Chapa(da) quente

Incêndios criminosos voltam a destruir o Parque Nacional da Chapada Diamantina, um dos maiores redutos da biodiversidade brasileira

Texto: Bruno Romano


BRAVA GENTE: Integrantes da Brigada de Resgate Ambiental de Lenções
(BRAL) combatem fogo na chapada, em 2012

(FOTO: Daniel Moreira)

CHAMAS DESTROEM A CHAPADA DIAMANTINA. Incêndios misteriosos surgem aqui e ali já faz algum tempo e, ao que tudo indica, o problema não tem data para acabar. “Misteriosos” porque queimadas naturais são algo raro nesse pedaço mágico da Bahia. Especialistas sabem que é praticamente impossível a natureza permitir uma faísca ali, devido às condições topográficas e climáticas da região, conhecida mundialmente pela importância de seus ecossistemas. Então por que os morros, vales e campos da Diamantina teimam em arder? Culpa de muitos habitantes e de uma combinação explosiva de falta de informação e impunidade.

Décadas atrás, a mata do interior da Bahia era dominada por garimpeiros, caçadores e criadores de gado – atividades que têm seu sucesso econômico enraizado nas queimadas e que estão bem longe da cultura da preservação, iniciada oficialmente com a criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina, em 1985. Mas então veio o plano de manejo, e a realidade dos habitantes teve de mudar. “Hoje muitos colocam fogo por revolta, pois foram tirados de seu sustento. É simples: o parque não gera emprego. Ao mesmo tempo em que o turismo cresceu, não há uma regulamentação fundiária e não existe um bom trabalho remunerado para a comunidade”, explica Adroaldo Junior, o Jubileu, de 37 anos, 10 deles como coordenador da Brigada de Voluntários do Vale do Capão.


FOGARÉU: Em sentido horário, membros das brigadas voluntárias de Palmeiras e do vale do Capão são transportados para combater incêndio florestal em janeiro de 2007; incêndio destrói vegetação no parque em 2006; e, nas duas últimas fotos, fogo na serra do Sobradinho, perto da cidade de Lençóis, em 2008
(FOTO: Calil Neto)

As brigadas, quase sempre ligadas a associações de guias turísticos, são a resposta da sociedade civil para combater o fogo. “São 30 anos de turismo contra 300 anos de extradição. Da cultura do vaqueiro e do garimpeiro para a realidade de hoje não houve um meio termo. Tudo passou a ser crime, e não houve maiores explicações”, resume Thyago Rigoni, guia da Associação dos Condutores de Visitantes do Vale do Capão (ACV-VC), que combate incêndios na região há 14 anos. A pouco mais de uma hora dali, outros brigadistas vivem a mesma realidade em Lençóis, maior pólo da Chapada.

No último mês de abril, o tempo seco colaborou com a expansão rápida do fogo. A dificuldade para se chegar a certos pontos e a rapidez das chamas pioraram tudo. “Quando tem estiagem, eles tacam fogo e limpam grandes áreas”, conta Jânio Rocha, o Feijão, nativo de 34 anos e atual chefe da Brigada de Resgate Ambiental de Lençóis (BRAL). Após a mata ser queimada, surgem alguns brotos adorados pelo mocó, um pequeno roedor típico da região. Sem floresta em volta, viram alvo fácil de caçadores. “Aí a gente vê uns garimpando e outros caçando mocó”, conta.

O mocó é o símbolo da BRAL. Seu líder, Feijão, é filho de garimpeiros e tem 16 anos de batalha contra o fogo. Ainda garoto, fez um curso para brigadista da antiga PrevFogo, sistema de prevenção controlado pelo Ibama. Como seus irmãos, primos e amigos, ele achava que combater os incêndios poderia ser uma nova fonte de renda. Mas ao saber que seria tudo voluntário, a maioria dispersou. Feijão e alguns parentes decidiram abraçar a causa e hoje são figuras importantes nos combates.




FILME NEGRO: Fotos tiradas nos anos 1990 e 2000 dos esforços dos
moradores locais e da aeronáutica para combater o fogo na região da
chapada Diamantina
(FOTO: Calil Neto)

ADELSON TAMBÉM MUDOU DE LADO. Nativo do Capão, é guia desde 1997 e voluntário ativo da brigada do ACV-VC. “Antigamente ninguém combatia o fogo, e as chamas rolavam soltas. Eu mesmo, quando criança, taquei fogo com meu pai”, diz. Na época, a família plantava café e banana e vivia da venda das sementes. “A situação melhorou, mas até hoje tem gente que não sabe onde é o limite do parque.”

Jubileu tem mapeadas as áreas de maior incidência de fogo, mas conta que “não há um levantamento ou um sistema de guarda-parques”. “Ninguém sabe exatamente o que pode e o que não pode”, diz ele. Atrasado no esquema de conservação de parques nacionais, o Brasil faz feio se comparado a outros países da América do Sul. Enquanto nossos vizinhos têm mostrado mais zelo pelas áreas de proteção, o país segue sem ter uma carreira aprovada de guarda-parques, o que exige novas leis e vontade política.

A irresponsabilidade gera tragédias, muitas delas difíceis de reverter. Em 2008, cerca de 55 mil hectares, ou mais de um terço do parque da Diamantina, foram queimados, segundo dados oficiais. “É uma falha que perdura há 27 anos e, de modo geral, a população ainda não entende para que o parque existe”, diz Bruno Lintonen, chefe do Parque Nacional da Chapada Diamantina. Mas não é função do governo explicar isso e dar assistência a eles? “Deveríamos atingir nichos mais distantes. Mas temos limitações orçamentárias. Vivemos de migalhas”, diz Bruno, que chegou ao parque em 2008, justamente na função de chefe da brigada do ICMBio, em pleno ano da maior devastação que se tem registro na região. De lá para cá, não mudou muita coisa. Acumulando a função de chefe do parque e da brigada “oficial”, Bruno passou a Páscoa coordenando o combate a um grande incêndio no morro do Pai Inácio. Quando teve tempo para falar com nossa reportagem, as chamas ainda não tinham sido apagadas.

Hoje o parque conta com dois aviões do tipo Air Tractor, que servem tanto para jogar água do alto como para vistorias, além de um caminhão e três carros – com outros dois “saindo da oficina”. “Temos ainda ajudas esporádicas de aviões da base militar, mas eles chegam de favor e a qualquer momento podem ir embora. Um helicóptero seria muito mais útil.”

A gestão do parque trabalha com 42 brigadistas, contratados por um período de seis meses. A grande maioria vem de municípios distantes. A demanda, no entanto, é bem maior. E o sistema permite que, durante três meses ao menos, não haja ninguém contratado e, em outros três, o contingente seja bastante reduzido.

Nessas horas, os únicos prontos para combater o fogo são os voluntários, que fazem o que podem para se estruturar. No Capão, doações e parcerias com o comércio local garantem o mínimo para a brigada. Em Lençóis, a união e a experiência do grupo fazem milagres. Os brigadistas sentem falta não só de equipamentos melhores, como de meios de locomoção. “O fogo exige uma resposta rápida. Se demorarmos uma hora a mais para agir, precisamos do dobro de voluntários”, diz Jubileu. Para ambas as brigadas, o parque oferece roupas de combate. “Mas a roupa esquenta tanto que queima a pele, e o coturno é duro demais para andar na selva”, diz Adelson.


DESOLAÇÃO: Voluntário caminha na área queimada na serra da Capitinga
(FOTO: Calil Neto)

A IMPUNIDADE CONTRA QUEM põe fogo parece longe de acabar. Só neste ano começou a ser estruturada uma Polícia Ambiental em Palmeiras, cidade central da região. “Nós temos dificuldade em identificar as pessoas que causam os incendios. Há denúncias, mas não temos know-how para isso”, diz Bruno. “O cara fica um fim de semana na cadeia e é solto. A lei brasileira dá, no máximo, de um a três anos de reclusão, mas a gente sabe que não é assim na prática”, relembra Thyago, que já chegou a combater voluntariamente 40 incêndios em um ano.

Os criminosos são sempre os mesmos, mas não é papel de brigadista, nativo ou guia comprar essa briga direta. Feijão prefere quebrar antigos costumes e começar um novo caminho: “Levo meu filho para a natureza e mostro para ele como é importante conservá-la. A gente que está aqui desde pequeno repara que já falta água em lugar que antes era cheio. Meu trabalho na brigada é apagar o fogo e dormir tranquilo. E minha recompensa é tomar um banho de cachoeira”. Conscientes da importância de seu trabalho, os brigadistas seguem lutando – e sonhando com o dia em que não vão mais precisar existir.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de maio de 2012)







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