Juntando os pedaços

Cinco dias antes das eliminatórias para as Olimpíadas de Inverno de 2010, o snowboarder norte-americano Kevin Pearce bateu a cabeça na quina de um halfpipe, sofrendo sérios danos cerebrais que mudariam para sempre sua vida. Durante a reabilitação, ele teve que reaprender a caminhar e até mesmo a falar. Voltar às competições, nem pensar – mas isso não foi o suficiente para tirar sua empolgação com a vida

Por Jonah Lehrer


MANIA PÓS-TRAUMA: Depois de sofrer o acidente
que quase o matou, Kevin passou a adorar pesto de manjericão
(Foto: Andrew Heltherington)

KEVIN PEARCE OLHA UMA FOTO do seu corpo estendido no fundo de um halfpipe de snowboard. Ele mantém o olhar fixo na cena, como se ver a si mesmo caído pudesse ajudá-lo a se lembrar do que aconteceu naquele dia. Como se essa imagem granulada feita por um iPhone fosse capaz de despertar uma memória perdida, um sinal do que ele estaria pensando momentos antes de arrebentar o lado direito do crânio.

Mas Kevin não se lembra de nada. Ele então deixa a foto de lado e encosta-se no sofá. É véspera de Ação de Graças, e o lar da família Pearce em Vermont, nos EUA, está cheio de visitas. O fogo crepita na lareira, e uma neve suave cai do lado de fora. Presto atenção quando os olhos de Kevin, agora com 23 anos, repassam a sala de estar, observando cada um dos familiares ali presentes. Ele acena para o pai, Simon Pearce, um famoso ceramista e soprador de vidro, que ri de uma piada contada pelos dois irmãos mais velhos – Andrew, 29, que vive perto dali e trabalha no mesmo ramo que o pai, e Adam, 26, um ex-instrutor de snowboard de Park City, Utah. Seu outro irmão, David, de 25 anos, tem Síndrome de Down e vive nas vizinhanças. É uma cena enternecedora após um ano angustiante. Kevin está vivo. “É por isso que sou tão grata”, diz a mãe, Pia Pearce. “Meu filho ainda está aqui conosco.”

Kevin está ficando com fome e pergunta a Pia, pela terceira vez em 15 minutos, o que está sendo preparado para o jantar. Costela de cordeiro, ela responde pacientemente. Kevin assente e mexe a cabeça – a resposta lhe faz lembrar que já havia feito essa pergunta pouco tempo atrás. Além dos óculos Oakley fundo-de-garrafa que usa – as grossas lentes contêm um prisma que evita que ele veja imagens duplicadas –, sua falta de memória de curto prazo é uma das poucas seqüelas do acidente quase fatal que sofreu fazendo snowboard em 31 de dezembro de 2009 em Park City. Ele volta a olhar a foto, um medonho retrato de sua lesão. “Para mim, parece outra pessoa que não eu”, diz. “Aquele dia foi o mais importante da minha vida. Quero dizer, mudou tudo. Mas isso agora é passado.”

VOLTEMOS UM POUCO NO TEMPO. Dezembro de 2009. Kevin estava treinando como louco, se preparando para as eliminatórias olímpicas que seriam dali a menos de uma semana. Seu calendário nos meses anteriores havia se resumido a treinos, loops, 1080s e McTwists, como são conhecidas algumas manobras desse esporte. Um dia típico em sua vida começava com uma caminhada até a montanha Mammoth, na Califórnia, onde ele estava morando para treinar, seguida de uma sessão de quatro a cinco horas de manobras no halfpipe. Depois ele ia para a academia fazer musculação e pedalar na bicicleta ergométrica até a hora do jantar. Seus únicos dias de descanso eram aqueles em que ficava preso em aeroportos, voando pelo país em busca de neve fresca (Kevin podia recitar de cor os boletins de previsão de neve como se fosse um meteorologista do Weather Channel). Naquela época, sua porcentagem de gordura corporal chegava a 3%.

“Eu me sentia como se não pudesse tirar um dia de folga para descansar”, relembra Kevin. “Eu estava totalmente focado em conseguir ir para as Olimpíadas, em vencer as eliminatórias. Essa era a única coisa em que eu pensava.” Sua família já havia reservado os voos para Vancouver, onde os Jogos de Inverno aconteceriam em fevereiro de 2010. Naquele momento, a máquina de empolgação olímpica estava a toda velocidade: Kevin já havia dado entrevistas para a NBC, a ESPN e para o New York Times. A competição de snowboard estava prevista para ser uma batalha entre Kevin e Shaun White, o snowboarder mais famoso do mundo. Shaun havia levado o ouro nos Jogos de Turim, em 2006, e transformou-se na cara do esporte – seu rosto passou a estampar não apenas capas de revistas, mas até embalagens de cereal matinal.

A chegada do carismático Kevin representou o primeiro concorrente sério para Shaun. Ele mesmo confirmou a competição, dizendo aos repórteres que “Kevin Pearce é o único tentando alguma coisa parecida com o que faço”. A rivalidade começou a ficar séria nos X-Games de Aspen, no Colorado, em janeiro de 2009. Nas últimas voltas no halfpipe, Kevin e Shaun realizaram uma bateria semelhante de manobras. Apesar de muitos acharem que Kevin havia se saído melhor, Shaun obteve notas um pouco mais altas. Vários snowboarders, como Antti Autti, que ficou em terceiro lugar, discordaram do resultado. “Eu acho que Kevin foi o melhor e merecia vencer”, disse Antti a um repórter.

Mesmo com a derrota, Kevin mandou bem em suas declarações públicas. “Foi um evento sensacional para o snowboard”, disse às câmeras. Ter perdido foi mais um lembrete de que a única forma de vencer nas Olimpíadas seria elevar o nível de dificuldade das acrobacias, como Shaun fizera no começo da carreira. “O legal do snowboard é que ninguém tem a menor ideia de onde estão os limites”, diz Kevin. “É isso que faz o esporte ser tão empolgante. Os caras competindo atualmente estão tentando coisas que pareciam impossíveis alguns anos atrás.”


BONS TEMPOS: Kevin durante o Burton European Open, em 2009


DOIS MUNDOS: À esq., retratado em sua casa, já pós-acidente, mais ainda
com sua prancha; Kevin posa em foto promocional no auge da carreira

HAVIA UMA MANOBRA ESPECÍFICA que Kevin queria executar com perfeição, conhecida em inglês pelo nome de double cork 1080 (“rolha dupla 1080”, em português). Um frontside 1080 é bem direto: o atleta roda o corpo três vezes, girando no ar. Mas o double cork inverte os giros. Quando o snowboarder sai da borda do halfpipe, voando até seis metros no ar, ele tem que jogar a cabeça em direção ao chão fazendo uma cambalhota diagonal, daí dá outra cambalhota no ar e tem de encontra um jeito de “aterrissar” de volta na parede lisa de gelo e dura como pedra. Não existe “posição de pouso” em caso de emergência. E o que torna o double cork cabeludíssimo é o fato de ser realizado às cegas – a pessoa não consegue ver a área de pouso até o último segundo. Não há movimento mais difícil do que esse no snowboard. Talvez seja a manobra mais perigosa de todos os esportes competitivos de neve.

Kevin conhecia os riscos. Nos meses que antecederam as Olimpíadas, ele estava preocupado com a possibilidade de uma lesão séria. “Eu sabia que estava tentando um movimento maluco”, diz. “Eu caía muito, e às vezes ficava pensando que tinha sido por pouco. Quando você passa por um triz da morte várias vezes, começa a pensar sobre como seria se alguma coisa desse errado de verdade.” Ainda assim, Kevin continuou a treinar o double cork em seu halfpipe em Mammoth, aperfeiçoando a manobra na base da tentativa e erro.

Enquanto isso, Shaun White treinava o mesmo movimento no interior do Colorado. Naquele ano, a Red Bull, um dos patrocinadores de Shaun, construiu um halfpipe exclusivo para ele, a um custo estimado de US$ 500 mil. O que tornava essa pista tão especial era sua área de aterrissagem: uma caixa de metal de nove metros de comprimento cheia de cubos de espuma preta.
Mesmo assim, o próprio Shaun quase se ferrou algumas vezes. Num momento especialmente emocionante, ele tentou um double McTwist 1260 a menos de uma hora da final da categoria superpipes no X-Games de Aspen, poucas semanas antes das Olimpíadas de Inverno de Vancouver. Ele se perdeu na última pirueta e caiu de queixo no gelo. O capacete voou longe. “É claro que há intimidação e medo quando se tenta uma manobra nova”, escreveu num e-mail. “Mas aprendi com os anos que a gente tem que conhecer a fundo o próprio nível de autoconfiança e deixar que ele domine o medo.”

Kevin não teve tanta sorte. Em junho de 2009, ele fraturou o tornozelo tentando um double cork em Mammoth. A lesão o deixou de molho durante todo o verão do hemisfério norte. Kevin me mostrou um vídeo do acidente: ele voa, completa a sequência de piruetas às cegas e bate com a prancha na borda. A força do impacto o faz cair de cara no gelo. Com o tornozelo curado, Kevin imediatamente retornou ao double cork. “Era como se eu não tivesse escolha. Eu sabia que, se quisesse ganhar, teria que realizar a manobra.”

Essa valentia sempre foi destaque na carreira de Kevin. Sua primeira passagem pelo hospital aconteceu quando tinha 10 anos, após uma competição de boardercross (prova de snowboard em que os atletas largam juntos do alto de uma pista bem íngreme, com muitos saltos e curvas). Seu irmão Adam, que estava três anos à frente de Kevin na escola, liderava a corrida antes do último salto. “Eu sabia que Kevin estava dando tudo para me pegar”, diz Adam. Em vez de diminuir a velocidade para saltar, ele foi direto, passou da área de aterrissagem uns três metros e deu de cara na cerca.” Kevin venceu, mas saiu de ambulância, com uma entorse no punho.

Houve ainda um episódio histórico envolvendo Kevin na competição Nokia Air and Style de 2007, em Munique. Cerca de 28 mil pessoas lotavam o estádio e Kevin estava em segundo lugar, entrando na rodada final. “Eu tinha acabado de dar um backside 1080, mas sabia que não seria suficiente para ganhar”, relembra. “Então decidi mandar um cab 1260, o que significava que eu teria de dar mais uma pirueta. Nunca havia tentado aquilo. Acho que tive sorte.” A galera foi ao delírio quando ele finalizou a manobra.


ANTES E DEPOIS: O snowboarder em dois momentos: foto durante o
Burton US Open de 2006, em Vermont e à dir. após o acidente

A MENOS DE UMA SEMANA DAS ELIMINATÓRIAS para as Olimpíadas, Kevin voou para Park City para treinar o double cork. Na tarde de 31 de dezembro de 2009, ele caminhou até o halfpipe para uma sessão de treinos com Luke Mitrani, colega do coletivo FRENDS, um grupo de sete “manos prós” que nasceu como uma forma de diminuir a solidão durante o circuito de provas profissionais e que desde então se tornou uma marca, com direito a uma linha completa de headphones ecológicos (FRENDS se escreve assim mesmo, sem o “i”, porque o grupo defende que não existe mesmo essa letra na palavra inglesa “friends”). Kevin e Luke jogaram joquempô para determinar quem iria primeiro. Kevin venceu.

Após alguns minutos de aquecimento com grabs e 720s, Kevin começou a se preparar para o double cork. Os outros snowboarders se reuniram ali para vê-lo, enquanto Kevin pegava velocidade. Logo que ele voou no ar, começou o double flip, puxando a prancha por cima da cabeça. Mas alguma coisa estava errada: Kevin parecia girar muito forte, muito rápido. Ele continuou girando assim com a trágica inércia da manobra. Kevin bateu no gelo com a testa, logo acima do olho direito. O som foi medonho, dizem. Alguns espectadores falaram que aquela foi a queda mais violenta que já viram. Kevin escorregou, imóvel, até o fundo do pipe. Ele não abriria os olhos nos dez dias que se seguiram.

Pia Pearce, que havia saído para jantar, recebeu um telefonema de Simon, que estava em casa, em Vermont. A primeira impressão era de que apenas mais um acidente ocorrera, outro tombo para uma mãe acostumada às quedas dos filhos (nos últimos anos, Kevin havia sofrido pelo menos quatro concussões; Adam tinha fissuras nas costas e um baço rompido). “Eles nos disseram que Kevin havia batido a cabeça, mas que estava de capacete”, disse Pia. “Não tínhamos ideia de quão sério era tudo aquilo.” Alguns minutos depois, um dos amigos de Kevin que vira a cena ligou novamente. “Ele nos disse que o acidente tinha sido muito grave e que tínhamos que ir para lá imediatamente”, conta ela. “Foi então que comecei a me preocupar de verdade. Ninguém nunca havia nos chamado antes.”

Imediatamente a família arrumou um voo fretado para Utah, correndo para o aeroporto na noite de ano novo. No momento em que estavam entrando no carro, Pia recebeu um chamado dos médicos do hospital da Universidade de Utah. “Eles não ligaram para me dar um boletim das condições de Kevin”, conta. “Telefonaram para saber se poderiam colocar um dreno no cérebro do meu filho. Eu não sabia o que dizer.”


BATALHA: Nos X-Games de 2009, Shaun White levou a melhor, enquanto
Kevin ficou em segundo, seguido por Antti Autti

Quando a família chegou ao hospital, foi recebida com mais notícias ruins. Kevin havia sofrido um traumatismo cranioencefálico (TCE) severo; a área esquerda estava fraturada e havia hemorragia profunda no cérebro. Os médicos não tinham certeza se Kevin sobreviveria, nem se acordaria. E, mesmo se acordasse, eles alertaram a família de que deveria baixar as expectativas: Kevin poderia nunca mais andar ou falar. Esse tipo de sequela é comum em TCE, já que grande parte do dano não é causado na primeira batida (o crânio é o melhor capacete), mas nas horas e dias seguintes, quando os tecidos cerebrais incham com fluidos, privando os neurônios de nutrientes.

A família foi levada à UTI onde Kevin estava sedado. Adam lembra da cena: “A primeira vez que entrei na sala, olhei para ele e achei que estava morto”, diz. “Havia tubos por toda parte, aparelhos apitando, e a cabeça estava toda enfaixada. Eu não conseguia acreditar que aquele era meu irmão. Não agüentei e chorei durante horas.” Enquanto isso, a comunidade do snowboard entrava em choque. “Quando descobri como era sério, fiquei arrasado”, lembra Shaun White. “Eu não sabia como me sentir com uma coisa desse tipo acontecendo tão perto de mim. É o tipo de notícia que não se quer ouvir, nem acreditar.” O coletivo FRENDS distribuiu adesivos de “I ride for Kevin” (“Eu ando de snowboard por Kevin”) durante o Grand Prix de Snowboard no dia 23 de janeiro de 2010 em Park City. Enquanto Kevin permanecia numa UTI a 50 quilômetros dali, os adesivos eram colados em praticamente todas as pranchas. Uma página no Facebook em homenagem a Kevin atraiu mais de 50 mil fãs. Poucas semanas depois, um membro do FRENDS, Scotty Lago, dedicou sua medalha de bronze no halfpipe a Kevin.

“Foi um movimento verdadeiramente intenso para o esporte”, diz Keir Dillon, outro membro do FRENDS. “Sabíamos que as manobras eram meio arriscadas, mas até aquele momento eram só ossos quebrados, esse tipo de coisa. Mas ouvir que um de seus melhores amigos quase morreu? Isso muda tudo.”

APÓS 48 HORAS, A CONDIÇÃO DE KEVIN se estabilizou. Apesar de ele ainda respirar com a ajuda de aparelhos, o inchaço em seu cérebro foi retrocedendo. Ele passou a piscar e a se mover em alguns espasmos. Após seis dias em coma profundo, Kevin começou a despertar. Foi um processo gradual, e não repentino como geralmente se mostra nos filmes. “No começo, nem parece real”, diz Pia. “É difícil de descrever, mas aos poucos meu filho foi ficando mais e mais presente naquele quarto. Ele começou a responder a pequenos estímulos, tipo mexer os dedos dos pés quando pedíamos.” Simon descreve a primeira vez que o filho apertou sua mão depois do acidente como “absolutamente incrível”. “Foi um momento do qual nunca esquecerei. Eu senti como se ele estivesse tentando dizer que estava voltando.” Porém ainda não estava claro se Kevin ainda era Kevin.

Esta é, frequentemente, a parte mais difícil de se lidar com TCE severo: o sobrevivente pode não voltar como a mesma pessoa de antes.

O alívio veio na forma de um dedo do meio. Era a terceira semana de janeiro, e a família inteira ainda permanecia acampada no hospital, passando cada minuto de vigília no minúsculo quarto de UTI. Ninguém se lembra em detalhes o que Andrew, o mais velho dos irmãos Pearce, disse. “Eu provavelmente estava propondo algum desafio idiota”, diz Andrew. Mas todos se lembram o que Kevin fez em resposta: mostrou o dedo do meio para o irmão. Para a família, não havia gesto mais animador. “Comecei a rir sem parar”, diz Pia. “Fiquei tão aliviada, porque pelo menos eu sabia que Kevin ainda tinha o mesmo senso de humor. Sabia que ele ainda estava ali.”

No dia seguinte, Kevin começou a mover os lábios, acompanhando “The Believer”, música de Neil Young. “Foi bem estranho”, diz Adam. “A gente tocava essa música e ele acompanhava a letra inteira com os lábios e os olhos fechados. Era como se ele estivesse cantando junto.” A música tem uma melodia animada, com um refrão muito reconfortante: “Eu estou mudando, mantendo minha fé em você. Oh yeah, eu acredito, baby. Eu acredito em você”.

A extensão devastadora da lesão estava ficando clara, mas Kevin não tinha consciência das suas novas limitações. Ele estava sofrendo frequentes convulsões e não havia se dado conta de que não conseguia andar, de que sua memória de curto prazo havia desaparecido totalmente ou de que o lado esquerdo do seu corpo estava extremamente fraco. Como resultado, os médicos se viram forçados a prendê-lo na cama. Para a família, aquelas semanas foram a maior provação, já que a euforia pela sobrevivência de Kevin deu lugar à brutal realidade da lesão. Ele teria que lidar com as sequelas para o resto da vida.

Após quase um mês em Utah, Kevin foi levado de avião ao hospital Craig, em Englewood, no Colorado. O centro de reabilitação mundialmente famoso é dedicado ao tratamento de lesões de coluna e cérebro. A primeira memória de Kevin após o acidente é dessa viagem de avião.


FORÇA: Após a queda de Kevin, seus amigos snowboarders
criaram uma companhia para mostrar seu apoio a ele

A REABILITAÇÃO NÃO COMEÇOU BEM. As Olimpíadas apareciam em todos os canais de TV e Kevin não estava lá. Ele lutou para se adaptar a sua cansativa nova rotina, em que era forçado a encarar constantemente suas fragilidades, reaprendendo a andar, comer e se lembrar das coisas. Frequentemente Kevin ficava confuso, e quando não estava confuso, mostrava-se deprimido.

O boletim médico também era desafiador. De acordo com Alan Weintraub, diretor médico do Programa de Dano Cerebral do hospital, a lesão de Kevin não estava limitada a uma área específica do córtex. O impacto da queda havia desencadeado sangramentos na matéria branca, nas áreas mais profundas do cérebro. Esses são os tecidos que conectam nossos pensamentos, e têm como característica principal a presença de mielina, material gorduroso que isola as células nervosas, mais ou menos como a borracha isola os cabos de energia.

Tal isolamento acelera a transmissão de sinais elétricos, permitindo que o cérebro processe informações e execute movimentos complexos com eficiência (se neurônios normais se comportam como uma sinuosa estrada de serra, essas células são uma autopista de última geração). O interessante é que parece que a mielinização aumenta com a prática, sugerindo que o isolamento e o uso repetitivo dos nossos neurônios têm um papel importante no desenvolvimento de técnicas (é o que conhecemos como memória muscular). Enquanto Kevin praticava seus 1080s, ensaiando o mesmo movimento repetidas vezes, estava expandindo a velocidade com que seu cérebro processava as acrobacias. Em vez de se preocupar com os detalhes – a coreografia complexa do músculo –, Kevin conseguia simplesmente realizar o movimento como queria.

Mas o talento atlético de Kevin havia desaparecido, abandonando-o com um corpo que não sabia mais como se mover e uma cabeça que não conseguia mais pensar. “Já teria sido difícil o suficiente se Kevin tivesse apenas perdido suas habilidades de praticar snowboard em nível profissional”, diz Alan Weintraub. “Mas ele também perdeu capacidades cognitivas muito básicas, como mover os membros do corpo, manter a atenção e até coordenar o movimento dos olhos.”

O objetivo da reabilitação é reconstruir essas capacidades. Essencialmente se trata de um processo de estimular as células-tronco do cérebro a regenerar as bainhas de mielina. Em uma determinada fase, Kevin mergulhou na reabilitação com o mesmo foco que tinha para o esporte. Ele frequentemente passava dez horas por dia incentivando suas pernas a caminharem e seus olhos a enxergarem. Ele ficava até depois de a sala do hospital fechar e insistia em repetir os exercícios de memória de curto prazo até conseguir fazer tudo certo. Seus pais e irmãos se mudaram para Denver, passando semanas em quartos de hotel. Quando Kevin se cansava, Adam fazia da reabilitação uma competição, forçando-o a se dedicar ainda mais. “Quando meu irmão treina comigo, eu me esforço ao máximo”, diz Kevin. “Sabe por quê? Eu preciso vencê-lo”.

ESSA COMPETIÇÃO ENTRE IRMÃOS tem uma longa história: os Pearce passaram a vida inteira tentando vencer uns aos outros. Eles começaram competindo em snowboard antes mesmo que isso se tornasse um esporte profissional. Em um dos primeiros filmes de snowboard, One Track Mind, produzido por seu tio Michael McDonnell, Adam e Andrew aparecem competindo em Vermont. Suas pranchas de madeira haviam sido construídas sob medida por um amigo da família chamado Jake Burton, que depois fundaria a marca Burton Snowboards. Alguns anos depois, Jake deu a Kevin a primeira prancha infantil produzida pela empresa. Ele tinha apenas 6 anos.

Kevin ficou obcecado em descer todas as montanhas de Vermont. “Ele só queria saber disso”, diz Pia. “Ele acordava e já começava a estragar as paredes do corredor de casa enquanto vestia seus equipamentos. Não aguentava esperar chegar lá fora.” Ao mesmo tempo em que Kevin e os irmãos se apaixonavam pelo esporte, iam cada vez pior na escola. A família inteira sofre de dislexia. Simon lutou para conseguir ler a vida inteira, e os filhos herdaram o problema – Andrew, Adam e Kevin foram todos diagnosticados com dislexia severa quando ainda eram crianças. Pia acredita que os desafios da dislexia levaram os garotos à natureza: o snowboard era uma fuga do estresse da escola. Para encorajá-los, Simon e Pia reformaram um velho celeiro na propriedade da família em Vermont e preencheram o espaço como se fosse um loft, com mesas de pingue-pongue e uma rampa de skate.

Kevin se emociona quando fala do apoio dos pais. “Você tem que contar às pessoas que eles são os grandes responsáveis por tudo o que eu fiz de legal na vida”, me pede. “Meus pais não me cobravam por causa dos boletins, escola ou qualquer outra coisa. Eles simplesmente queriam que fizéssemos o que gostávamos. Teria sido muito fácil simplesmente afastar o snowboard de nós, dizer que não podíamos passar tanto tempo praticando, mas eles fizeram o contrário. Eles são o máximo.”

Logo que Kevin atingiu idade suficiente, juntou-se à Adam na Stratton Mountain School, uma academia de esqui e snowboard. Os dois irmãos rapidamente desenvolveram uma rivalidade intensa, pressionando um ao outro a tentar movimentos que só haviam visto em revistas.

Logo ficou claro que Kevin tinha um talento especial, e que era capaz de competir com os melhores atletas do mundo. Ele decidiu não ir à faculdade e entrar no circuito profissional, assinando patrocínios com empresas como a Nike, Burton, Oakley, entre outras.
O médico Alan Weintraub acha que a presença constante dos Pearces teve um papel crucial na recuperação de Kevin. “Quando falamos a respeito do impacto a longo prazo do TCE, não é só em relação à lesão”, diz o médico. “Várias pessoas podem ter a mesma lesão, mas a superam de formas distintas. Isso porque a rede de parentes e amigos que o paciente tem para ajudá-lo na reabilitação, para apoiá-lo na hora de lidar com todas as mudanças na vida, é um dos fatores mais importantes da recuperação.”

APÓS TRÊS MESES NO HOSPITAL, Kevin havia feito um progresso importante, superando as expectativas iniciais dos médicos. Num dia estava caminhando, no dia seguinte conseguia correr. As convulsões sumiram e seu lado esquerdo ganhou força. No dia 1 de maio de 2010, ele voltou à sua casa em Vermont. Quando o conheci em novembro daquele ano na casa dos Pearce, ele ignorou qualquer conversa a respeito de melhoras. Apesar de já estar com o jeitão de antes – os longos cabelos castanhos haviam crescido novamente –, Kevin insistia que sua aparência normal era uma ilusão. “Eu ainda estou atrapalhado”, diz. “As pessoas ficam me dizendo que estou melhorando, mas não vejo isso. Eu só penso no quanto ainda falta para me curar de vez.”

Kevin me mostrou um vídeo em seu iPhone – ele andando de skate no dia anterior. “Não conta para a minha mãe”, sussurrou, e apontou todos os problemas com as manobras que tentou. Ele não estava incomodado apenas com sua falta de controle corporal. Rapidamente desfiou uma lista de outras queixas, como a tontura causada pelas medicações anti-convulsão, o fato de não conseguir vencer Adam no pingue-pongue e até mesmo a dificuldade em entender os jogos de basquete da NBA. “Eu adorava assisti-los, mas agora vejo tudo meio desfocado”, diz.

Mesmo revoltado com seus sintomas remanescentes, Kevin parece maravilhado com a forma com que o acidente o fez mudar como pessoa. “Eu me tornei um cara muito mais legal”, diz. “Agora escuto mais as pessoas.” Ele também desenvolveu novos gostos por comida: desde o acidente, ficou obcecado por pesto de manjericão e insistiu que eu ajudasse ele e Pia a fazerem uma grande quantidade do molho. “Eu não gostava muito de pesto antes, mas agora coloco em tudo”, diz. “É incrivelmente saboroso.” Quando Kevin bota os pés sobre a mesa de centro, também anuncia isso como um novo hábito. “Eu nunca colocava os pés para cima, mas agora sempre faço isso.” Até mesmo o gosto musical mudou: antes Kevin curtia hip-hop, e agora seu cantor favorito é Neil Young. Perguntei qual era sua música predileta, e ele respondeu: “‘The Believer’, com certeza”. E começou a cantá-la.

MEU ÚLTIMO ENCONTRO COM KEVIN é na praia de Carlsbad, na Califórnia, no final de dezembro. Trata-se de uma cidadezinha pacata uns 56 quilômetros ao norte de San Diego. Kevin está aqui para ver o pequeno chalé que comprou na semana anterior ao acidente – para o qual, claro, acabou não se mudando. Infelizmente ele não guarda memórias do lugar: não sabe como é e nem o que estava pensando quando o comprou. Ele acha que escolheu Carlsbad por causa do clima. “Talvez eu quisesse estar em algum lugar quente”, diz. “Eu adorava surfar entre as temporadas de esqui.”


FAMÍLIA É TUDO: Kevin no hospital Craig, ao lado do irmão Adam e dos pais, Pia e Simon

A reforma da casa está sendo supervisionada pelo pai. “Cara, está uma bagunça aqui”, diz Kevin. Então nos encontramos em seu hotel. A última vez que nos vimos havia sido dois meses antes, em Vermont, e fico surpreso com o progresso dele. Apesar de Kevin ainda ter dificuldades para enxergar, sua vista está melhorando tão rapidamente que ele tem que mudar as lentes dos seus óculos Oakley uma vez por mês (Kevin ainda trabalha com todos os seus patrocinadores – suas roupas estão cobertas de logos). Ele voltou a assistir aos jogos de basquete dos Celtics. Sua memória de curto prazo também melhorou dramaticamente – ele não repete mais as mesmas histórias e as mesmas perguntas. Quando Adam sai para buscar sanduíches, Kevin não se pergunta mais onde terá ido o irmão ou quando o sanduíche de frango com pesto de manjericão irá chegar.

O único lado ruim disso é que, à medida que os efeitos do trauma diminuem, Kevin fica cada vez mais consciente de suas sequelas, aquelas que a reabilitação não irá resolver. Estudos sobre TCEs severos demonstram que nem toda a massa branca consegue se regenerar, mesmo após anos de terapia. Apesar de o cérebro ser um órgão capaz de se curar, a melhora é restrita. E assim Kevin se sente preso num limbo, cada vez mais ciente do que sua mente não consegue realizar. Agora ele se lembra quando se esquece de alguma coisa. Percebe que não consegue prestar atenção nas coisas, quando sua mente divaga no meio de uma conversa ou quando se perde no meio de um parágrafo. No hotel, observo-o enquanto lê a carta de um fã, um jovem snowboarder. As palavras vêm devagar, aos trancos; ele tem que repetir várias sentenças em voz alta para conseguir decifrar o significado. Quando termina, seu rosto mostra uma mistura de cansaço e satisfação.

No começo de dezembro de 2010, Kevin estava de volta ao hospital Craig para ter uma atualização dos médicos a respeito de seu progresso. Ele continua a reabilitação em Vermont, passando várias horas por dia tratando dos problemas de memória e atenção no hospital local. Apesar de a família estar orgulhosa dos relatórios médicos – “Se você me dissesse, quando Kevin estava em coma, que ele estaria assim dentro de um ano, eu não teria acreditado”, diz Pia –,vejo que algo incomoda Kevin. Depois de insistir um pouco, ele revela que os médicos lhe haviam dado novidades desanimadoras. Como as células cerebrais se recuperam muito lentamente, é essencial evitar a possibilidade de uma segunda lesão, para que a recuperação não se perca. “O médico me disse que eu não posso praticar snowboard. Meu cérebro ainda está muito frágil. Vou ter de esperar mais uns seis meses.” Durante um momento ele ficou absurdamente triste. “Snowboard é o que sempre fiz na vida. É o que eu sei fazer. É a única coisa na qual sou bom. Sinto uma falta louca disso. Quando fecho os olhos, ainda me lembro da sensação de descer uma pista de snowboard.”

Enquanto espera impacientemente pela liberação dos médicos, Kevin aproveita para experimentar viajar sozinho. Em dezembro, ele foi ao primeiro campeonato de snowboard desde o acidente, e passou uns dias com amigos no Colorado. Apesar de a viagem ter sido um sucesso logístico – Kevin passou pelos aeroportos sem se perder –, houve momentos difíceis. “Todos os dias, eu saía da casa e, durante um segundo, achava que havia esquecido minha prancha. Daí eu pensava: ‘Ah… Esquece’. Aquele segundo era terrível.”

Em janeiro de 2011, Kevin foi assitir os X-Games em Aspen. Apesar de ter curtido o tempo que passou na cabine da ESPN, foi muito duro não fazer parte do show. Ele ainda se sente como um competidor forte, constantemente pensando em como faria para bater determinado adversário ou realizar uma manobra melhor. Durante a noite, ele ainda sonha com a aterrissagem dos double corks. Daí acorda de repente.

A BOA NOTÍCIA é que Kevin poderá voltar a praticar snowboard. Apesar de seus dias de halfpipe terem terminado – um outro TCE teria consequências terríveis –, seus médicos acreditam que ele logo conseguirá praticar na neve fofa. Kevin fica satisfeito com o fato, já que sempre preferiu dar rolês fora das pistas de competição. Antes do acidente, Kevin havia dito a seu irmão Adam que iria parar com as competições depois das Olimpíadas. “O esporte está muito louco atualmente. Não passa de garotos fazendo manobras sem noção. Não há suavidade ou graça.”

Apesar de se recusar a usar a lesão como desculpa para a aposentadoria – “A única grande lição do meu acidente é que os snowboarders devem usar capacete”, diz –, ele continua com uma sensação desconfortável em relação ao caminho que o esporte está tomando e com a competição constante entre os adolescentes. Nos X-Games de 2011, o norueguês Torstein Horgmo tornou-se o primeiro snowboarder a completar um triple cork na competição. Kevin acredita que o esporte deveria ir além dos graus de rotação ou piruetas cegas. Para ele, todo novo movimento deveria ser desenvolvido num halfpipe acolchoado, tamanho o perigo. “Quando eu voltar a fazer snowboard, quero ir a lugares em que nunca se desceu numa prancha, onde se tem que caminhar morro acima por horas. Parece brega, mas eu quero mostrar para as pessoas que o snowboard também pode ser bonito.”


NO TOPO: Um dos melhores snowboarders de todos os tempos, Kevin
aparece aqui durante competição na Suíça, em 2009

É claro que esse tipo de terreno nem sempre é seguro: Pia lembra a Kevin que as áreas sem pistas estão cheias de avalanches. Mas ele não se preocupa com isso. Quando pergunto se acha que sempre estará envolvido com o snowboard, sua primeira resposta é: “É claro!”. Mas depois parece que reconsidera o que acabou de dizer, à medida que a realidade da lesão surge em sua mente. “Na verdade, não sei muito bem. A vida é muito louca. Não penso no futuro muito distante.” Após uns instantes calado, ele completa: “Passei toda minha vida no esporte, trabalhando duro por ele, e agora está tudo acabado. Mas estou percebendo que há outras coisas que me deixam feliz. A vida vai além de realizar uma manobra.”

Alguns dias depois, Kevin me liga com grandes novidades. Dá para sentir sua empolgação pelo telefone. “Consegui minha carteira de motorista!”, grita para mim. “Passei no teste!” Nos últimos meses, Kevin estava com a ideia fixa de voltar a dirigir. Mas a última barreira para atingir sua independência enfim caiu quando Kevin se mudou para Carlsbad. “Foi um ano superintenso”, diz. “Mas é muito bom saber que, mesmo depois de ter acontecido tudo isso, voltei a ser livre.”

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de janeiro de 2012)







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