Nos passos de Amundsen

Há cem anos, no dia 14 de dezembro de 1911, o norueguês Roald Amundsen e quatro companheiros de equipe chegaram pela primeira vez ao Polo Sul. Para celebrar a data e a vida do maior explorador polar de todos os tempos, MARK JENKINS e seu irmão Steve refazem a expedição de Amundsen pelo temeroso platô Hardangervidda, na Noruega. A bordo de esquis, a dupla experimenta com garra e empolgação um desafio épico até hoje considerado mortal – pelo menos para esses dois norte-americanos metidos a besta

Por Mark Jenkins
Fotos: Nicky Bonne


BRODAGEM: Os irmãos Mark e Steve tentam dar uma de valentes na Noruega

PERDIDOS NUM WHITEOUT DURANTE UM FRIO DE RACHAR num dia de 1896, afundados no gelo, os dois irmãos noruegueses finalmente pararam de esquiar. Desorientados e perdidos, Roald e Leon Amundsen decidiram dormir ali mesmo, ao relento. Tiraram suas imensas mochilas, soltaram seus esquis de dois metros de comprimento e começaram a cavar uma toca na neve.

Após escavar dois pequenos buracos lado a lado, como duas covas rasas, entraram em seus sacos de dormir de pele de rena. Tremiam descontroladamente. Era mês de janeiro nas montanhas do sudoeste da Noruega, quando a neve, o gelo, a escuridão e o frio inclemente – os lobos do inverno – conspiram para matar os despreparados. Após terem esquiado durante três semanas para atravessar os 160 quilômetros do platô Hardangervidda, caminhando em meio a tempestades e repetidamente dormindo ao ar livre, estavam magros e fracos. Seu fogareiro não funcionava, e eles não comiam fazia dois dias. Durante a noite, um manto de neve os recobriu, inicialmente abafando o som dos ventos uivantes e enfim apagando-o completamente.

A umidade da respiração dos irmãos congelou o interior das suas tocas de neve, e o peso da neve praticamente concretou seus corpos naquele local. Foram quase enterrados vivos.

No dia seguinte, quando Roald, naquela época com 23 anos, acordou, viu-se enclausurado no gelo, incapaz de se mover. Mas Leon, de 25 anos, conseguiu escapar chutando enlouquecidamente a neve durante a noite. Apenas as pontas das botas do irmão ainda eram visíveis. Leon escavou freneticamente durante mais de uma hora, puxando Roald para fora já quase asfixiado. Naquele mesmo dia, a dupla esquiou em direção ao sul para fora do Hardangervidda. Gelados e famintos, os dois encontraram o caminho para Mogen, um agrupamento de cabanas de madeira na margem norte de um complexo de águas chamado Vinjefjorden.

“Eles foram salvos por um fazendeiro exatamente ali naquele lugar”, diz Kjersti Wøllo, escorregando salsichas caseiras de rena para o meu prato e apontando através de uma janela embaçada. Kjersti e seu companheiro Petter Martinsen operam uma cabana de esqui em Mogen, que abriram mais cedo, em março, só para nós. Meu irmão Steve e eu viemos à Noruega para refazer o caminho dos irmãos Amundsen em sua jornada através do Hardangervidda, em parte como um tributo a nossa origem (a família da nossa mãe vem da Noruega), em parte para entender melhor a coragem e a força de vontade que tornou Amundsen o maior explorador polar de todos os tempos. Mogen fica na metade da nossa rota. Durante quatro dias seguidos, enfrentamos ventos de até 96 quilômetros por hora.



ONTEM E HOJE: Em sentido horário, o norueguês Roald Amundsen
no Alasca em 1905; o autor desta matéria depois de completar a
travessia de Hardangervidda; Amundsen em 1908; Steve Jenkins

“Amundsen presenteou o fazendeiro com uma bússola por ter salvado sua vida”, diz Kjersti, uma gata de clássica beleza norueguesa na casa dos 30 anos, com um cabelo puxado para trás num grosso rabo-de-cavalo. “Seu bisneto ainda a tem guardada.”

Aquela foi a segunda vez que Amundsen tentou cruzar o maior platô de montanha do norte da Europa – a primeira, em 1893, terminou depois de uma noite ao relento a 40ºC negativos na qual quase morreu congelado. O Hardangervidda havia se mostrado praticamente inconquistável e constantemente açoitado por tempestades: um vestibular e tanto para quem sonhava em se aventurar pelos Polos da Terra. Amundsen iria, mais tarde, relembrar a travessia ironicamente como “tão extenuante e perigosa quanto qualquer uma das minhas viagens que se seguiram… o treinamento se provou mais severo do que a experiência para a qual serviu de preparação, e quase acabou com minha carreira antes mesmo de eu começá-la”.

Quando um homem escapa da morte por um triz durante a juventude, isso normalmente muda o curso de sua vida. Mal equipado e ignorante, na arrogância comum aos jovens, Amundsen nunca mais cometeria os mesmos erros. Sua famosa frase passou a ser: “Aventura é resultado do mau planejamento”. Ainda assim, foi por quase se acabar em seu próprio quintal que Amundsen encontrou o sentido da vida.

HÁ CEM ANOS, NO OUTONO DE 1911, uma equipe de cinco noruegueses, guiada por Amundsen, aos 39 anos, começou a esquiar em direção ao sul através da Antártica, continente mais inóspito do mundo. Eles pareciam tribos inuits, vestidos inteiramente com casacos de pele, guiados por 52 cães da Groenlândia puxando trenós. Aproximadamente 800 quilômetros a oeste, uma equipe de 15 pessoas, guiada por Robert Falcon Scott, capitão de 39 anos da marinha inglesa, começou a se preparar para chegar ao mesmo local absurdo: o Polo Sul.

A equipe de Robert Falcon Scott consistia em quatro homens conduzindo dois trenós motorizados, seguidos por dez laboriosos pôneis puxando mais trenós, e dois homens esquiando. Como relata o escritor inglês Roland Huntford em sua extraordinária biografia O Último Lugar da Terra – A competição entre Scott e Amundsen pela conquista do Polo Sul (Cia. das Letras), este foi o começo de um dos últimos épicos de aventura da história: uma competição não só entre dois homens ou duas nações, mas entre duas filosofias.



COMPANHEIROS: Os irmãos Jenkins na Noruega

Em sua ácida crítica a Scott, o escritor descreve-o como contraditório, confuso, iludido, dramático, irritável e moroso. Por outro lado, Amundsen obteve seu maior elogio. “Da mesma forma que um artista pode ser obcecado por sua arte, Amundsen era obcecado com a exploração e com absolutamente nada mais”, conclui Roland Hundford.

Todos sabem como terminou a competição. Amundsen chegou primeiro ao Polo e voltou em segurança com todos os seus homens. Scott também chegou ao Polo – 34 dias depois de Amundsen –, mas não voltou com vida, padecendo de fome com outros dois homens numa solitária barraca a 210 quilômetros do acampamento base.

Tendo estudado e experimentado a exploração polar durante minha vida adulta, estou convencido de que a dura e controversa opinião de Roland sobre Scott não está errada, mas isso não quer dizer que eu não respeite o britânico. Scott e Amundsen eram homens corajosos, igualmente comprometidos com sua causa. Os dois tinham egos maiores do que qualquer coisa e conseguiam conduzir outros homens a feitos sublimes, ou levá-los a provações inimagináveis.

Mas seus estilos não poderiam ser mais distintos. Amundsen era um tático brilhante e um estrategista à exaustão. Scott era um oficial rígido e um turrão romântico que não entendia que as estratégias de viagem e sobrevivência desenvolvidas pelos inuits eram a chave do sucesso.

Os dois enfrentaram muitos aprendizados no trajeto até seu destino. Amundsen nasceu numa família rica de capitães de navio, caçula de quatro irmãos. Ele passou metade da infância esquiando nos fiordes e florestas nos arredores de Christiania (atualmente Oslo), e a outra metade em estaleiros ou no mar. Seu pai, um capitão, morreu no mar quando Amundsen tinha apenas 14 anos. Ele tentou frequentar a faculdade para agradar a mãe, mas sua mente pragmática e racional era incompatível com uma sala de aula, e perfeitamente adaptada à vida ao ar livre.

Scott nasceu numa família rica de oficiais navais, com quatro irmãs e um irmão. Foi uma criança de saúde frágil, que sofria com as brincadeiras das irmãs e que entrou na Escola Real Naval aos 13 anos como cadete. Aluno excepcional, especialmente em matemática, ficou no mar durante quatro anos, voltou à escola naval e depois retornou ao mar, navegando ao redor do Cabo Horn, o ponto mais ao sul da América do Sul.

Dentre os heróis de Amundsen estava seu conterrâneo Fridtjof Nansen, famoso explorador e primeiro homem a atravessar a Groenlândia em esquis. Fridtjof era um etnólogo antes mesmo de existir essa ciência, e aprendeu a sobreviver no gelo com os inuits, quase chegando ao Polo Norte em 1895.

Scott formou-se à semelhança do trágico herói britânico sir John Franklin, dogmático explorador que pereceu no Ártico em 1848 com todos seus 128 homens, morrendo de inanição após seus dois navios ficarem presos no gelo. Quando Scott foi promovido a oficial, a Marinha Real dominava os mares do mundo havia mais de um século, mas estava gradualmente se enfraquecendo devido à burocracia e ao nepotismo. Scott queria tornar-se o homem a restaurar sua glória: era conhecido pela ambição desmedida, habilidade acadêmica e profundo desejo de promoção.

"Todos sabem como terminou a competição. Amundsen chegou primeiro ao Polo e voltou em segurança com todos os seus homens. Scott também chegou ao Polo – 34 dias depois de Amundsen –, mas não voltou com vida"

Ainda adolescente, Amundsen decidiu que seria um explorador polar e nunca se desviou de seu objetivo, preparando-se de todas as maneiras possíveis e inscrevendo-se para uma caçada polar de focas em 1894. Em seguida, passou dois anos explorando as bordas da Antártica e depois mais três anos no Ártico, entre 1903 e 1906, numa tentativa de ser o primeiro a navegar do Atlântico para o Pacífico através da Passagem Noroeste, entulhada de gelo. Não só ele completou sua complicada missão como se tornou o segundo explorador a atingir o Polo Norte magnético.

Foi durante essa expedição que Amundsen aprendeu, com os inuits netsilik, a comandar trenós puxados por cães e a construir iglus. O que ele viu durante essa missão lhe fez gravar alguns fatos essenciais a respeito da viagem polar: carne fresca pode evitar escorbuto (doença causada pela falta de vitamina C), cães e trenós são perfeitos para viagens polares e esquis são rápidos e eficientes para cobrir grandes distâncias.

Em 1907, Amundsen publicou The North-West Passage, dois inesperados volumes de prosa direta e simples em que menospreza o risco, lida calmamente com os percalços e proclama as estratégias de sobrevivência dos inuits como supremas. Como Fridtjof Nansen antes dele, Amundsen estava muito à frente de seu tempo. Possuía o gênio e a cabeça aberta para aprender os ensinamentos de sobrevivência das culturas indígenas, uma habilidade não só ignorada, mas frequentemente desdenhada por outros exploradores de sua época.

Scott também passou três anos, de 1901 a 1904, passando por experiências nos arredores da Antártica. Depois disso, ele escreveu um clássico da aventura, The Voyage of the Discovery, conto de desafios entre homem e natureza que se tornou um sucesso de crítica e público. Ainda assim, em se tratando de viagens polares, os preconceitos nacionalistas de Scott o levaram a concluir o oposto de Amundsen: ele insistia na nobreza dos trenós de tração humana contra a eficiência dos trenós puxados por cães, estava convencido de que caminhar afundando na neve era melhor do que deslizar sobre esquis e recusava-se a acreditar que carne fresca evitava o escorbuto.

Naquele tempo, o Polo Sul era o último grande prêmio dos exploradores. O capitão inglês James Cook havia sido o primeiro a navegar o Círculo Polar Antártico em 1773; seu conterrâneo Edward Bransfield tornou-se o primeiro a pisar no continente gelado em 1820; e um outro inglês, o capitão James Ross, fora o primeiro a mapear parte da costa antártica. Ernest Shackleton, que havia estado com Scott na Antártica a bordo do Discovery entre 1901 e 1904, liderou sua própria malfadada expedição ao Polo Sul, chegando a 156 quilômetros dele em janeiro de 1909, mas sendo obrigado a dar meia-volta e quase morrendo de inanição durante o trajeto.

Mais tarde, no verão de 1909, o norte-americano Frederick Cook, dado como morto, repentinamente apareceu do Ártico, alegando ter chegado ao Polo Norte em abril de 1908. Duas semanas depois, o norte-americano Robert Peary declarou ter realizado a mesma proeza em abril de 1909. Os jornais fizeram burburinho sobre o caso durante meses.
Atualmente, aceita-se que tanto Robert Peary quanto Frederick Cook mentiram, mas em seu tempo suas declarações mudaram completamente o cenário. Os arqui-rivais Scott e Amundsen imediatamente mudaram seus focos para o Polo Sul. E assim começou a corrida.


Equipe a caminho do polo Sul em 1911; Balsa perto de Hardangervidda

COM 3.422 QUILÔMETROS QUADRADOS, o Parque Nacional de Hardangervidda é a segunda maior área selvagem da Europa. Quando os Amundsens tentaram atravessá-lo, acamparam no inverno, passando apenas uma noite na única cabana que existia lá, chamada Sandhaug. Hoje, graças à Associação Norueguesa de Trekking, há duas dúzias de cabanas no platô desprovido de árvores e açoitado pelo vento.

Usando as descrições de Amundsen sobre sua viagem de esqui e um mapa topográfico do Hardangervidda, Steve e eu plotamos uma rota de mais ou menos 160 quilômetros de sudeste a noroeste, passando por oito cabanas. Duas delas tinham funcionários e serviam refeições; as outras seis eram pequenos refúgios com um pequeno estoque de comida, combustível e cobertores. O que quer dizer que, aparentemente, poderíamos realizar uma travessia de esqui sem muita bagagem – sem barraca, saco de dormir, fogareiro, pratos e comida.

“Mas e se a gente se perdermos nos whiteout?”, perguntou Steve, referindo-se ao fenômeno típico das regiões geladas em que uma espécie de neblina de neve obstrui a visão. “Ou se nos machucarmos ou se formos muito devagar e não chegarmos ao refúgio seguinte? Vamos morrer congelados.” Ele não estava exagerando. Três semanas antes de sairmos, três alemães que esquiavam de cabana a cabana em outra trilha na Noruega foram encontrados mortos. Engolidos por uma tempestade de neve, congelaram a menos de dois quilômetros do refúgio. Quatro anos antes, dois esquiadores escoceses tentando cruzar o Hardangervidda foram pegos por uma tempestade e morreram pela exposição ao frio ali mesmo na trilha de esqui.

No fim, cada um de nós acabou trazendo um isolante térmico e um finíssimo saco de bivaque, além de uma pá de neve – o suficiente para cavar uma toca e sobreviver por uma noite se fosse necessário. Durante o inverno anterior à nossa viagem, Steve, que é headhunter em Denver e ex-atleta de esqui cross-country, ia para a pista de esqui nórdico perto de sua casa todos os dias às quatro da manhã, enquanto eu treinei esqui de travessia todos os dias em Wyoming. Sabendo que tínhamos que ser rápidos e sincronizados – ou até mais do que isso – treinamos juntos alguns finais de semana, com o pior tempo que podíamos, testando continuamente nossos equipamentos.

Steve estava esperando por uma calamidade e decidiu se preparar para tal. A travessia do Hardangervidda não me parecia mais perigosa do que qualquer uma de minhas viagens de esqui – travessia pelo coração da Groenlândia com uma expedição norueguesa e sueca ou uma volta no parque Yellowstone durante um mês em esquis –, então arrogantemente eu esperava um passeio fácil de oito dias. Os primeiros cinco minutos no Hardangervidda me dissuadiram dessa ideia. O vento era tão intenso que havia levado quase toda a neve caída sobre a tundra. A neve que permanecia havia congelado, e fomos imediatamente obrigados a colocar as peles nos esquis para não sermos soprados de volta para trás. “O que eu foi que eu te disse?”, gritou Steve, rindo de orelha a orelha.

O primeiro refúgio, chamado Helberghytta, estava vazio e gelado quando chegamos. A cabana tem o nome em homenagem ao mais famoso soldado norueguês da Segunda Guerra Mundial, Claus Helberg, e suas paredes estão cobertas com fotografias da missão secreta da qual ele fez parte para destruir uma usina nazista perto de Telemark que produzia água pesada, ingrediente essencial para a produção de armas nucleares. Acendemos a lareira, esquentamos almôndegas de rena enlatadas que encontramos na despensa, nos enfiamos embaixo de cinco camadas de cobertores de lã feito moleques brincando de cabana e agradecemos profundamente por não estarmos acampando.

No dia seguinte, o vento estava absurdo. Repetidamente éramos arrancados do chão, como se estivéssemos sendo socados por um boxeador invisível. Na hora do almoço tivemos que sentar nas mochilas, de costas para o vento, senão elas seriam levadas embora. “Não consigo imaginar maior diversão do que isto aqui!”, gritou Steve através do capuz.

Levamos mais de oito horas para percorrer os 22 quilômetros até a cabana Kalhovd. Ali encontramos 16 noruegueses encolhidos em frente à lareira, tomando chá e esperando a tempestade passar. Quando nossa cara descongelou o suficiente para conseguirmos falar, eles ficaram chocados. “Americanos! Que raios vocês estão fazendo aqui na Noruega?”

Eu contei da minha obsessão por Amundsen, e Steve explicou que o nome de solteira da nossa mãe era Smebakken – algo como “Pereira da Silva da montanha”. Eles assentiram, mas ainda assim pareciam confusos, imaginando por que duas pessoas da terra da obesidade iriam escolher esquiar durante uma tempestade na Noruega.

No dia seguinte, o vento continuou ridículo. Os noruegueses mudaram seus planos e encerraram a viagem, retornando morro abaixo, a favor do vento. Eu e Steve fizemos o oposto, esquiando diretamente para o oeste, cruzando o Kalhovdfjorden, de cara para o vendaval, sem falar e parando apenas uma vez para devorar sanduíches e barrinhas energéticas enquanto nos escondíamos atrás de uma pedra.

Levamos sete horas para percorrer 22 quilômetros. Sem as peles, apesar do terreno ser plano, teria sido muito difícil chegar à cabana seguinte, a Stordalsbu. “Amundsen ficaria orgulhoso”, disse Steve quando chegamos ao chalé norueguês compacto, limpo e bem construído. Acendi o fogo enquanto ele cozinhava. Meu irmão estava cheio de alegria e muito falante, imperturbável, extasiado e exausto diante do tempo inacreditável.

Na manhã seguinte, cruzamos uma passagem de montanha em duas horas e começamos a deslizar morro abaixo, em direção a um clima opaco e uivante. Quando o terreno aplainou, imaginamos que estávamos em algum lugar próximo ao lago Vråsjåen, mas precisávamos de orientação. Enquanto eu tentava me localizar pela bússola e pelo mapa tentando fazer uma triangulação, o vento arrancou tudo da minha mão. Eles desapareceram no redemoinho. Com um pouco de irritação, Steve sacou uma bússola extra e mapas reservas, e agachamos juntos para avaliar a situação. “Estamos fora do caminho!”, gritei. Steve me pareceu preocupado. Ele sabia que, se estivéssemos perdidos, provavelmente não sobreviveríamos a uma noite ao relento.

Seguindo nossa intuição, viramos 90 graus para o sul. Havíamos esquiado 800 metros quando as nuvens se abriram apenas o suficiente para conseguirmos nos localizar, achar a trilha novamente e identificar o próximo passo. Eu ri aliviado, e Steve batia com os bastões de esqui na própria cabeça.

Subimos lentamente por mais uma passagem de montanha, escondendo-nos por trás de afloramentos rochosos quando podíamos. Descer do outro lado começou de forma agradável. Mas logo a topografia se inclinou, e nos vimos em um desfiladeiro íngreme. Passamos horas desescalando cascatas congeladas, ziguezagueando entre bétulas, afundando na neve até a cintura e amaldiçoando os deuses nórdicos.

Chegamos ao refúgio Mogen gratos por não termos quebrado uma perna e cientes de que o resto da viagem seria perigoso e desafiador. Apesar de haver uma trilha no mapa, não existia uma trilha desenhada na paisagem: quase todos os dias em que saímos, tivemos que navegar com mapa e bússola por um ambiente selvagem, branco e uivante.


BEM ABRIGADOS: Abrigo norueguês visto de fora; à dir., Amundsen e colega em um dos alojamentos antárticos

AMUNDSEN E SCOTT chegaram à Antártica em janeiro de 1911, e cada uma das equipes sabia que estava começando uma competição histórica. Centenas de quilômetros distantes um do outro, os dois grupos construíram elaborados campos-base na plataforma de gelo Ross, e se prepararam para o inverno. Um ataque único ao Polo Sul – mais de 2.200 quilômetros de ida e volta, içando cargas perigosamente através de passagens pelas montanhas Transantárticas – seria impossível. Então as duas equipes passaram o outono do Hemisfério Sul içando suprimentos e criando depósitos ao longo de suas respectivas rotas. Quando chegou o inverno – entre junho e agosto – a escuridão se abateu sobre eles, e as temperaturas caíram a 45ºC abaixo de zero.

Extremamente engenhosos durante a temporada escura, os homens de Amundsen trabalharam em cavernas de neve bem construídas. Eles testaram e alteraram suas botas de esqui três vezes, cada um reformando suas próprias botas para que se adaptassem precisamente aos pés, prevenindo congelamento e bolhas. Seus casacos de pele foram repetidamente avaliados em saídas para testes e reformados por cada um dos membros da equipe, eliminando partes inúteis ou que causavam irritações. Os homens usaram um tecido leve para fazer suas barracas, que pesava praticamente a metade do peso de lona, e então o tingiram com cera de sapato e tinta em pó, por três razões: para encontrá-las mais facilmente em caso de whiteout; para oferecer um descanso para os olhos irritados pela brancura da neve; e para absorver o calor da radiação solar. Em sua marcenaria de paredes de neve, o faz-tudo da equipe, Olav Bjaaland, redesenhou os trenós, cortando seu peso de 68 quilos para 23 quilos. Olav, campeão de esqui, criou esquis sob medida para cada membro da equipe.

Scott estava satisfeito com suas roupas de lã e algodão, e confiante na habilidade de seus pôneis para caminhar na neve puxando trenós pesados. A expedição inglesa não aprimorou seus equipamentos e sua logística. Scott acreditava que a coragem venceria a adversidade e que caráter, e não engenhosidade, faria a diferença. No acampamento base montado na enseada de McMurdo, na Antártida, ele e seus homens passaram o inverno matando o tempo com leituras, teatro amador, futebol e escrevendo cartas.

Para Amundsen, nada poderia ser deixado à sorte. Sua equipe calculou o pemmican – um tipo de barra energética da época, feita com muita gordura e proteína – grama por grama, contou os biscoitos (mais de 40 mil) individualmente, colocou a carne de foca em depósitos. As bússolas dos trenós foram calibradas e os cães ganharam bastante peso para aguentar as provações futuras. Ele havia aprendido com os inuits que brincar com o perigo deliberadamente era imaturo, para não dizer mortal.

Scott era um homem com visões de grandeza, e delegou os detalhes para outros. Além disso, durante os primeiros 640 quilômetros da expedição, ele estava, literalmente, seguindo os passos de Shackleton. Para estabelecer seu recorde de aproximação ao Polo Sul, Shackleton e três companheiros haviam caminhado a pé, puxando imensos trenós. Scott pretendia fazer o mesmo, só que usando pôneis e cães em parte da rota.

Desde o começo, Amundsen se deslocava rápida e suavemente. Ele mal conseguia controlar a garra de seus cachorros, e os homens às vezes conseguiam andar nos trenós, em vez de esquiar. As equipes normalmente cobriam 20 quilômetros em cinco ou seis horas, daí armavam o acampamento, dedicando o resto do dia ao descanso e à recuperação. Se o tempo estivesse muito ruim, eles construíam iglus. No outono, haviam marcado seus depósitos com amplas linhas de bandeiras, em caso de se desviarem do curso, de forma que mesmo sob tempestade eles poderiam avistar e encontrar suprimentos de comida e combustível. Para os noruegueses, todos excelentes esquiadores, aquilo era um grande passeio. Um imenso tour de esqui.

Os dois protótipos de moto de neve de Scott (um terceiro caiu no gelo durante um desembarque) não tinham sido devidamente testados durante o inverno, e havia poucas peças de reposição. Acabaram quebrando e foram abandonados depois de cinco dias. Os pôneis, transpirando em profusão, sofriam horrivelmente, com as costas e os flancos cobertos de gelo. Seus cascos finos furavam a neve, fazendo com que os animais afundassem até os joelhos, trêmulos. Na metade do caminho até o Polo Sul, sua forragem terminou e os pôneis foram sacrificados a tiros. Daquele ponto em diante, passaram a usar tração humana.

Nas duas expedições era previsto que alguns dos animais seriam mortos durante o percurso. Amundsen sacrificava qualquer cão que entrasse no cio, que não quisesse puxar o trenó ou que ficasse muito agressivo, usando-os como alimento para os outros cães, para sua equipe e para ele mesmo. Em determinado ponto, após arrastar-se pelas montanhas Transantárticas – um maciço montanhoso com picos de até 4.500 metros –, Amundsen matou metade dos cães que sobrou para suprir tanto os homens quanto os animais com carne suficiente para sobreviver à chegada ao Polo e à viagem de volta. A jornada de regresso, quando homens e animais estivessem mental, física e espiritualmente fatigados, seria ainda mais crucial do que a ida.
Já tendo determinado em viagens anteriores as necessidades nutricionais diárias de homens e cães, Amundsen possuía dez vezes mais reservas de comida em cada depósito que Scott. Esquiando apenas metade do dia, a equipe de Amundsen conservava o vigor, a força e o moral. Scott conduzia sua equipe da mesma forma que seus pôneis, com os homens exaustos puxando os equipamentos 12 horas por dia. Inevitavelmente ficaram fracos, macilentos e desmoralizados.


NA ESTICA: Amundsen em 1900

EM MOGEN, Kjersti Wøllo e Petter Martinsen nos alimentaram tão bem – e nos regalaram com tantas histórias memoráveis sobre os prazeres da vida norueguesa – que poderíamos desistir de nossa travessia ali mesmo. Graças à riqueza em petróleo e gás natural, o governo acumulou o segundo maior fundo de emergência do mundo, com mais de US$ 500 bilhões. Todo cidadão tem saúde e pensão garantidas pelo governo durante toda a vida. A taxa de desemprego é baixa, e praticamente não há pobreza. “Eu acho que conseguiria viver aqui”, disse Steve quase sonhando, quando estávamos já praticamente adormecidos. Mas no dia seguinte tivemos que subir em nossos esquis e ir embora.

Finalmente o vento diminuiu e foi substituído por temperaturas abaixo dos 20ºC negativos. Retomamos nosso ataque ao platô central, parando apenas para o almoço e para um chá de amora-ártica. A neve era quebradiça e a paisagem, totalmente desprovida de pontos de referência úteis – para todos os lados só se viam morros nevados de tamanho e altura semelhantes. Estabelecemos um azimute e o seguimos com precisão, desviando apenas para evitar subidas ou descidas muito íngremes.
Quando chegamos ao refúgio Lågaros, no meio da tarde, a cabana estava tão enterrada na neve que tivemos que cavar para encontrar a porta. Achamos que era todo nosso, mas logo ouvimos uns gritos. Olhando através da janela, não conseguíamos acreditar no que vimos lá fora: três esquiadores com kites, literalmente velejando, vindo do nada. Largaram as mochilas ao lado do refúgio e continuaram seu kite-ski só por diversão, saltando e virando, fazendo grandes manobras pela paisagem.

Quando finalmente entraram, estavam radiantes. Eram noruegueses, claro: dois irmãos e uma mulher. Haviam esquiado 45 quilômetros naquele dia e ainda tinham energia suficiente para brincar. Nós havíamos feito apenas 18 quilômetros e estávamos acabados. Um deles era um soldado que acabara de voltar de um ano no Afeganistão; os outros dois eram estudantes de medicina. Esta era sua terceira tentativa de atravessar o Hardangervidda. “Das outras vezes o vento não cooperou e tivemos que nos arrastar com os esquis”, disse um deles, com um sorriso.

Eles passaram três anos testando diferentes esquis e kites, e sabiam exatamente o que estavam fazendo. Iam a favor dos ventos principais, em vez de tentar ir contra eles, como nós estávamos fazendo. “A travessia completa do Hardangervidda irá tomar três dias”, disse a mulher, quase envergonhada por admitir a eficiência da sua viagem a uma dupla de esquiadores masoquistas que levaria oito dias para cobrir a mesma distância. Eles dormiram até tarde na manhã seguinte, sabendo que conseguiriam cobrir 30 ou 40 quilômetros em uma questão de horas. Enquanto isso, Steve e eu continuávamos nos afundando na neve.

A neve estava áspera, e a paisagem era de um branco causticante. Era como esquiar por um deserto de dunas de areia. Com o vento calmo e a navegação se tornando desnecessária, cobrimos os 26 quilômetros até a cabana seguinte, Sandhaug, em poucas horas. Há 115 anos, os irmãos Amundsen passaram a noite exatamente nessa mesma cabana. Como chegamos cedo, tivemos tempo de atualizar nossos diários, traçar nossa rota nos mapas, engolir uma ou duas refeições extra e torrar nossos pés na lareira. “Não sei se a vida pode ficar melhor do que isto”, disse Steve antes de apagar.

Naquela noite surgiu outra tempestade, e começou a acumular neve em volta do refúgio. Bem na hora em que estávamos indo para a cama, cinco noruegueses de meia idade e com um preparo físico não muito bom entraram pela porta. “O que fazem aqui?”, um deles perguntou, todo esnobe. Mas, na verdade, estavam mais do que felizes em beber a neve que havíamos derretido e secar suas meias encharcadas com nossa lareira bem aquecida.

No dia seguinte saímos antes de eles despertarem. Estava nevando e ventando terrivelmente. Na primeira hora de esqui, a visibilidade caiu até que o céu e a Terra se fundissem numa única substância de vapor. Em determinado ponto, olhando para baixo, avistei dois pontos pretos bem abaixo de mim. Olhando o infinito, não conseguia distinguir a que distância estavam. Cinco metros? Quinhentos metros? Andei para trás, com medo de cair naquele abismo e acabei descobrindo que eram apenas as pontas dos meus esquis. Sem a menor percepção de profundidade, o equilíbrio tornou-se difícil e mover-me em linha reta ficou impossível. Estávamos cegos pelo whiteout e a 16 quilômetros do próximo refúgio. Tínhamos que parar.


BELO: Paisagem típica do interior de Hardangervidda

“FICAMOS COMPLETAMENTE cegos o dia inteiro”, escreveu Amundsen em seu diário no dia 5 de dezembro de 1911. “Neve espessa, mais parecida com a de casa.” Ele e sua equipe ainda esquiaram mais 20 quilômetros. E no dia seguinte não foi diferente, mas a equipe de Amundsen cobria sua distância padrão, independentemente das condições.

Scott, material e mentalmente despreparado, em dias ruins não se movia, ou se arrastava por distâncias moderadas que demandavam um sofrimento incalculável, com seus homens tendo que arrastar trenós monstruosos.

À medida que Amundsen se aproximava do polo, Scott ficava centenas de quilômetros para atrás. Um não sabia da posição do outro, o que gerava uma ansiedade enorme em Scott. Ele pressionava a si mesmo e a seus homens com sadismo. Havia dias em que Scott e Amundsen cobriam a mesma distância, mas Amundsen o fazia na metade do tempo, economizando esforços e subindo nos trenós quando era possível. Scott quase se matava e a seus homens.

No dia 14 de dezembro de 1911, Amundsen e quatro de seus companheiros de equipe chegaram no Polo Sul. “Então finalmente alcançamos nosso destino e plantamos nossa bandeira no Polo Sul geográfico… Graças a Deus!”, escreveu em seu diário. Com foco em seus homens, escreveu que os companheiros de equipe tinham as qualidades que ele mais admirava: “Coragem e bravura, sem gabolice ou soberba”. No total, ele e seus esquiadores passaram quase um ano na Antártica e esquiaram em direção ao Polo por mais de 50 dias, cobrindo quase 1.200 quilômetros. Ciente da necessidade de uma prova para que o mundo acreditasse neles, os noruegueses passaram três dias mapeando 24 leituras no sextante para ter certeza absoluta de que estavam precisamente no sul da Terra. Deixaram um trenó, uma barraca e um bilhetinho insolente de boas-vindas a Scott. Daí começaram sua volta para casa.

Scott e quatro homens (todos os outros haviam sido mandados de volta ao longo do caminho, para sorte deles) chegaram ao Polo Sul mais de um mês depois, cadavéricos, desnutridos, cansados e enfraquecidos. Encontraram a barraca e o bilhete de Amundsen. Scott escreveu: “Por Deus! Este lugar já é horrível o suficiente para se chegar até aqui sem a recompensa do primeiro lugar”.

“VOCÊ TEM ALGUMA ideia de onde estamos?” gritou Steve. “Não! Mas eu sei para onde estamos indo”, gritei de volta. Na noite anterior à que Steve e eu fomos pegos no último whiteout, em Sandhaug, eu escutei a neve batendo nas janelas como as asas de uma ave assustada. Preocupado com a viagem do dia seguinte, eu havia calculado quatro azimutes possíveis no quentinho do refúgio. Havia três outros refúgios entre nós e nosso próximo destino; os azimutes eram linhas retas entre um e outro.
Abandonando nossas pretensões de ver para onde íamos, Steve e eu partimos na direção do primeiro azimute. Após esquiar cegamente durante cinco minutos, paramos, seguramos a bússola diretamente sobre os esquis e descobrimos que estávamos desviados dez graus do nosso curso. O vento estava muito forte para esquiar sem os dois bastões, então resolvemos verificar o curso a cada 50 passos. Fomos tão devagar que dava tédio, mas chegamos ao primeiro chalé com precisão. Uma bebida, uma barrinha energética, e lá vamos nós.

Chegamos ao chalé seguinte na hora do almoço. Estava meio enterrado, então cavamos um buraco embaixo do beiral, esticamos nossos isolantes. Comemos ali mesmo e ignoramos os redemoinhos de neve. Pelo mapa, estávamos a meio caminho de nosso destino, apesar de estarmos presos dentre as nuvens durante toda a manhã e de não termos enxergado nada além de branco no branco.

Nunca encontramos o terceiro chalé da nossa referência – deve ter sido totalmente enterrado. A determinada altura, as nuvens se abriram, e Steve apontou uma aresta. “Talvez esteja a um pulinho!”, gritou. Mas a paisagem continuava nos pregando peças: estava três vezes mais longe.

No final do dia, estávamos caminhando ao longo de uma montanha íngreme, começando a nos questionar, quando nosso objetivo – o refúgio Hadlaskard – apareceu do nada à nossa esquerda. Era nosso último chalé no Hardangervidda. Fizemos um banquete de ensopado de rena, biscoitos com Nutella e queijo, além de gordos quadrados de chocolate norueguês. Já que éramos as únicas pessoas no chalé, pegamos os cobertores dos gelados dormitórios, deitamo-nos nos sofás ao lado da lareira e dormimos tão bem que sonhamos.

Como se os deuses noruegueses estivessem convencidos de que éramos merecedores de nosso pequeno sonho, o vento parou de soprar no dia seguinte – nosso último lá –, o sol saiu e esquiamos sem esforços. Deslizamos por cima do rio Veig, passando por bosques de abetos salpicados por chalés de veraneio. Enquanto marchávamos em direção à última passagem de montanha, começou uma neve suave. Grandes flocos e nenhum vento. Deslizamos para o norte sem esforço, saindo do Hardangervidda e completando a travessia em Garen.

Mas agora não nos parecia certo parar. Depois de mais de uma semana de tempo horrível, as condições estavam repentinamente ótimas como em um conto de fadas, com grandes flocos de neve caindo como plumas de ganso. Decidimos realizar uma volta da vitória. Esquiando ritmadamente num uníssono silencioso, deslizamos pela floresta até o anoitecer.

COMO O ESCRITOR ROLAND HUNTFORD claramente colocou em seu livro, Scott foi transformado em herói pela imprensa inglesa quando deveria ter sido criticado. Durante a medonha labuta no retorno do Polo Sul para o campo base, o sub-oficial Edgar Evans foi o primeiro a morrer, puxando o trenó até seu último suspiro. O capitão de cavalaria Lawrence Oates foi o seguinte, com os pés tão congelados que gangrenaram. Na manhã do seu 23º aniversário, Lawrence arrastou-se para fora da barraca e mancou até desaparecer. Scott ainda mantinha seu diário, escrevendo para a posteridade. O capitão-tenente Henry Bowers, o cientista-chefe da expedição Edward Wilson e o comandante Robert Falcon Scott, todos esqueléticos e sofrendo de congelamentos, morreram em suas barracas na Antártica algum dia depois de 21 de março de 1911.

Após chegar ao Polo Sul, Amundsen e sua equipe voltaram facilmente até o campo base, percorrendo 1.125 quilômetros em apenas seis semanas. Ao todo, haviam percorrido 2.250 quilômetros em 99 dias. Ninguém morreu, quase ninguém ficou doente. Houve algum congelamento de membros, mas nenhum homem perdeu dedos dos pés ou das mãos. Amundsen fez todo o possível para tirar o drama e o perigo de suas expedições, e por essa razão ele foi, de uma maneira estranha, punido. Apesar de sua expedição ao Polo Sul ter sido a apoteose da elegância e da eficiência – talvez a melhor expedição já realizada pelo homem – Amundsen foi esquecido fora da Noruega décadas após sua morte em 1928 (num acidente de avião, provavelmente sobrevoando o mar de Barents).

Roland Huntford, que fez mais do que ninguém para tentar devolver Amundsen ao panteão da aventura, achou que sua morte foi tanto uma perda quanto um fim apropriado. Amundsen estava a caminho do resgate de um explorador polar italiano, Umberto Nobile, que desapareceu durante um voo no Polo Norte. Umberto foi resgatado por outra pessoa – ou seja, Amundsen poderia ter ficado em casa. Mas para Roland esse foi um final estranhamente apropriado ao maior explorador polar de todos os tempos. “Seu fim foi digno dos velhos reis nórdicos do mar, que se sacrificavam quando sabiam que sua hora havia chegado”, escreveu. “Essa teria sido a saída que ele escolheria para si”.

O GRANDE SCOTT
Defendendo o homem que não voltou

Por Ryan Krogh

APÓS SUA MORTE EM 1912, Robert Scott tornou-se herói nacional na Inglaterra, enquanto Roald Amundsen virou uma mera nota de rodapé em suas biografias, apesar de ter chegado ao Polo Sul antes e ter retornado com vida. Tudo isso mudou com o livro de Roland Huntford, lançado em 1979, um relato exaustivo da corrida dos exploradores ao Polo – publicado no Brasil pela Cia. das Letras com o título O Último Lugar da Terra – A competição entre Scott e Amundsen pela conquista do Polo Sul.
Roland foi um dos primeiros historiadores de língua inglesa a ler os diários de Amundsen em norueguês, e recuperou devidamente seu legado, que estava jogado às traças. Dessa forma também atacou Scott, desprezando-o por tudo, desde o mau planejamento até a liderança inepta.

Alguns escritores recentes acham que Roland exagerou. Principalmente o aventureiro britânico Ranulph Fiennes, que é frequentemente considerado o maior explorador polar vivo do mundo (ele foi o primeiro a alcançar os dois Polos por sobre o gelo e o primeiro a cruzar a Antártica à pé). Ranulph discute em seu livro Captain Scott, de 2003, que Roland apresentou-se como um homem com experiência em neve e gelo, mas que, na verdade, não tinha nenhuma. Ranulph diz que Roland demonstrou “sua ignorância sobre as regiões polares com declarações como: ‘A aproximadamente 40ºC negativos a respiração arde como fogo’. Eu puxei trenós a -45ºC e nunca experimentei esse fenômeno”.

Não há como questionar que Scott cometeu erros de julgamento, sendo que os dois principais foram colocar seus depósitos de suprimentos distantes uns dos outros e que, no último minuto, levou cinco homens para o ataque final, sendo que só tinha provisões planejadas para quatro. Em vez de levar cães para puxar trenós, como fez Amundsen, Scott usou pôneis, e depois planejou tração humana até o Polo Sul, técnica que havia funcionado relativamente bem para Ernest Shackleton três anos antes. Roland Huntford diz que “os pôneis sozinhos eram totalmente inapropriados para tais condições… uma demonstração clara da incapacidade de Scott de compreender todas as implicações do frio”. Mas, como diz Ranulph Fiennes em Captain Scott, ele nunca teve a intenção de usar os pôneis para nada além de levar as provisões aos depósitos, missão que foi cumprida.

O que matou Scott e sua equipe polar foi, provavelmente, uma combinação de fome e frio severos. A cientista atmosférica Susan Solomon, em seu livro The Coldest March, de 2001, diz que Scott e seus homens lutaram durante três semanas nas quais, quase todos os dias, a temperatura mínima era entre 6ºC e 10ºC mais fria do que pode ser considerado normal atualmente. O plano de ataque de Amundsen para sobreviver a essas condições funcionou melhor, obviamente, mas para legiões de aventureiros fortões que ainda admiram Scott a força e a bravura dos britânicos ainda perduram.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2011)







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