O aprendiz

ARQUIVOS GO OUTSIDE
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2009)

O guia de esqui e escalada Michael Silitch é o único norte-americano que trabalha para a Companhia de Guias de Chamonix, a sigilosa e exclusiva equipe que domina a cena na cidadezinha dos esportes de inverno extremos. É uma vida boa, mas, como qualquer estrangeiro, ele sabe que não importa o quanto se esforce, talvez ele nunca consiga ser completamente aceito


ASPIRANTE: Michael na parada do teleférico da Aiguille du Midi em Chamonix, na França

Por Tim Neville

A PORTA É PESADA E GÓTICA, com uma fechadura de ferro e rebites metálicos incrustados na madeira macia e amarronzada. É pequena, 1,5 metro, e encaixada numa fria moldura de pedra. Eu não posso atravessar essa porta – poucas pessoas podem –, mas alguém se esqueceu de fechá-la. Uma luz laranja escapa pelas frestas. Acho que vou só dar uma espiada.“Eu não faria isso”, diz Michael Silitch, irritado.

“Seria muito, muito ruim”. Michael lança um olhar que atravessaria uma parede de aço. Ele tem mandíbulas quadradas e angulosas, além de um nariz com linhas marcadas. Esta é a segunda vez que ele teve que intervir. Um pouco antes eu havia tirado uma foto de uma lista de nomes afixada perto daquela porta, e essa atitude me fez ser levado para fora, para uma conversa. Não tire fotos de coisas “delicadas”, disse Silitch. Fique quieto. Tire o chapéu. Acima de tudo, respeite aquela porta. Michael vinha trabalhando há anos para poder ultrapassá-la. Seu tom é claro: não estrague tudo.

É uma noite fria de abril em Chamonix, na França, e Michael e eu estamos na Maison de la Montagne, prédio de três andares com paredes grossas e um telhado de cobre. Do lado de fora, um sino de igreja badala enquanto os últimos raios do sol de inverno iluminam uma linha denteada de montanhas. Já faz anos que este norte-americano de 47 anos trabalha em Chamonix como guia de esqui e escalada, divertindo-se como poucos. Ele vive aqui o ano inteiro. Toda a família de Michael fala francês.

Ele conhece os costumes locais, envia presentes de casamento e vai a funerais. Para Michael, assim como para qualquer esquiador ou escalador, a alma do alpinismo paira sobre Chamonix, livre como o ar. Mas seu coração descansa atrás de uma gorda porta medieval pela qual apenas uma seleta elite de franceses pode passar. Por trás dela fica o santuário mais secreto da Compagnie des Guides de Chamonix (CGC), o primeiro e questionavelmente mais nobre serviço de guias do mundo. “É um grupo de extremo prestígio”, diz Kathy Cosley, guia norte-americana emigrada que dirige a Cosley & Houston Alpine Guides, empresa de escaladas em Chamonix. “Eles são uns durões, mas é um tipo diferente de durão aqui na França. Todo mundo olha para eles como os guias mais especializados”.

Caso você não saiba, a escalada recreativa e – anos depois – o esqui extremo começaram em Chamonix. A cidadezinha de aproximadamente dez mil habitantes fica num antigo vale glacial, uma hora ao sul de Genebra, na Suíça, espremida por uma das topografias mais espetaculares da Europa. Arestas de granito cercam ruas de paralelepípedo.

Geleiras parecem prestes a invadir lares. O pico mais impressionante de todos, o Mont Blanc, ponto mais alto da Europa Ocidental, ergue-se mais de 3.600 metros verticais por sobre a Place de l’Église com um relevo impressionante, que lembra o do Everest. Quando dois homens de Chamonix agarraram-se morro acima até seu cume de 4.807 metros, em 1786, um novo esporte havia nascido.

Daquele ponto em diante, as montanhas adquiriram o poder de criar heróis, e cavalheiros aventureiros invadiram Chamonix. Naquele tempo, a cidade era povoada principalmente por caçadores de camurça e coletores de cristais (aqui, os Alpes cintilam com lindos octaedros de fluorita rosa) que conheciam as montanhas melhor do que qualquer um. Em 1821, organizaram-se para formar a Companhia, um serviço cooperativo de guias que acabaram ajudando a criar leis consideradas sacrossantas atualmente, sendo que uma delas é que os guias – e não os clientes – são a autoridade superior na tomada de decisão.

Nos anos 1970, pioneiros do esqui extremo como o lendário Anselme Baud traçaram linhas tão audaciosas que uma nova graduação nasceu: abominablement difficile (abominavelmente difícil). É claro que em situações assim o castigo para eventuais erros é enorme, e nos últimos 187 anos, quase 90 guias da Compagnie morreram nas montanhas. “Este lugar é quase mítico”, diz Vincent Lameyre, guia da CGC. “Muitos gostariam de ser guias da Compagnie, mas poucos serão. É assim que as coisas são.”

O grupo é reconhecidamente fechado. Com raras exceções – um alemão em 1940 e um belga em 1970 –, ninguém que tenha nascido fora do vale podia sequer se inscrever. Em 1930, Roger Frison-Roche, que ajudou a organizar as primeiras Olimpíadas de Inverno em Chamonix, em 1924, tornou-se o primeiro “forasteiro” a poder entrar. Ele era de alguns vales adiante. Gaston Rébuffat, de Marselha, um dos maiores alpinistas do mundo, teve sua inscrição recusada uma vez antes de se tornar o segundo francês famoso admitido em 1946.

Isso ajuda a explicar por que Michael é tão minucioso. Como um “americano especialista nos Alpes”, como se lê em seu cartão de visitas, ele está no caminho de se tornar o primeiro ianque a quebrar o código. Pelos últimos sete anos, ele passou por dois dos quatro estágios para se tornar um guia da Compagnie. Atualmente ele é um renfort prioritaire – “reforço prioritário” –, o que o permite fazer alguns trabalhos para a Compagnie, e o primeiro norte-americano a conseguir esse status. Se quiser chegar até o fim, deve trabalhar duro e se misturar. “Alguns anos atrás um guia da CGC me puxou de lado e disse que se eu estava aqui para mudar as coisas e contar para todo mundo como elas são, que não iria funcionar”, diz Michael. “Mas eu não quero mudar nada. Quero me tornar parte. Isso é algo que nos torna orgulhosos da nossa profissão. Se ficar por aqui tempo suficiente, mostrar-lhes que sou sério e que estou aqui para ficar, acho que mais cedo ou mais tarde vão votar para eu ser aceito”.

Ou não. Não há um período probatório antes de atingir a estabilidade, e Michael talvez nunca consiga chegar lá, simplesmente por ser um forasteiro. E tudo bem. Mesmo que Michael abra as portas da Compagnie e só encontre mais portas fechadas, ele ainda assim terá conseguido o que os guias de outras partes do mundo raramente conseguem – um gordo salário no fim do mês por escalar e esquiar num lugar como Chamonix. Ele pode ser considerado um vagabundo que trabalha. Não é surpresa, então, que ele nem pisque quando alguém fecha a porta na sua cara.

APESAR DE TODA A INTRIGA, o que se passa por trás daquela porta não é superempolgante. Mas é baseado em tradições, e se você quer se dar bem com os franceses, precisa saber como funcionam as coisas aqui. Vamos dizer que você e alguns amigos venham a Chamonix para umas férias de esqui e que você gostaria de fazer uma travessia. Se você for Henri de Lestapis, escritor parisiense que está na cidade com oito companheiros, vai entrar na Maison e preencher uma ficha verde listando sua experiência e o que deseja esquiar. “Alguém vai te ligar com os detalhes”, te dirá a recepcionista.

Lá pelas 5 da tarde os guias chegam na Maison. Michael entra, tira o chapéu e cumprimenta os outros guias com um “Bonjour, ça va?”. Pergunta das condições de avalanche e da família dos colegas. Atualmente, há por volta de 150 guias na Compagnie, mas nem todos aparecem. Aqueles que vêm, passam a porta gótica para começar o tour de rôle, sistema que permite aos guias escolherem a ficha verde do dia. Michael tem que esperar do lado de fora até que todos os guias da Compagnie tenham feito sua escolha. Tarefas atraentes como heli-skiing desaparecem imediatamente.

Quando chega a vez de Michael, só restam as migalhas. Como sempre, ele pega o que é considerado lixão: ele e outro esperançoso aspirante da CGC, um francês chamado Patrick Pessi, irão pastorear nove parisienses iniciantes esquiando pelo Vallée Blanche.

Só em Chamonix isso chega a ser uma decepção. Apesar de haver uma dúzia de áreas de esqui no vale, as melhores pistas estão nas infinitas áreas mais remotas de Chamonix, mas poucas se comparam com a grandiosidade épica do Vallée Blanche, ou vale branco. Quando o clima está bom, os esquiadores podem pegar um teleférico até o cume de 3.842 metros de altura da Aiguille du Midi e chafurdar na neve fofa por até 19 quilômetros e quase 2.700 metros verticais, esquiando por um vale coroado pelo Mont Blanc e rodeado pela Aiguille Verte, os Grandes Jorasses, e várias outras montanhas famosas. Há uma cabana de pedra a meio caminho onde são vendidos salsichões e cerveja. A via é tão popular que podem até se formar campos de moguls [morrinhos de neve formados pelo ziguezague dos esquiadores], mas é melhor ir com um guia. “As pessoas acham que podem esquiar por ali como se estivessem numa estação de esqui”, diz Michael. “Meu sogro fez isso. Ele foi ziguezagueando por tudo e passou sobre uma fenda. Ela se abriu sob seus esquis e era enorme, mas por sorte ele não caiu.”

Encontramos com os parisienses no dia seguinte na estação do teleférico ao sopé da Aiguille du Midi. Quase dois metros de neve caíram nas últimas duas semanas, e o lugar parece um zoológico. Patrick e Michael levam mochilas cheias de cadeirinhas, cordas e rádios de avalanche. Um dos parisienses carrega cigarros e um celular no bolso de tela.

“Para a maioria desses caras, é a primeira vez que esquiam em alta montanha e longe de uma estação”, conta Patrick, enquanto o bondinho sobe, constante. Agora com 39 anos, Patrick, que é do sul da França, veio a Chamonix no final dos anos 1990 para estudar na Escola Nacional de Esqui e Alpinismo, situada no centro da cidade. Todos os guias de montanha da França estudaram ali, inclusive Michael, que fez um curso de curta duração com Anselme Baud. Patrick passou três anos ali, estudando geologia, flores silvestres e as leis francesas de montanha, e passou numa prova abrangente chamada tronc commun. Logo veio o treinamento prático, em que os estudantes guiam clientes de verdade, que ganham descontos por servirem de cobaias. Em 1999, Patrick passou em seu exame final e tornou-se um guia com certificação internacional. E até agora ele, assim como Michael, é apenas um reforço.

No topo, nos encordamos uns aos outros e começamos a caminhar sobre uma aresta exposta. Os parisienses escorregam na neve íngreme, mas a corda lhes dá segurança. Caminhamos até um colo, onde podemos nos desencordar e colocar os esquis. “Você guia”, Michael diz para Patrick em francês. “Eu fecho a trilha”. O tempo está esquentando rapidamente e os parisienses sofrem na neve que mais parece purê de batatas, o que não parece lhes incomodar. “La neige!”, grita um, feliz ao ver a quantidade de neve. Michael não demonstra, mas eu vejo que alguma coisa o incomoda, observando que seus lábios rachados estão finos e contraídos. “Eu teria ido por uma descida mais fácil”, diz mais tarde. “Às vezes, os guias têm suas próprias ideias. Você tem que tomar decisões baseado no grupo, e este grupo está com problemas”.

Todos estão precisando de um descanso quando chegamos ao Requin Hut, construção de pedra empoleirada no local onde duas geleiras se quebram em uma terceira, o Mer de Glace. Lá dentro há um guia local de 40 e poucos anos, usando a distinta jaqueta verde da Compagnie, devorando uma croûte savoyarde, caçarola de batatas com muito queijo. Ele tem um cabelo perfeito de garoto de banda e uma autoconfiança que beira o excesso. Sentamo-nos à mesa com ele, o que pareceu incomodá-lo. “Eu me lembro quando você era o cara novo no Mont Blanc”, diz Michael em francês, em tom de brincadeira. “Eu não escalo mais lá”, dispara o guia de volta. “Mas escalava muito”, diz Michael, quase se desculpando. “Dezessete vezes naquele primeiro verão”. “Uau, é um monte!”, digo, tentando demonstrar um tom amigável. Sou ignorado. “Quantas vezes você teve que escalar o Mont Blanc antes de entrar na Companie?”, Michael pergunta, tentando salvar a situação. “Não tem nada a ver com isso”, manda o guia, com a fumaça saindo da comida em seu garfo. “Você tem que ser de Chamonix.”

TODO GUIA DA COMPANHIA COM QUEM CONVERSEI só tinha bons comentários a respeito de Michael. Ele é sympa, diz Eric Mathieu, querendo dizer “amigável”. Ele é um bon guide, diz Daniel Simond. Ele é um très bon professionnel, diz Lionel Pernollet.
Mesmo ninguém dizendo isso diretamente, é provável que alguns guias questionem a qualificação de Michael simplesmente por ser norte-americano. Enquanto países como França, Itália, Suíça e Canadá há muito tempo adotaram um currículo estrito para todos os aspirantes a guia serem autorizados a trabalhar, por muitos anos, nos Estados Unidos, você poderia tornar-se um guia simplesmente trabalhando para uma empresa que declarava que você era um guia.

Só em 1997 a Associação de Guias de Montanha Norte-americana, sediada em Boulder, no Colorado, criou escolas de guia aceitas pela Federação Internacional das Associações de Guias de Montanha, entidade sediada na Suíça e que regulamenta o credenciamento de guias no mundo.

Michael passou anos trabalhando e sendo aprovado em testes de escalada em gelo, escalada alpina e esqui de montanha, principalmente no nordeste dos Estados Unidos. Agora que ele tem certificação internacional, pode guiar independentemente em mais de vinte países, inclusive a França. Isso irrita outros guias franceses que não conseguem guiar independentes em, por exemplo, montanhas como o Denali, no Alasca, pois precisariam de uma autorização do Serviço de Parques Nacionais dos Estados Unidos. Essas autorizações são restritas a seis concessionárias autorizadas.

Michael nunca será francês, é claro, mas sua história o preparou para adaptar-se, tanto como guia como expatriado. Filho de mãe artista folclórica e pai engenheiro, começou a aprender francês no jardim da infância, numa escola particular em Annapolis, Maryland, onde cresceu. Quando tinha 5 anos, seus pais se divorciaram e ele ficou com a mãe, Natalie. Ela comprou uma Kombi branca e levou a ele e suas duas irmãs mais novas para viagens de camping na Flórida, no Oregon e no Canadá. “E lá estava eu, no sexto ano do colégio e tendo que ler mapas, acender o fogareiro e montar as barracas”, me conta Michael enquanto comemos bolinho de caranguejo no Munchie, restaurante sueco no centrinho de Chamonix. “Nunca havia pensado nisso, mas acho que foi minha primeira vez agindo como guia”.

E ele aprendia rápido, mas na escola ia mais ou menos. Sua mãe decidiu que o garoto precisava de uma influência masculina em sua vida, então, no nono ano, foi enviado a Purcellville, Virginia, para viver com o pai. Peter Silitch havia casado novamente com uma condessa austríaca, Elizabeth Colloredo-Mansfeld, e ela fez com que o enteado se aplicasse nos estudos recompensando-o com vinho se ele terminasse a lição de casa antes do jantar. Atualmente, Michael bebe tão pouco que até um digestivo o deixaria alto, mas os métodos da madrasta funcionaram. Ele só tirava 10, tirou a melhor nota do estado num exame estadual de francês e ganhou uma bolsa de estudos para um internato particular em New Hampshire, chamado Holderness School.

Holderness fica perto de um point de escalada, e Michael começou a escalar em rocha. Logo, ele e Kevin Dippy, colega de quarto, encordavam-se sempre que podiam. “Kevin e eu escapávamos para escalar ou pegávamos nossas bikes e íamos até antenas em que podíamos subir e rapelar”, diz Michael. “Planejávamos tirar um ano para ir à França para colher uvas e escalar, mas Kevin morreu”.

Michael já não é de falar muito. Aqui, ele diminui ainda mais seu tom de voz. Tipicamente, encaixa palavras em suas frases com a precisão de um escalador colocando proteções numa fenda. Falar sobre seu amigo parece engasgar tudo, fazendo-o parar a conversa. Ele só resume que Kevin e outro amigo estavam escalando perto de Telluride, no Colorado, quando uma ancoragem falhou. Os dois morreram. Depois da morte de Kevin, Michael embrenhou-se no vazio do oeste americano. Ele esquiou longas linhas no Parque Nacional North Cascades e escalou o monte Baker, a South Early Winters Spire, e o Monte Cristo Peak. Em 1980, ele estava numa canaleta nos Enchantments quando o monte Sta. Helena entrou em erupção e cobriu seu carro de cinzas.

Michael graduou-se no St. John’s College, em Santa Fé, Novo México, em 1986. Após vários anos de lá para cá – trabalhando para a Outward Bound no oeste e no marketing esportivo da Nestlé no leste –, em 1994 ele assinou com o American Alpine Institute (AAI), em Bellingham, Washington. Guiou médicos e advogados em vias no Canadá, América do Sul e no Alasca. E começou a pensar: poderia continuar a guiar esses caras (e ganhar US$ 120 por dia) ou tornar-se um médico ele mesmo e trabalhar no Denali. Alguns anos mais tarde, inscreveu-se num cursinho pré-médico na Universidade do Colorado em Boulder e tirou 3,9 (num total de 4) no seu TCC. Mas acabou nunca indo à faculdade de medicina. Um dia, em seu apartamento, lendo uma edição da revista da escola, ele parou num pequeno anúncio de Nina Cook, natural do Maine e graduanda da Holderness que havia se mudado para Boulder para dar aulas. “Dizia mais ou menos assim: ‘Sou nova na cidade’, e tinha seu telefone”, diz. Ele ligou e se ofereceu para fazer panquecas para seu café da manhã. “É claro que soou um pouco estranho”, diz Nina, “mas ele tinha xarope de maple de verdade”.

Os dois se deram muito bem, escalando, correndo e esquiando juntos. “Daí o Michael começou a falar sobre ir embora para a Antártica ou estudar medicina em Des Moines”, diz Nina. Um dia o telefone tocou com uma oferta de trabalho do AAI para passar um verão guiando na França. Michael virou para Nina e disse: “O que você acha de Chamonix?”.

Os Silitches nunca olharam para trás. Agora eles têm dois lindos meninos que falam francês e um lindo chalé de madeira com três andares, rodeado pelos lares dos guias da Companhia. Um deles, Lionel Pernollet, tornou-se tão amigo que Michael convidou-o para ser padrinho do seu primeiro filho. “Michael escolheu viver em Chamonix, para aprender nossa língua e criar seus filhos no vale”, diz Lionel, guia de terceira geração da Compagnie. “Sua simpatia e discrição tornaram muito natural que ele fosse bem vindo e estimado pela Compagnie”.

Foi Lionel quem ajudou com a iniciação de Michael há seis anos, apresentando-o ao diretor da CGC, Jean-Francois Collignon. “Eles me transformaram em reforço, o que foi ótimo”. Ele subiu um pequeno degrau, para reforço prioritário – o que quer dizer que ele tem prioridade de escolha dos restos – no final de 2007, depois que se aproximou da Compagnie para enfatizar uma vez mais seu interesse em juntar-se a eles. “A Compagnie des Guides de Chamonix representa uma irmandade que eu respeito”, ele escreveu em um francês impecável. “Terei orgulho em representá-la”.

Não há muito mais o que Michael poss fazer. Ele tem que esperar por um comitê de 16 parceiros para aprová-lo como stagière, ou aprendiz. Os estatutos da Compagnie dão aos nativos de Chamonix a preferência, depois aos franceses, à União Europeia e depois o resto. Mesmo se ele receber voto de aprendiz, ele ainda terá que trabalhar mais dois anos, e depois a Compagnie inteira terá que votar em quais aprendizes poderão ganhar a associação total. Não mais do que quatro conseguem essa proeza a cada ano. “Quando eu era mais jovem, trabalhar para a Compagnie teria sido como jogar na NBA. Agora é mais uma questão de honra”.


RACHANDO: Esquiador salta no Vallée Blanche, perto da Aiguile du Midi

PARA COROAR NOSSO DIA DE ESQUI pelo Vallée Blanche, Michael e eu planejamos passar a noite num chalé nos arredores da Aiguille du Midi, a mais ou menos 3.650 metros de altitude. Chamonix está entulhada dessas cabanas em locais impossíveis. Algumas delas têm três andares, com camas para centenas de pessoas. Quase todas oferecem sopa quente, pão fresco e vinho. Então corremos para a cidade, onde Nina nos encontra na minivan azul da família para nos levar até o bondinho. Entro no banco de trás com o mais novo deles, Anders, de 2 anos. “Nos Estados Unidos, guiar significa carregar uma mochila pesada, dormir numa barraca durante semanas e ficar ausente por muito tempo. Aqui, eu pego o bondinho, pulo a parte da caminhada de aproximação e escalo o dia inteiro em um terreno inacreditável, e ainda dá tempo para brincar com os meninos. Guiar não é algo que só se pode fazer aos 20 e tantos anos. Aqui dá para envelhecer fazendo isso”.

Ele tampouco vai à falência. Há uma piada que diz que a diferença entre um guia norte-americano e um pedaço de pizza de calabresa é que a pizza dá para alimentar uma família. Mas Michael vai bem, obrigado. Ele ganha mais ou menos US$ 100.000 por ano, combinando guiadas independentes e da Compagnie, e recebendo patrocínio da Petzl, da Backcountry Access e da The North Face. Nos Estados Unidos ele teria sorte se ganhasse US$ 30.000 anualmente.

Michael dá um abraço de tchau em Nina e Anders, e embarcamos no último bondinho para a Aiguille du Midi. Quando estávamos ali algumas horas antes com os parisienses, a última estação estava lotada de turistas e esquiadores do Vallée Blanche. Agora, a sena é hardcore: montanhistas com armaduras de duvet alinham-se nos corredores em sacos de bivaque e organizam seus equipamentos, prontos para passar a noite no edifício. Michael e eu nos encordamos e escalamos por uma via ferrata para chegar à Cosmique Ridge, aresta rochosa logo na saída da estação. O plano é chegar até uma rampa de neve onde poderemos colocar nossos esquis e peles de foca [tiras que se aderem à base do esqui, que permitem que o esquiador ande no plano e em subidas, indo só para a frente e não escorregando para trás] para subir até a cabana Cosmique, maravilha de metal e vidro num promontório a 3.657 metros de altitude.

Passar a noite na cabana custa mais ou menos US$ 60 por um banheiro, um beliche quentinho, jantar quente e café da manhã. Dá para sentar no deque, olhar os mortíferos seracs [blocos gigantes de gelo que se descolam das paredes das geleiras] se despedaçando das paredes do Mont Blanc, e depois esquiar por quilômetros até a Itália ou de volta à cidade pelo Vallée Blanche. “Cuidado comigo aqui”, grita Michael enquanto dou segurança para que ele desça uma seção extremamente exposta sobre uma geleira solitária. Nuvens aparecem sobre a aresta como espuma do mar; Michael desaparece na neblina.

À minha direita, uma porta se abre e um funcionário do teleférico começa a varrer a varanda. Não sei muito bem, mas ele parece entediado. Uma tempestade se forma enquanto chegamos à cabana, que está quase vazia, à exceção de três esquiadores de Marselha em férias. Na manhã seguinte, a tempestade se dispersa ao redor das 10 da manhã, então voltamos pelo Vallée Blanche. É a melhor experiência que tive no Vallée: neve fofa de afundar a bota inteira, uma luz rosada cobrindo as montanhas púrpuras, ninguém por perto. Até Michael, que esquiou ali muito mais vezes do que eu, acha incrível.

O último dia que passo com Michael deveria ser seu dia de descanso. É a vez dele de cuidar dos meninos, que estão empolgadíssimos. “Tenho um monte de trabalho acumulado”, ele diz ao telefone. O problema é que nevou de novo e agora as nuvens estão indo embora, revelando um céu azul brilhante. “Talvez você possa só vir e me guiar meio dia”, sugiro. “Vamos subir o teleférico e você me mostra áreas de esqui fora de pista. É uma grande parte do negócio de inverno, não é?”.

Em menos de vinte minutos a minivan chega gritando no estacionamento do meu hotel, pneus derrapando nos paralelepípedos escorregadios. Michael já estava de capacete. “Bom que você está usando isso”, digo, ao abrir a porta. “Sou um profissional. Entre”, ele me responde.

Num dia de neve fofa em Chamonix, a melhor coisa que se tem a fazer é traçar uma linha reta até as amplas e íngremes encostas dos Grands Montets, área de esqui no topo do vale, perto da geleira Argentière. Já que não há leis a respeito de onde se pode esquiar – até terras particulares tornam-se públicas uma vez cobertas de neve –, entrar na floresta é o ideal. Subimos no teleférico, e pelas próximas horas sigo Michael através de canaletas, contornando cornijas e pequenos morros com neve voando na altura da nossa cintura. Ambos estamos empolgados, talvez até demais. Na metade da tarde já estou acabado.

Michael me deixa na cidade e eu vagueio por Chamonix, pelos bares onde recentemente foi proibido fumar e desço um charmoso beco perto do caudaloso rio L’Arve. Paro numa loja de vinhos que cheira a queijo e compro uma garrafa antes de voltar à casa de Michael para encontrar-me com um dos seus vizinhos. No caminho, Michael anda rápido, mesmo depois de horas de esqui duro. Eu chamo a atenção para o fato. “Cada um tem suas peculiaridades”, ele diz. Batemos à porta de uma casa bonitinha perto do trilho do trem. Um homem com um moletom roxo surrado e um suéter turquesa com o logo da Compgnie abre a porta. Ele é forte e está ficando careca, mas parece vigoroso. Armand Comte, 73, é um dos mais velhos guias da Compagnie ainda na ativa. “Entre, por favor”, diz Armand, levando-nos a uma sala antiga, com cristais embaçados dispostos num armário de vidro. “Meu avô juntava cristais. Ele também era guia.”


VISUAL ALPINO: Agulhas como essas brotam em Chamonix

Michael explica como ele tem trabalhado como reforço para a Compagnie e pede a Armand que nos conte algumas histórias. Ele fala lentamente, lembrando da história de como seu avô, nascido em 1868, atravessou as temerosas arestas do Dru cinco vezes no verão de 1911. Isso, junto com outras explorações, foi suficiente para que a Compagnie o honrasse com uma medalha comemorativa, em homenagem póstuma, em 1975. “Ele era seguro, prudente e modesto”, diz Armand a respeito de seu avô. “Eu nunca fui um escalador brilhante, mas em terreno ruim eu era bom”, completa. Armand e Michael trocam histórias sobre vias e picos e cabanas. Ficamos ali por quase duas horas até que a esposa de Armand vem avisar que o jantar está servido. Enquanto levantamo-nos para sair, Michael pergunta a Armand sobre seu neto, que frequenta a mesma escolinha que seu filho Birken. O tempo todo ele se comunicou com Armand de maneira formal, usando o educado vous francês para falar com ele, em vez do informal tu. Armand o interrompe.

“Para com isso de me chamar de senhor”, pede. “Pode me chamar de você. Nós somos iguais. Somos guias”. Ele nos leva até a saída e dá tchau. Quando eu me viro, a porta ainda está aberta.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2009)







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