável e fácil de lidar…. com exceção de duas coisas: seus nomes e sua religião.

A primeira vez que lidei com sherpas, notei que vários deles tinham o mesmo nome. Nomes como Pasang, Lhakpa, Dawa ou Migma são extremamente comuns entre eles. Anos depois me contaram o mistério: os sherpas recebem o nome de acordo com o dia da semana que nascem. um Pasang nasce na sexta-feira, Lhakpa na quarta, Dawa na segunda e Mingma na Terça. Ainda temos Nima (domingo), Phurba (quinta) e Pemba (sábado). Fora isso, eles usam o calendário nepalês, que é bem diferente do nosso. O ano de 2012, por exemplo, está em 2069 para eles. Agora imagine você que, numa expedição de grande porte, chegamos a ter uma dúzia de sherpas. Temos que pagar o seguro deles, verificar a documentação etc. A confusão já começa por estarmos lidando com vários Pasangs, Lhakpas ou Mingmas e, pior, nascidos em anos como 2029 (1972)!

Os sherpas têm seu próprio idioma, que é muito parecido ao tibetano. No entanto só é usado entre os sherpas. Quando alguém de outra casta nepalesa aparece, é utilizado o nepalês mesmo, um idioma hindu e totalmente diferente. É uma confusão só! Achou complicado!? Bem, você não sabe nem da metade. A religião sherpa é certamente o maior desafio com o qual montanhistas como eu têm que lidar, espiritualmente dizendo. Muitos do Ocidente acreditam que se trata de um povo espiritual e de princípios sólidos. Mal sabem eles a confusão que a religião gera na montanha!

Uma montanha é solo sagrado para os sherpas. Subri a um cume requer um ritual extremamente complexo, cheio de regras e superstições, em que um fiel basicamente pede licença à montanha e mantém os maus espíritos longe. Isto é chamado de puja (pronuncia-se pudja).

Escalar uma montanha de grande altitude já é algo extremamente complexo e exaustivo. A adição de requisitos religiosos torna uma escalada mais difícil ainda. Poucos sabem que o budismo praticado pelos sherpas é uma necessidade para as expedições que optam em trazê-los.

Como líder de expedições em que todos os trabalhadores são budistas, tenho que me adaptar a muita coisa. Viajo bastante e aprendi a respeitar os países onde me hospedo. Nas montanhas do Himalaia, não é diferente.

Para dar uma idéia, os sherpas nem sequer encostarão em uma montanha sem passar por uma puja antes. Uma boa puja requer uma grande quantidade de oferendas. O tsampa (farinha de cevada) é a base da dieta dos tibetanos e de alguns sherpas. É como se fosse o arroz e feijão do Brasil e é sempre venerado como sendo o alimento mais importante. Um bolo de tsampa é feito e geralmente apresentado como principal oferenda numa puja. Todo o equipamento que vai encostar na montanha, como piquetas, cordas, botas e crampons, deve ser benzido na durante a puja. Um pouco de manteiga de yak (um tipo de animal parecido com búfalo) é passada em cada peça de equipamento.


NAS ALTURAS: Lama lendo sânscritos tibetanos

Os problemas começam quando chegamos à montanha: às vezes o dia da chegada não coincide com o dia em que os deuses acham que é um bom para uma puja. O segundo problema vem em conseguir um Lama, que é a pessoa que executa a puja. O Lama nada mais é que uma pessoa que recebeu instrução religiosa e sabe ler sânscritos tibetanos. Esses são tão complicados que demoram-se cinco anos para aprendê-los! A complicação é muitas vezes ter que trazer o Lama conosco até a base da montanha, além de ter que alimentá-lo e hospedá-lo.

Na prática, uma boa puja deveria alcançar a totalidade de um acampamento para protegê-lo dos maus espíritos. Para isso são esticados uma espécie de varais com bandeirolas, parecidos com as da festa junina brasileira. Mas calma! Não é tão simples assim… Cada bandeirola tem uma seqüência de sânscritos tibetanos impressos nela. Em teoria, os fies incultos (que não sabem ler sânscritos) acabam "rezando no piloto automático" quando deixam o vento fazer o trabalho de rezar. Isto espanta os maus espíritos locais.

As pujas de montanha são feitas ao redor de uma espécie de altar, que é feito com rochas do local delicadamente empilhadas. Isto é chamado de "stupa" e comporta não só as oferendas, equipamento de escalada, mas também suporta um mastro onde bandeirolas de oração são amarradas.

Se você, ocidental inculto, quer ajudar a esticar as bandeirolas, o Lama sacerdote vai primeiro exigir que seus pais estejam vivos. A seqüencia das bandeirolas deve ser a seguinte: amarela, verde, vermelha, branca e azul. Quando você emenda uma seqüência de bandeirolas, você deve respeitar a ordem. Jamais são usados números pares de varais com bandeirolas. São sempre: uma linha, três, cinco ou até sete, mas nunca números pares. Quando esticamos elas, jamais podemos passar por cima, apenas por baixo.

Após a cerimônia toda ter sido concluída, o equipamento ter sido benzido e os espíritos maus estarem bem longe, ainda existem regras para deixar a puja funcionando: ao sair do acampamento e subir para a montanha devemos contornar a stupa em sentido horário. Ao sair da base, indivíduos jamais podem deixar o acampamento saindo em direções opostas. Isso traz má sorte — ou "dju-dju" ruim, como dizem os sherpas. Isso pode trazer mau tempo ou avalanches.

Os sherpas têm uma explicação religiosa para tudo! Lembro que em 2010 no Himalaia um grupo de coreanos chegou ao cume de uma montanha de 8000 metros trazendo as cinzas de uma companheira que tinha falecido no Paquistão. No cume, eles se despediram da amiga, deixando o vento carregar as cinzas. Algo que para nós, do Ocidente, parece ser muito bonito ou mesmo nobre. Para os sherpas, no entanto, é um verdadeiro transtorno! Aquelas cinzas da pobre coreana foram sentenciadas diversas vezes como sendo as culpadas de avalanches e mau tempo. Após constatarem a causa de tantos desastres, os sherpas presentes ali chamaram um Lama para fazer mais uma puja e afastar os maus espíritos trazidos pela coreana.

Em maio e abril deste ano, eu liderei uma expedição comercial ao monte Cho Oyu. Ao chegar no acampamento-base, a 5700 metros, vimos um alpinista francês desistindo da montanha. Segundo os quatro sherpas que trabalhavam para mim, ele tinha tentado três vezes e nem conseguiu chegar ao acampamento 2, com 7100 metros. Com uma tremenda convicção estampada nos rostos, meus sherpas vieram me contar a fofoca do óbvio motivo pelo qual o francês não tinha conseguido nem chegar a 7000 metros de altitude. O boato que corria era de que o cozinheiro da expedição do francês tinha visto ele "fazer sexo com a mão" (usaram essas palavras) e os pensamentos impuros deixaram que maus espíritos invadissem o acampamento. Eles estavam tão sérios que não tive nem a chance de discordar. O fato de eu concordar com a história fez com que a fofoca corresse solta no acampamento-base. No fim, a história foi distorcida, e a versão nova era de que EU tinha testemunhado o francês espantando espíritos com as mãos…. Deu um trabalhão explicar o que realmente aconteceu, mas isso é uma história à parte.

Acredite se quiser, sexo na montanha ou qualquer tipo de estímulo "impuro" é algo que quebra a ordem espiritual em uma montanha inteira. Tragédias famosas no Himalaia – como por exemplo a de 1996, quando 9 pessoas morreram no Everest – são até hoje explicadas pelas ações de alguns casais travessos…


SINAL VERMELHO: O corvo é considerado um espírito mau

Maus espíritos são o que os Sherpas temem mais. Por exemplo, em altitudes existem corvos que se adaptaram em poucos anos, e vivem dos restos deixados por expedições e caravanas de yaks (bovino de grande porte que habita grande altitudes). O corvo é considerado um espírito mau e isso é péssimo quando um deles pousa numa Stupa por exemplo. Que tragédia! Melhor espantar o corvo não?

Não, até para isso há superstições. Segundo a crença, é dju-dju ruim espantar um corvo. Se a Puja estiver sendo bem feita, os espíritos ruins vão embora sozinhos. Estranhamente em toda a Puja que participei, pelo menos um corvo pousou no topo do mastro da Stupa e voou embora mais tarde.

Sem corvos, ações impuras, deuses contentes, maus espíritos atormentando outra expedição e outras 50 exigências atendidas, os Sherpas tem sinal verde para subir! A excepcional eficácia destes super-humanos faz valer a pena toda essa espera.
Infelizmente, muitas vezes os deuses podem estar distraídos e muitos Sherpas acabam morrendo em avalanches, congelando no mau tempo ou mesmo caindo. O motivo é simples: eles são os que mais se expõe às imperdoáveis condições que encontramos em grandes altitudes.

Passo o ano trabalhando ao lado de Sherpas e respeito muito eles. Hoje aprendi a explicar fenômenos do jeito que eles entendam. Em vez de dizer: "Vamos descer, a pressão está mudando e logo haverá mau tempo", eu já vou logo acusando:

"Deve ter algum infiel usando a mão, vamos descer e pedir para ele parar!"

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